23/04/2024 - Edição 540

Especial

Crise

Publicado em 06/05/2022 12:00 -

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A "tática do doido", que consiste em negar o óbvio, é utilizada pelo presidente da República diante de denúncias de corrupção. Isso se torna mais difícil quando a realidade dá, diariamente, uma surra de gato morto na cara dos brasileiros, como é o caso do aumento do custo da alimentação. Daí, a estratégia não é mentir e ignorar, mas omitir e disfarçar.

Mostrando que, no fundo do poço, há sempre um alçapão, o IPCA-15 (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – 15), que registra a variação dos preços de meados de março a meados de abril, marcou 1,73% – a maior alteração para uma prévia da inflação deste mês nos últimos 27 anos. Em 12 meses, o acumulado é de 12,03%.

Sim, da última vez que a taxa foi tão alta Take a Bow, de Madonna, Pelados em Santos, dos Mamonas Assassinas, e Eu me Amarrei, de João Paulo e Daniel, estavam entre as músicas mais tocadas. Aliás, os saudosos Mamonas e João Paulo ainda estavam entre nós.

O governo pisou no tomate, que aumentou 26,17%? A inflação tem componentes externos, mas também internos – o que incluem um país sem projeto econômico e um presidente mais preocupado em fazer guerra com outras instituições e gastar bilhões do orçamento para buscar sua reeleição do que com a qualidade de vida da população.

Tudo isso era esperado desde que Jair Bolsonaro assumiu, ou seja, não dá para chorar o leite derramado – até porque seria, hoje, um crime, uma vez que o leite longa vida subiu 12,21%.

Também ficou mais difícil refogar uma cenoura (aumento de 15,02%), fritar umas batatinhas (óleo de soja subiu 11,47% e a batata-inglesa, 9,86%) e fazer um pão francês na chapa (4,36%) não apenas pelo preço dos alimentos, mas também do gás de cozinha. O botijão disparou 16,06%, fazendo com que parte dos brasileiros o substituísse por álcool ou lenha, queimando-se e incendiando suas casas.

Nos últimos 12 meses, segundo o IPCA-15, o grupo de tubérculos, raízes e legumes saltou 68%, o de hortaliças e verduras, 35,76%, o de óleos e gorduras, 26,26%, o de bebidas e infusões, 19,3%, o de aves e ovos, 18,79% e o açúcares e derivados, 18,76%.

Há países que, quando estão enrascados com problemas internos, criam uma guerra fora de suas fronteiras. Por aqui, as polêmicas que desviam o olhar da crise econômica vêm de batalhas contra as próprias instituições, ou seja, o governo entra em guerra contra seu próprio povo.

Entre os efeitos colaterais das ações de Bolsonaro para erodir a credibilidade do STF nas eleições e excitar seus seguidores está uma cortina de fumaça sobre a inflação. O que não funciona muito, pois as pesquisas de intenção de voto vêm mostrando que a questão segue como um dos principais entraves ao crescimento do presidente.

A última pesquisa Ipespe, divulgada no dia 22, apontou que 70% da população consideravam que os preços dos produtos aumentaram muito nos últimos 12 meses e 25% avaliam que eles aumentaram. Enquanto isso, 43% acreditam que eles vão aumentar, 20% que vão aumentar muito e 20% que ficarão como estão, ou seja, manter-se altos nos próximos meses.

A inflação deve ceder na época das eleições, não por méritos do governo, mas por conta da conjuntura. Bolsonaro vai dizer que conseguiu controlá-la e, agora, quer mais quatro anos para fazer o Brasil crescer. Mas, se por um lado, os aumentos estarão mais contidos, os preços em si permanecerão em um patamar tão alto que o presidente terá que usar todos os bots de Twitter que tiver à disposição para incutir essa ideia na cabeça dos brasileiros.

No IPCA de março, a inflação da cenoura nos últimos 12 meses foi de 166,17%, seguida pela do tomate (94,55%) do pimentão (80,44%), do melão (68,95%), da melancia (66,42%), do repolho (64,79%), do mamão (54,95%), da abobrinha (44,99%) e do alface (38,92%).

Com isso, Jair Bolsonaro vai mostrando empenho em garantir o cumprimento de uma de suas promessas de campanha.

Em 11 de outubro de 2018, em entrevista à Rádio Jornal, de Barretos (SP), ele disse que o objetivo de seu governo seria fazer "o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás". Quem viveu a hiperinflação do final da década de 80, deve estar achando tudo isso uma piada de mau gosto.

Inflação ‘comeu’ um terço dos salários no pós impeachment

A inflação, que sobe desde meados de 2020, já corroeu um terço o poder de compra dos salários se considerado o período a partir de 2017, no pós impeachment. Visível na prateleiras de supermercados e nas plaquinhas das feiras livres, a alta dos preços se associa à redução do poder aquisitivo.

Apenas no período de pandemia, entre o final de 2019 e igual período de 2021, o rendimento médio calculado pelo IBGE caiu em torno de 8%, para R$ 2.377. Mas o Dieese lembra que mais da metade dos ocupados (54%) ganhava R$ 1.500 ou menos. Só nos últimos 12 meses, até março, o rendimento caiu 8,7%.

