25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Governo omite violência policial de raio-x sobre direitos humanos no Brasil

Publicado em 26/05/2022 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Num informe produzido pelo governo brasileiro com uma espécie de raio-x das medidas tomadas pelas autoridades para lidar com violações de direitos humanos e atender as recomendações internacionais, o Executivo omitiu o resultado de suas políticas no que se refere à violência policial, às chacinas e operações que têm resultado em dezenas de mortos, apenas em 2022.

A ausência ocorre numa semana em que mais uma operação em Vila Cruzeiro deixou ao menos 26 mortos. Após as mortes, o presidente Jair Bolsonaro usou as redes sociais para dar "parabéns aos guerreiros do BOPE" que "neutralizaram pelo menos 20 marginais ligados ao narcotráfico em confronto, após serem atacados a tiros durante operação contra líderes de facção criminosa".

Segundo dados levantados pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 5,2 mil pessoas morreram como resultado da violência policial no Brasil em 2017. Em 2020, o número saltou para 6,4 mil e, no ano passado, manteve uma taxa elevada de 6,1 mil mortos.

O documento do estado brasileiro, ainda em sua versão preliminar, será entregue para a ONU (Organização das Nações Unidas) em agosto. Em novembro, a entidade realiza uma sabatina com o Brasil, examinando todos os aspectos da política de direitos humanos do governo e os desafios país.

Trata-se da Revisão Periódica Universal, um mecanismo na ONU criado para analisar se países estão cumprindo seus deveres internacionais e de direitos humanos.

Na última vez que o Brasil foi alvo da sabatina, em 2017, mais de uma dezena de recomendações foram feitas ao país para reduzir a violência policial. Cabe ao governo, portanto, apresentar agora na próxima sabatina o que tem feito para cumprir as sugestões que o estado brasileiro aceitou há cinco anos.

O governo explicou que um documento já havia sido preparado em 2019, com as medidas adotadas no período entre o último exame —em 2017— e aquele momento. Tratava-se, portanto, apenas dos primeiros meses do governo de Jair Bolsonaro.

Agora, o informe que vai examinar o período completo desde o último exame "reúne as informações mais relevantes do Brasil em matéria de direitos humanos" relacionadas às recomendações feitas ao país em 2017.

O novo documento é ainda preliminar e a sociedade civil tem até o dia 30 de junho para mandar comentários. Já o governo precisa entregar o informe para a ONU no início de agosto.

"A elaboração de um relatório de meio período em 2019 já detalhou grande parte dos desenvolvimentos das ações desde o início do ciclo (2017) até aquela data, o que permite que façamos aqui a atualização daquelas informações e apresentemos os dados novos surgidos no período", esclarece o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

Silêncio sobre violência policial

Mas, ao tratar de segurança pública, nenhuma ação para redução da violência policial foi citada no documento de 2022.

O texto aponta como medidas tomadas desde 2019 apenas a "prevenção e repressão do terrorismo", leis e resoluções aprovadas para estabelecer diretrizes e quesitos periciais para a realização dos exames de corpo de delito nos casos em que haja indícios de prática de tortura, além da publicação de um manual de prevenção e combate à tortura para audiência de custódia.

Em 2017, o Brasil havia recebido mais de uma dezena de recomendações sobre segurança pública. Uma delas explicitamente pedia a redução em 10% das mortes por violência policial. Isso deveria ocorrer por meio do treinamento de policiais em direitos humanos e a implementação de programas específicos.

Em 2019, no informe apresentado pelo governo, as autoridades brasileiras elencaram diversas iniciativas para reduzir a violência no sistema carcerário.
O mesmo documento, ao ser cobrado por conta da violência policial, apontou para iniciativas de "educação em direitos humanos", em cursos oferecidos aos policiais. O texto ainda cita planos publicados há mais de uma década, em 2006.

O governo também indicou a existência de procedimentos para que os direitos humanos estejam no foco do sistema de segurança pública, além de estratégias para a coleta de dados sobre a violência policial, para que possa ser mapeada.

Governo fracassou

Num informe paralelo, entidades como Conectas Direitos Humanos, Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense, Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, Instituto de Defesa da População Negra e Justiça Global insistem que o Brasil fracassou em lidar com a violência policial entre 2017 e 2022 e destacam que os programas implementados pelo estado não trouxeram resultados.

