19/03/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Em 2022, não vamos escolher um presidente. Vamos definir quem somos

Publicado em 10/05/2022 12:00 -

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Num estudo realizado na Universidade de Harvard, os especialistas cruzaram dois dados fundamentais sobre os momentos que antecederam o genocídio de 1994 em Ruanda: o número de assassinatos em cada um dos vilarejos espalhados pelo país e a força da frequência de uma das rádios locais para chegar aos aparelhos daquela população.

O resultado, no país das "mil colinas" e com uma topografia especial, foi assustador: em locais onde a sintonia era boa, os massacres foram terríveis. Onde a rádio não pegava bem, a população foi em parte poupada.

Antes de avaliar os dados das ondas da rádio, a constatação é de que, quando a perseguição de certos grupos na sociedade se torna a ideologia oficial da elite no poder, estudos como o de Barbara Harff da US Naval Academy apontam que "a probabilidade de uma transição de conflito para assassinatos políticos em massa é significativamente maior".

Em Ruanda, a campanha foi conduzida pela liderança da etnia hutu do governo contra a minoria étnica tutsi.

Mas, em um país com baixa circulação de jornais, poucos aparelhos de televisão e taxa elevada de analfabetismo, "o rádio era o meio dominante para o governo entregar mensagens à população".

Nessa estratégia, surgiu antes do genocídio a estação Rádio Television Libre des Mille Collines (RTLM), que liderou os esforços de propaganda, transmitindo mensagens inflamatórias pedindo o extermínio da minoria tutsi.

Até seu assassinato, o presidente Habyarimana tinha sido um dos mais fortes apoiadores da emissora. "Ferdinand Nahimana, que tinha sido anteriormente o diretor da agência responsável pela regulamentação dos meios de comunicação de massa, ajudou a fundar a RTLM e desempenhou um papel ativo na determinação do conteúdo das transmissões, escrevendo editoriais e dando aos jornalistas roteiros para ler", diz o estudo.

O ódio, portanto, era ensinado e tinha suas justificativas. A estação de rádio, por exemplo, alegava que a violência preventiva contra ele era uma resposta necessária para "autodefesa".

As declarações inflamatórias mais comuns consistiam em relatos de atrocidades por parte dos rebeldes tutsi, alegações de que estavam envolvidos em uma conspiração e que queriam poder e o controle sobre os hutus.

"A linguagem utilizada nas transmissões era desumanizante, pois os tutsis seriam frequentemente chamados de inyenzi, ou baratas", diz.

Anos depois, seus fundadores foram considerados culpados por instigar o genocídio pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda. Mas como isso ocorreu?

A pesquisa da Harvard tenta elucidar justamente essa relação entre a difusão do ódio por parte do governo e suas consequências.

Um dos argumentos foi de que, em Ruanda, a rádio teve um efeito de persuasão direta ao "convencer alguns ouvintes de que a participação nos ataques aos tutsis era preferível à não participação".

Além disso, também difundiam informações de que o governo "não puniria a participação na matança de cidadãos tutsis ou a apropriação de sua propriedade".

Os resultados, portanto, mostraram que RTLM teve um efeito direto na participação em aldeias com acesso às transmissões. Onde havia cobertura de rádio houve um aumento de 12 a 13 por cento na participação na violência total. O estudo ainda estima que cerca de 50 mil pessoas foram assassinadas como resultado do trabalho da rádio.

O ódio ensinado se transformou em morte.

E hoje?

30 anos depois, temos essa irradiação do ódio multiplicada de forma exponencial com as redes sociais e num momento de tensão em nosso país.

Se não bastasse, a base da eclosão do ódio é visível e usa numa cartilha assustadora:

– Meios de difusão de conteúdo criados para deliberadamente mentir, confundir e semear a discórdia.

– O outro lado foi desumanizado, afetando de maneira profunda um dos princípios da democracia: a aceitação de que o adversário é legítimo.

– O meu candidato foi endeusado, passou a ser infalível e hoje lidera uma milícia de crentes em seitas.

– A venda de armas explodiu, inclusive por meio de novas leis que tornaram a posse legal.

– Faltando poucos meses para a eleição, as forças políticas ainda não chegaram a um acordo sobre quais serão as regras do pleito.

– A tortura foi minimizada, abrindo espaço para o debate sobrem quem teria ou não direito a ter direitos.

– O passado foi reescrito, numa manobra para apagar crimes e, pela segunda vez, borrar as vítimas da história.

Se um cenário de genocídio étnico não é o risco mais evidente no Brasil e a rádio africana é apenas um exemplo extremo, o caso de Ruanda serve como um alerta importante: o ódio usado como força para mobilizar uma parte da população destruirá uma sociedade.

Despreparados para a era digital, vivemos a ameaça real de que as noções de convivência e coabitação sejam corroídas. A batalha por nossas mentes envolve disseminar o ódio e, assim, moldar nossas escolhas, nossa aceitação de atos de violência e nossa generosidade seletiva.

O ódio ensinado no Brasil não tem um impacto apenas em outubro, quando iremos às urnas. Ele tem suas lições apresentadas em cada post nas redes sociais e é testado quando se rompe relações com membros da família em nome da nova família política, quando se deslegitima a democracia e se questiona o voto.

O ódio, portanto, mobiliza e define uma sociedade.

Em 2022, não ocorrerá apenas uma eleição no Brasil ou a escolha de um novo presidente.

Estamos diante de uma pergunta muito mais profunda e constrangedora: quem, afinal, somos nós?

Jamil Chade – Jornalista do UOL


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