“A queda no poder de compra dos trabalhadores é agravada porque os preços dos produtos da cesta básica subiram ainda mais do que a inflação geral”, informa o Dieese. “Desde o começo da pandemia, o custo do conjunto de alimentos básicos teve acréscimo de R$ 243 em São Paulo, aumento de 47% entre março de 2020 e março de 2022.” Assim, o valor estava em R$ 761 no terceiro mês do ano. Isso corresponde a 63% do salário mínimo oficial (R$ 1.212).

Assim, alguns dos produtos do dia a dia mais que dobraram de preço neste período, também com base na cesta básica paulistana. O café, por exemplo, saltou de R$ 18,48 para R$ 39,08 nestes dois anos – variação de 111,5%. Já o óleo foi de R$ 3,88 para R$ 9,41 (142,5%). O preço da carne aumentou 50%, para R$ 45,74, o que ajuda a explicar por que o consumo desse item foi o menor em duas décadas e meia, segundo a Embrapa.

O litro da gasolina aumentou 53%, para R$ 7,01. E o preço médio do botijão de gás subiu 57% em dois anos, para R$ 109. Em alguns locais do país, chega a R$ 160. “Essa elevação tem obrigado muitos brasileiros a procurarem combustíveis alternativos e, muitas vezes, perigosos, como lenha e álcool”, observa o Dieese.

Famílias voltam a ter endividamento e inadimplência recorde em abril

As famílias brasileiras voltaram a ter índice de endividamento e inadimplência recorde em abril, conforme levantamento divulgado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). As taxas superaram o recorde, que já havia sido batido em março.

Segundo a CNC, o percentual de famílias que relataram ter cheque pré-datado, cartão de crédito, cheque especial, carnê de loja, crédito consignado, empréstimo pessoal, prestação de carro e de casa para pagar alcançou 77,7% em abril, o maior nível de endividamento desde janeiro de 2010, quando começou a ser feita a série histórica da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic).

Há um ano, a proporção de endividados era de 67,5%, ou seja, 10,2 pontos abaixo do percentual atual. Mas diante da inflação alta, persistente e disseminada (IPCA em 11,3% ao ano), as famílias buscam crédito para recompor a renda e pagar suas contas. É quando se endividam.

O percentual de famílias em inadimplência, conforme a CNC, bateu novo recorde, chegando a 28,6% do total de famílias. Isso representa aumento de 0,8 ponto em relação ao percentual de março e 4,3 pontos maior que o verificado em abril de 2021, um retrocesso na evolução, nos últimos três meses.

O cartão de crédito segue como o tipo de dívida mais procurado pelos consumidores, apesar de a modalidade oferecer os juros mais altos.

O indicador de inadimplência está ainda 4,4 pontos maior que o apurado antes da pandemia, em fevereiro de 2020. A parcela das famílias que declararam não ter condições de pagar suas contas ou dívidas em atraso e que permanecerão inadimplentes também acirrou na passagem mensal, com aumento de 0,1 ponto percentual (de 10,8% para 10,9% do total de famílias). O percentual é 0,5 ponto maior do que o apontado em abril de 2021 e o maior desde dezembro de 2020.

O endividamento segue aumentando nos dois grupos de renda pesquisados, com destaque à faixa com renda de mais de dez salários mínimos. Entre aqueles com até dez, o percentual de endividamento chegou a 78,6%. Para as famílias com renda acima de dez salários mínimos, a proporção de endividados está mais acelerada do que no grupo de menor renda, renovou-se no maior patamar histórico, 74,5%, com alta de 0,8 ponto em abril e surpreendentes 11,4 pontos percentuais no ano, maior crescimento observado nessa base de comparação.

Levantamento divulgado em fevereiro pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), mostrou que 69,7% da população brasileira estava endividada. E que desse total, 43,2% disseram que não conseguirão quitar seus débitos pelas mesmas razões apontadas pela pesquisa da CNC: derretimento do poder de compra dos salários, o desemprego e a informalidade, a inflação e a má gestão da economia pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).

“É uma situação que acarreta variados desafios econômicos e sociais, uma vez que muitas dessas pessoas poderão enfrentar dificuldades para se inserir ou permanecer no mercado consumidor”, disse na ocasião o órgão da ONU em nota, além de cobrar ações urgentes do governo para tentar tirar as famílias brasileiras da grave situação.

País deve fechar 2022 com mais da metade dos brasileiros na pobreza

O jornal Valor Econômico publicou no último dia 25 um estudo da Tendências Consultoria que prevê que o total de domicílios brasileiros considerados como de classes D e E deve fechar o ano em 50,7%. Uma década atrás, no entanto, as duas classes representavam 48,7% do total. Além disso, as projeções de longo prazo da consultoria indicam que somente em 2028 o país deve retomar aos níveis de 2014, quando registrou sua melhor marca, com 47% da população nas classes D e E.

