24/04/2024 - Edição 540

Especial

A espiral da violência no Brasil

Publicado em 03/06/2022 12:00 -

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O representante do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos para a América do Sul, Jan Jarab, está preocupado com o espiral de violência registrado no Brasil. O alerta ocorreu durante um encontro com a Comissão Arns. Na reunião, o grupo de ativistas brasileiro entregou um documento solicitando uma ação urgente por parte das Nações Unidas, tanto no caso do assassinato de Genivaldo Santos, asfixiado pela polícia e a chacina em Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro.

De acordo com os membros da Comissão, Jarab relatou uma recente visita às terras indígenas e afirmou, de maneira geral, estar "preocupado com o espiral de violência" no Brasil. A coluna confirmou com membros da ONU que o país passou a fazer parte do radar das principais preocupações da organização, em especial pela tensão política e a atuação do presidente Jair Bolsonaro em incentivar tais atos.

Tanto a visita como os relatórios que Jarab recebeu farão parte de informações que o representante encaminhará para a sede do órgão de direitos humanos, em Genebra. O escritório regional do Alto Comissariado da ONU já havia feito um apelo para que investigações independentes fossem realizadas em relação à violência policial registrada nos últimos dias.

Se tanto a ONU como os ativistas reconheceram que a violência policial é anterior ao governo Bolsonaro, o temor de todos é de que ela ganhe nova proporção neste período eleitoral. Também preocupa a proliferação de portarias dando mandatos para a Polícia Rodoviária, o fim de cursos de direitos humanos na formação de agentes e a celebração do resultado de operações por parte do alto escalão do governo.

Segundo a Comissão Arns, a violência tende a se agravar "diante das homenagens que o presidente faz para as chacinas". "Os autores são celebrados como heróis", denuncia Paulo Sérgio Pinheiro, ex-secretário de Direitos Humanos no governo de Fernando Henrique Cardoso e membro da Comissão.

No documento, a Comissão Arns pede que a ONU pressione as autoridades nacionais a "cumprir as obrigações que o Brasil se comprometeu a obedecer, em relação aos direitos humanos e a decisões judiciais nacionais e internacionais". O grupo ainda aponta que a ONU deve, "diante do aumento descontrolado da violência policial no governo do Sr. Jair Messias Bolsonaro, reforçar a necessidade de incrementar o controle externo da atividade policial exercido pelo Ministério Público, bem como inste seu órgão de controle externo, o Conselho Nacional do Ministério Público, a acompanhar as investigações de graves violações de direitos humanos".

Os ativistas ainda querem que a ONU "condene a ampliação de competências de Polícia Rodoviária Federal para agir fora de suas atribuições constitucionais originárias e que atente para ações para-institucionais, assim como manifestações e declarações de autoridades brasileiras hostis aos direitos humanos, que incentivam a atuação violenta e ilegal das polícias".

Além da reunião, a Comissão Arns recorreu a um novo mecanismo na ONU para lidar com a violência policial e racismo. O instrumento foi criado depois do assassinato de George Floyd, pela polícia americana. Agora, o mecanismo independente vai examinar o caso brasileiro, um temor que o governo de Jair Bolsonaro sempre teve quando o debate sobre a vítima americana entrou na agenda da ONU.

Os ativistas brasileiros também encaminharam para outros relatores da ONU denúncias de violações de direitos humanos cometidos pela polícia brasileira e o papel do Executivo ao incentivar esses atos.

Guarda Pretoriana e golpe de estado

O temor da Comissão Arns é de que a violência que foi registrada nos últimos dias seja apenas um sinal do que pode vir pela frente, com a Polícia Rodoviária e seus 14 mil agentes ganhando novos mandatos por meio de portarias. Pinheiro chega a chamar essa mudança de mandato para a Polícia Rodoviária como uma tentativa de Bolsonaro de criar sua própria guarda pretoriana. "Isso é escandalosamente obsceno", disse.

Para ele, isso seria "o caminho da autocracia sonhada pelo presidente". Pinheiro alerta para o risco de que a Polícia seja instrumentalizada para criar um tumulto ou uma tentativa de golpe de estado. "Bolsonaro tem grande esperança com os 14 mil homens da PR", disse.

Órgão regional condena violência policial no Brasil

Enquanto o representante da ONU passa pelo Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) emitiu nesta quarta-feira um comunicando em que "condena a violência policial sistêmica contra pessoas afrodescendentes no Brasil".

