08/05/2024 - Edição 540

Brasil

Com projeto de ensino em casa, bolsonarismo usa crianças em guerra cultural

Publicado em 19/05/2022 12:00 -

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A discussão sobre a regulamentação do homeschooling, projeto aprovado, na quinta (19), na Câmara dos Deputados, não está sendo guiada para ajudar famílias que, por algum motivo, precisam que seus filhos tenham um ensino domiciliar. Mas pela tentativa de setores da sociedade de garantirem que seus filhos sejam construídos à imagem e semelhança de sua ideologia.

Erra quem pensa que o processo educacional se resume a enfileirar conhecimento técnico na cabeça de crianças e adolescentes. Resumir a escola ao ensino do 2 + 2 e do beabá, como defende uma parte do bolsonarismo, é condenar o futuro do país.

O seu papel também inclui preparar a pessoa para que saiba viver em sociedade, como alguém autônomo e pensante, e não uma engrenagem numa máquina ou um tijolo em um muro.

Que saiba respeitar a fala dos outros e exigir respeito à sua fala, que não apenas tolere a diferença mas consiga enxergar a beleza presente na diversidade, que compreenda através da experiência o que são direitos individuais, mas também o que são direitos coletivos.

Na vivência escolar, há três tipo conteúdo trabalhados: os conceituais (saber os rios da margem direita do Amazonas ou o ano da Revolução Francesa), mas também os procedimentais (como escrever, como calcular, como deduzir, como trabalhar em grupo) e os atitudinais (saber a importância de cumprir regras de normas, de respeitar os seus pares, de ser solidário).

Além disso, professores são profissionais com conhecimento especializado tanto em seu objeto de estudo quanto na metodologia para ensinar. Afirmar que podem ser substituídos dada a baixa qualidade de educação em alguns lugares é rebaixar o ensino a um procedimento técnico que qualquer leigo poderia realizar ao invés de investir em educação.

O direito dos pais de ensinar seus filhos não pode se sobrepor ao direito dos filhos a viver em um ambiente que permita o seu crescimento intelectual e social.

Mas crianças estão sendo tratadas como buchas de canhão do bolsonarismo, que não está preocupado na educação integral delas, mas em gerar uma bolha para que as gerações mais novas sejam uma cópia escarrada do que pensam seus pais e mães.

Educar por educar, passando apenas dados e técnicas, sem conscientizar o futuro trabalhador e o cidadão do papel que ele pode vir a desempenhar na sociedade, sem considerar a realidade à sua volta, sem ajudá-lo a construir um senso crítico e questionador, sem tornar possível que ele escolha sua orientação ideológica, é doutrinar, não educar.

Educar pode significar libertar ou enquadrar. Pode ajudar às pessoas a descobrirem como quebrar suas próprias correntes ou ser o pior cativeiro possível, fazendo com que vítimas se tornem cães de guarda de seus agressores.

Que tipo de educação estamos oferecendo? Que tipo de educação precisamos ter? Que tipo de educação um movimento como o "Escola Sem Partido" e tantas outras propostas fundamentalistas querem implantar?

Com tanta coisa importante para discutir, com tanta ação urgente para tomar, nos pegamos imobilizados numa falsa questão, sustentada por argumentos frágeis e para lá de questionáveis. Presos na cortina de fumaça da suposta doutrinação, empobrecemos um pouco mais o debate sobre educação.

Esperemos que o Senado revise a posição da Câmara. Caso contrário, aquele futuro de direitos pensado na Constituição de 1988 terá ficado um pouco mais distante.

Ensino domiciliar flerta com desperdício e retrocesso

O nome parece sofisticado: homeschooling. Na língua de Camões significa ensino domiciliar. É quando os pais preferem educar seus filhos em casa, longe das escolas. A Câmara aprovou projeto de lei que introduz essa novidade no sistema educacional brasileiro. A proposta foi enviada ao Senado. Se for aprovada, seguirá para a sanção de Bolsonaro. O presidente não vê a hora de converter a proposta em lei. O ensino domiciliar é uma prioridade de Bolsonaro e do bolsonarismo.

A ideia de implantar no Brasil o ensino domiciliar flerta com a excentricidade, a desimportância, o desperdício e o retrocesso. A proposta é excêntrica porque nasceu da tese bolsonarista segundo a qual é preciso afastar as crianças de escolas supostamente convertidas em antros de doutrinação ideológica e de perversão moral.

O projeto e secundário porque interessa a menos de 1% das famílias com filhos em idade escolar. É perdulário porque desperdiça verbas públicas em algo que está longe de ser prioritário num sistema educacional marcado pela precariedade. A ideia representa um retrocesso porque avilta o direito constitucional de crianças e adolescentes de ter acesso à escola.

On ensino doméstico existe em outros países. Mas não há notícia no mundo de nação que tenha se tornado uma potência educacional por permitir aos pais que ensinem seus filhos em casa.

A proposta é também paradoxal, pois deprecia o sistema formal de educação ao mesmo tempo em que atribui a escolas e educadores profissionais a tarefa de aferir a capacidade dos pais de ensinar os seus filhos.

Os alunos domiciliares terão de ser matriculados nas escolas. Seus pais serão obrigados a apresentar relatórios trimestrais das atividades pedagógicas. Estados e municípios serão forçados a montar estruturas para acompanhar o ensino domiciliar, avaliando anualmente os alunos.

Quem for reprovado em dois anos consecutivos ou três anos alternados terá de retornar para a escola.

Num país em que pastores evangélicos foram pilhados trocando propinas por verbas públicas extraídas de um Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação comandado pelo centrão, nada disso parece fazer nexo.


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