O documento faz parte de uma resposta articulada pelo Coletivo RPU Brasil, que monitora se o estado cumpre as recomendações internacionais.

De uma forma geral, o grupo estima que "os dados são gravíssimos e inéditos na história da participação do Brasil na Revisão". Quase metade (46%) de todas as recomendações ultrapassaram o não cumprimento e estão em retrocesso. Somando os 35% que estão em constante pendência, chega-se ao total de 80% de pontos descumpridos. Somente 17% dos tópicos estão em implementação, mas parcialmente, e apenas uma das 242 recomendações está sendo, de fato, cumprida.

No caso específico da violência policial, as recomendações que tratam de legislação relativa às execuções extrajudiciais cometidas por forças de segurança; bem como medidas para reduzir as taxas de homicídio e para prevenção de abusos, "não estão sendo cumpridas".

"No Brasil temos anualmente por volta de 6.000 mil pessoas mortas por intervenção de agentes do Estado. Desse total de mortos pela polícia no Brasil, cerca de 25% se concentram no estado do Rio de Janeiro. As polícias fluminenses mataram, apenas em 2019, 1.810 pessoas. Em resumo, num estado com cerca de 16 milhões de pessoas, suas polícias matam mais de quatro vezes a soma das mortes praticadas por todas as polícias dos EUA, um país com mais de 327 milhões de habitantes", afirma.

Para o grupo, "faz-se imprescindível destacar ainda que no ano de 2018 foi realizada uma intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, com a nomeação de "interventores militares" para o comando da área de segurança pública".

"Se entre 2013 e 2017, as polícias do Rio de Janeiro tiveram participação em média de 15% do total dos homicídios no estado, no ano de 2018 – ano da intervenção federal – esse número passou para 28%, enquanto em 2019, ano da virada de governos de extrema direita nas esferas estatal e federal, as forças policiais foram responsáveis por quase 40% de todas as mortes", destacam.

Os grupos ainda denunciam o não cumprimento das recomendações de 2017 e apontam para exemplos de "casos emblemáticos de violação do direito à vida durante ações perpetradas por agentes armados em serviço, como o episódio que ficou conhecido como chacina do Jacarezinho".

"Invariavelmente essas violações ocorrem num cenário de "guerra às drogas", no entanto, o saldo dessas operações revela uma verdadeira política de extermínio, não de segurança pública, tampouco de saúde pública em relação ao uso problemático de drogas", alertam.

As entidades também questionam a eficácia da formação profissional de policiais em direitos humanos. "Compreende-se que as inúmeras ações implementadas nesse sentido, em diferentes estados brasileiros, não estão sendo eficazes – afinal o quadro de violações segue em vasto crescimento, como já exposto. Faz-se urgente, portanto, uma mudança de perspectiva, que priorize formas de controle democrático da atuação policial em detrimento de investidas em processos formativos que não estão contribuindo para a redução da letalidade policial, nem para a reorientação das ações dos profissionais da segurança pública em conformidade com os protocolos internacionais de atuação", completam.

O tom usado pelo governo também se contrasta com a avaliação da ONU. Relatores da entidade criticam o governo de Jair Bolsonaro por "fracassar" diante da violência policial, cobram respostas, denunciam o "aumento exponencial" de operações durante a pandemia e alertam que o Brasil está violando tratados internacionais e mesmo a Declaração Universal de Direitos Humanos.

Numa carta enviada ao governo brasileiro no dia 13 de dezembro de 2021 e obtida pelo UOL, os relatores da ONU apontam que têm recebido informações sobre uma ação "sistemática" de violência da polícia.

Política de segurança da Era Bolsonaro não é um produto de exportação

Ao camuflar no informe preliminar a ser enviado à ONU dados sobre uma inexistente estratégia para lidar com a violência policial, o governo brasileiro rende homenagens ao óbvio. Reconhece, por meio da omissão, que a política de (in)segurança pública adotada na Era Bolsonaro e implementada por congêneres estaduais do presidente, como o governador fluminense Cláudio Castro, não é um produto de exportação.

No setor de segurança, Bolsonaro fixou duas diretrizes. Numa, baixou mais de três dezenas de medidas para ampliar o acesso a armas e munições. Hoje, colecionadores e caçadores podem manter no Brasil um arsenal de 60 armas. Dispõem de licença para comprar 180 mil munições por ano.