Ela ainda pede ao governo "investigar pronta, diligente e exaustivamente os eventos ocorridos, assim como sancionar os responsáveis e avançar com uma reparação integral às vítimas e seus familiares".

Citando um estudo da Universidade Federal Fluminense (UFF), a entidade indicou que, entre 2007 e 2021, das 17.929 operações policiais realizadas em favelas do Rio de Janeiro, 593 resultaram em chacinas, com um total de 2.374 pessoas falecidas, o que representaria 41% do total de mortes decorrentes de ações policiais.

A Comissão ainda alerta para a "discriminação múltipla e agravada que os afrodescendentes podem enfrentar quando sua origem étnica racial se cruza com outros fatores como deficiência, origem socioeconômica, entre outros".

"A CIDH lembra o Brasil sobre o seu dever de garantir o cumprimento das normas internacionais sobre o uso da força com base nos princípios da legalidade, proporcionalidade e necessidade absoluta, com vistas à redução da letalidade e da violência policial. Da mesma forma, insta o Estado a garantir que as medidas de segurança pública não discriminem de maneira direta ou indireta a indivíduos ou grupos com base em sua origem étnico-racial ou outros critérios, de acordo com os termos da Convenção Interamericada contra o Racismo, a Discriminação Racial e a Intolerância Relacionada", disse.

A Comissão ainda fez um apelo ao Brasil para prevenir e erradicar atos de violência institucional ligados a padrões de discriminação racial contra a população afrodescendente. Isso exigiria reformar os protocolos e diretrizes dos órgãos locais, estaduais e federais, garantindo que o perfilamento racial e outras práticas discriminatórias explícitas ou implícitas sejam expressamente proibidas e sancionadas. "Ao mesmo tempo, no concernente à reparação oportuna e integral às vítimas, que se incluam recursos judiciais eficazes, medidas de satisfação, garantias de não repetição e compensação", completou.

Após George Floyd, órgão da ONU examinará violência policial no Brasil

O órgão criado pela ONU para examinar o racismo e a violência policial depois do assassinato do americano George Floyd agora irá avaliar a situação brasileira.

O mecanismo independente da ONU sobre racismo e violência das forças de ordem foi estabelecido no final de 2021 e é um dos principais resultados do processo que eclodiu no cenário internacional diante da morte de Floyd, por um policial americano, em 2020.

Os três peritos do novo órgão —a sul-africana Yvonne Mokgoro, a americana Tracie Keesee e o argentino Juan Méndez— receberam a denúncia contra a polícia brasileira, num documento que revela que os atos na Vila Cruzeiro não são isolados. O levantamento aponta que, se a crise na segurança é mais antiga, ela ganhou um novo componente com o discurso de Jair Bolsonaro em defesa da ação da polícia.

O grupo de ativistas pediu aos relatores da ONU e ao novo mecanismo que pressionem o governo brasileiro para que realize uma "investigação rápida e imparcial dos assassinatos". Na carta, a entidade cita ainda a "necessidade de preservar as evidências das cenas do crime, a fim de elucidar, tanto quanto possível, a hipótese de execuções sumárias".

A ONU ainda é solicitada a "elaborar uma análise minuciosa da discriminação racial envolvida no massacre, e apresentar medidas para erradicar as causas subjacentes que levam à execução desproporcional de pessoas de ascendência africana pelas forças policiais".

Também é solicitado que a entidade pressione o governo brasileiro sobre "a necessidade de refletir estruturalmente sobre outras abordagens que erradicam a prática das execuções pelas forças policiais, em particular contra pessoas de ascendência africana que vivem em áreas desprivilegiadas".

Pede-se ainda que as autoridades prestem "desculpas formais" diante das mortes e da ofensiva. "Os massacres passaram a fazer parte do cotidiano da população pobre e negra da região do Grande Rio de Janeiro, afetando muitos dos bairros mais pobres e negros desta região metropolitana", alertam.

Itamaraty apoiou Trump diante de ofensiva na ONU

A iniciativa confirma o pior dos cenários para o governo brasileiro. Em 2020, quando o debate sobre Floyd desembarcou na ONU, o governo brasileiro saiu ao resgate do então presidente Donald Trump.

Numa reunião extraordinária do Conselho de Direitos Humanos da ONU convocada para debater a violência policial e o racismo diante da morte de George Floyd, o governo brasileiro não dirigiu sequer uma palavra de apoio à família da vítima e não citou os protestos pelas ruas que aconteciam naqueles dias em todo o mundo. No seu lugar, preferiu indicar que era necessário também reconhecer o papel da polícia.

Naquele momento, o Brasil foi um dos países que sinalizou que o resultado final do encontro não deveria ser o de apontar o dedo apenas para um só país, numa estratégia para garantir que uma eventual resolução fosse diluída. "O racismo não é exclusivo a nenhuma região específica", afirmou a então embaixadora do Brasil na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo. "Nenhum país deve ser singularizado nesse aspecto", defendeu.

Ela também adotou uma postura de reconhecimento do papel da polícia, amplamente criticada em praticamente todos os demais discursos dos outros países. "A discriminação racial na ação policial não deve ser tolerada em nenhum lugar do planeta. Admitir essa verdade deve nos fornecer uma base sólida para as melhorias necessárias", disse. Mas completou: "a conscientização é tão importante quanto reconhecer o papel indispensável das forças policiais para garantir a segurança pública e proteger o direito a uma existência pacífica e segura, o direito à própria vida".

O governo brasileiro não aderiu a uma declaração conjunta de vários países latino-americanos que alertaram que o estado tem "responsabilidades" diante de crimes. O grupo que contou com Argentina, México, Uruguai e vários outros ainda criticou o "abuso de força policial" e pediu que governos estabeleçam "diálogo com sociedade civil".

A resistência brasileira atendia a duas lógicas. A primeira delas se referia à aliança entre Brasília e a Casa Branca. Mas o governo brasileiro também temia que, se aprovada, a criação de uma comissão de inquérito também poderia analisar o comportamento da polícia brasileira, alvo de duras críticas internacionais. No Planalto, a ideia de colocar em questão a atuação das forças policiais estava fora de questão.

Menos de dois anos depois, é o próprio governo Bolsonaro que poderá sentir as repercussões de Floyd.

Violência policial mobiliza europeus contra governo Bolsonaro

A pauta da violência política no Brasil também desembarcou na agenda política europeia e, para observadores em Bruxelas, amplia a pressão contra um governo que tem sido visto como incentivador de tal comportamento pela polícia.

O Grupo Social-Democrata, com 145 deputados de 26 países, sugeriu a adoção de uma resolução de emergência sobre a violência policial no Brasil. Nesta quarta-feira, a Conferência dos Presidentes do Parlamento decidirá quais das resoluções de emergência serão levadas ao plenário para uma eventual adoção.

A medida do Parlamento não implicará uma sanção contra o Brasil e nem terá um impacto concreto imediato. Mas seus autores indicam que o gesto sinaliza que a Europa não está de acordo com as políticas de direitos humanos no país e que não está disposta a promover uma aproximação sobre essas bases.

Se aprovada, a resolução ainda ampliará a distância política entre europeus e brasileiro, num contexto em que a ratificação do tratado comercial entre o Mercosul e a UE (União Europeia) está congelada e a desconfiança por parte dos europeus sobre a adesão do Brasil à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) é ampla.

Para diplomatas estrangeiros, a decisão de deputados europeus de colocar a violência policial na agenda no Parlamento amplia o mal-estar do governo entre democracias. Bolsonaro já é criticado por sua política ambiental, pela questão indígena e por sua gestão na pandemia.

Mas fontes ouvidas pelo jornalista Jamil Chade (UOL) indicaram que, mesmo que a nova proposta fique de fora da plenária do Parlamento, o fato de ela ter sido apresentada significa que o assunto passou a ser tratado na agenda internacional. Hoje, o Grupo Social-Democrata é a segunda maior força dentro do Legislativo europeu.

O gesto segue uma lógica adotada pelo Parlamento Europeu ainda em 2020, quando uma resolução urgente foi aprovada em condenação à morte do americano George Floyd, também por violência policial. Naquela ocasião, a então embaixadora do governo Bolsonaro na ONU, Maria Nazareth Farani Azevedo, atuou em sintonia com o governo de Donald Trump quando um projeto de resolução condenando os EUA pelo racismo em sua polícia foi apresentado.

Um ano antes, quando a alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, criticou a violência da polícia brasileira, Bolsonaro respondeu com um elogio ao ditador Augusto Pinochet, cujo regime foi responsável pela morte do pai de Bachelet e por sua tortura.


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