O estudo considera como classes D e E os domicílios que tiveram renda mensal familiar de até R$ 2,9 mil em novembro de 2021, considerados “pobres” e “extremamente pobres”. Nessas classes, a informalidade é muito mais comum e a renda, além de volátil, oscilou durante a pandemia, aumentando a dependência dos programas de transferência social.

De acordo com o economista Lucas Assis, responsável pelo estudo, 47,1% da renda desse grupo vem do trabalho. Outros 39% da Previdência Social (aposentadorias). O auxílio Brasil e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) respondem atualmente por 12,3%.

Por sua vez, na classe C a renda do trabalho responde por 90,8% dos recursos. Na classe A, três quartos (74,8%) da renda vêm de “outros” (como ganhos de capital com juros e dividendos, que não são tributáveis), e apenas 24,8% recebem renda do trabalho.

“A classe D/E é a que forma a base da população brasileira, é a mais vulnerável economicamente. É uma população que tem participação relevante dos salários na sua renda, mas depende muito das transferências sociais”, afirmou o economista.

O especialista afirmou que, apesar de “expressiva proteção” às classes D e E nos dois últimos anos, o auxílio emergencial não foi capaz de reduzir a pobreza no país. “Mesmo com a ampliação dos programas de transferência não enxergamos redução da fatia dos mais pobres na população. A gente ainda vai ter uma mobilidade social muito reduzida nos próximos anos”.

Efeito Temer-Bolsonaro

Lucas Assis aponta a deterioração do mercado de trabalho e a distribuição desigual de ocupações e rendimentos entre os trabalhadores como elemento importante da queda da renda das famílias mais pobres. Nesse sentido, a reforma “trabalhista” do governo golpista de Michel Temer fracassou na promessa de aumentar a oferta de empregos no país.

O que houve, desde então, foi o aumento da informalidade. Com empregos sem carteira ou trabalhando por conta própria. Com isso, o rendimento real médio do trabalhador caiu 7% em 2021, na comparação com o ano anterior. Por outro lado, a precarização dos direitos trabalhistas garantiu aumento dos lucros da “megaburguesia” que atua no país.

Legado petista

Marcelo Neri, coordenador do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (CPS/FGV), ressalta que os ganhos dos governos Lula e Dilma (2003-2016) ainda fazem da parcela dos extremamente pobres ser menor do que a registrada no início dos anos 2000. “Durante a pandemia houve redução da pobreza entre idas e vindas por causa do auxílio emergencial. Quando se olha os dados depois do período do auxílio, claramente há aumento da pobreza, mas não se voltou ao que era nem em 2003 nem antes do Plano Real” pondera. “Uma parte do progresso alcançado naquela época se manteve.”

Desde o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, a integração de políticas sociais, estímulo a investimentos e políticas econômicas gerou um movimento de ascensão social no país que levou ao crescimento e fortalecimento da classe média.

Programas como o Bolsa Família e maior acesso a crédito estimularam o consumo de segmentos historicamente marginalizados, alimentando a roda de geração de emprego e renda. Em 2011, a classe média (renda familiar de R$ 2.971,37 a R$ 7.202,57) correspondia a 54% da população, conforme dados do Instituto Locomotiva.

Com a política de valorização implementada nos governos do PT, o salário mínimo teve ganho real de 74%, entre 2004 e 2016. Além de reduzir as desigualdades, o aumento do poder de compra da população alavancou o crescimento econômico e criou empregos. Nesse mesmo período, a taxa de desemprego caiu de 12,4%, em 2003, para 4,8%, em 2014, menor índice da série histórica medida pelo IBGE.

No abismo

Ao fim do primeiro mandato de Dilma Rousseff, em 2014, a participação dos salários no Produto Interno Bruto (PIB) bateu recorde (43,5%). Em 2015, alavancada pela inédita situação de pleno emprego e reajustes acima da inflação para a grande maioria das categorias atingida no ano anterior, a participação salarial no PIB subiu para 44,6%, atingindo o novo pico histórico em 2016: 44,7%.

Após as crises das pautas-bomba em 2015 e o afastamento da presidenta legítima em 2016, viram a regra do teto de gastos, a “reforma” trabalhista e os desmontes da Petrobras e outras estatais relevantes. Ações que reverteram a curva e lançaram o Brasil no retrocesso do desemprego e da queda da renda. Fenômenos agravados pelo descontrole inflacionário.

Desde que começou a compilar dados sobre o poder de compra no país, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nunca havia registrado um valor tão baixo quanto o do trimestre de setembro a novembro de 2021. A renda média no período caiu a R$ 2.444 por mês — valor 11,25% inferior ao do trimestre anterior.

“A classe C, que tinha melhorado de vida, vem sofrendo muito nos últimos anos. Primeiro com a recessão e ,depois, na pandemia. Com o desemprego e a perda da renda, mas principalmente por perder conquistas que já tinham tido. Perder dói muito mais do que deixar de ganhar”, lembrou o presidente do Instituto Locomotiva, Renato Meirelles, também no Valor.


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