Noutra linha de ação, o presidente popularizou o conceito de excludente de ilicitude. Trata-se de um mecanismo que, na retórica presidencial, se confunde com autorização para que policiais matem pretos e pobres nas periferias das cidades brasileiras.

Discursando há duas semanas numa formatura de PMs em São Paulo, Bolsonaro comparou ministros do Supremo Tribunal Federal a marginais. Estimular policiais a se unirem a civis armados numa espécie de insurreição contra uma hipotética ameaça à democracia: "Nós defendemos a nossa Constituição, a nossa democracia e a nossa liberdade. Esse exército de pessoas de bem, civis e militares, deve se unir para evitar que roubem a nossa liberdade."

Na prática, Bolsonaro atualiza à sua maneira a doutrina dos tempos da ditadura. Naquela época, enquanto fechavam os olhos para a tortura que manchava os porões de sangue, os governos militares tratavam na superfície a política de defesa dos direitos humanos do presidente Jimmy Carter como uma nova versão do imperialismo americano.

Hoje, Bolsonaro celebra a barbárie das chacinas e confunde democracia com Lei da Selva. Essa não é uma mistura que possa ser exposta sem constrangimentos na vitrine internacional da ONU.

Celebração bolsonarista da chacina no RJ é alerta para o dia após a eleição

Não é novidade que, após chacinas cometidas pela polícia ou pela milícia no Rio de Janeiro, perfis bolsonaristas nas redes sociais celebram efusivamente as mortes. Essa falta de respeito à Justiça e o apoio ao justiciamento com as próprias mãos é o mesmo motor que alimenta o risco de insurreição de apoiadores do presidente contra instituições em caso de derrota em outubro.

Desta vez, perfis afirmavam que o Bope e a Polícia Rodoviária Federal, responsáveis pela operação na Vila Cruzeiro, ficaram devendo porque sobraram feridos vivos. De "morreu foi pouco" até "favela só têm bandido", há um orgasmo digital daqueles que não estão nem um pouco interessados em desmantelar organizações criminosas de forma inteligente, cortando fluxos de armas e de dinheiro. Querem a guerra.

E sobre Gabrielle da Cunha, moradora de 41 anos, morta na ação? Nas redes, a morte dela foi justificada com "pena, mas a guerra cobra seu preço" e "se tava por lá, boa gente não era". Essa última, aliás, é uma variação do "se levou bala é porque é bandido", que foi bem comum nas redes durante a Chacina do Jacarezinho, no ano passado. Ou seja, ser morta pela polícia é um atestado de culpa, substituindo a lei e a toga pelo gatilho da pistola.

A função de forças de segurança deveria ser investigar, prender e levar à Justiça as pessoas sobre as quais pesarem evidências de envolvimento com crimes. E ao ignorar suas funções, batem de frente com a Constituição de 1988 e qualquer um que seja responsável por sua efetivação.

O secretário da Polícia Militar no Rio, coronel Luiz Henrique Pires, ao culpar o Supremo Tribunal Federal pela situação na Vila Cruzeiro, dizendo que a decisão da corte que dificultou operações nas favelas durante a pandemia para proteger moradores criou uma migração de criminosos para o Rio, apenas reforçou o posicionamento do presidente. Jair culpa o STF até quando seu café fica frio ou quando escorre leite condensado na sua camisa.

Não só isso: bolsonaristas encaram a operação violenta desta terça como um recado das polícias do Estado e da União de que o STF apita menos do que pensa.

Se nos Estados Unidos, o Congresso foi alvo de ataque, por aqui será o seu vizinho na Praça dos Três Poderes. Não mais com tochas acesas ou fogos de artifício, como já fizeram bolsonaristas, mas com pessoas armadas em nome "de Deus, da pátria, da família e da legalidade".

Em meio a esse clima do "tá tudo dominado", muitos não hesitariam em atender a um chamado do "mito" se as urnas não entregarem o resultado que querem ouvir. E, quando vierem, muitos virão armados – seja porque a sua profissão garante porte de arma, seja porque Jair facilitou o porte e a compra de armas e munição.

A ideologia que substitui a política e a justiça pela violência como forma de resolver conflitos deixa uma montanha de corpos negros mortos em comunidades como o Jacarezinho e a Vila Cruzeiro. Mas também tem o poder de entregar o cadáver da democracia.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *