25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Num Brasil sem lei, cresce a vigilância contra os cidadãos

Publicado em 21/04/2022 12:00 -

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Se você já fez algum tipo de piada relacionada à Alexa estar espionando a sua casa, é melhor segurar o riso. “Hoje várias pessoas têm. ‘Alexa, liga a TV, liga a luz, fecha a cortina’. Sabe o que a Alexa é? Uma grande solução de escuta ativa em uma residência”, disse com entusiasmo um representante da Techbiz, uma das principais fornecedoras de softwares de vigilância para o governo brasileiro, em uma live da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo.

No evento online, Rafael Velasquez Saavedra da Silva, sócio da empresa, falava aos participantes sobre “tecnologia no combate ao crime organizado”, tema em que é especialista.

A Techbiz não é uma empresa qualquer fazendo propaganda de novas tecnologias em busca de negócios. Ela já é uma das principais fornecedoras de sistemas de vigilância às polícias, ao Ministério da Justiça, ao Ministério Público e às Forças Armadas no país. São mais de uma centena de contratos com os governos federal e de vários estados do país para fornecer o que se chama de softwares forenses, usados em investigações. Com isso, a Techbiz faturou mais de R$ 100 milhões desde 2018.

Na live, Velázquez falou com entusiasmo sobre o uso de novas tecnologias em investigações e no combate ao crime organizado. “É uma nova fronteira”, ele afirmou, mencionando o que chama de “Investigação 360″: o uso de múltiplas ferramentas tecnológicas para levantar informações de suspeitos das mais variadas fontes. Uma das tendências é fazer investigações no que se chama de “internet das coisas” – ou seja, em eletrodomésticos e outros objetos online.

A Alexa é um deles. “Ora, para que eu acione e fale ‘Alexa, faça isso, faça aquilo, toque música’, ela ouve o que se passa naquele ambiente”, ele exemplificou. Por isso, segundo ele, o aparelho pode ser facilmente transformado em uma “solução de escuta ativa”.

Outra tendência é o uso de sistemas que integram telefones celulares ao GPS e ao sistema de som de carros, chamados no mercado de carplay, para bisbilhotar a vida dos usuários. “Será que extrair dados de um carro no futuro não vai ser relevante?”, ele questionou. “Hoje existe tecnologia para extrair dados de computadores e mídias tradicionais, em nuvem, e a criação de um ambiente em que os promotores podem analisar os casos”, propagandeou.

Para André Ramiro, coordenador de privacidade e vigilância do Instituto de Pesquisa Tecnologia e Direito do Recife, o Ip.Rec, a declaração de Velasquez ilustra “a busca constante por vulnerabilidades ou potenciais de monitoramento em dispositivos tecnológicos pessoais”, que é como se constrói a linha de ação dos fornecedores de tecnologias de vigilância. Para Ramiro, trata-se de um alerta não somente para o quanto o ambiente em que vivemos está cercado de focos de monitoramento e coleta de dados, mas também de como as funcionalidades desses aparelhos são ativamente exploradas para fins de vigilância.

Escutas na nuvem

A Techbiz vende no Brasil uma série de tecnologias do tipo. Uma delas é o Snap, software que une informações de redes sociais como Facebook e Linkedin a dados e fotos de suspeitos, informações comerciais e de bancos de dados públicos e governamentais e até dados da dark web. “A maior integradora de soluções de investigações em meio digital da América Latina”, conforme a própria empresa propagandeia, a Snap surgiu de uma colaboração entre a Techbiz e a Divisão de Inteligência da Polícia Civil de São Paulo e tem capacidade de integrar até mesmo dados dos sistemas de segurança pública, câmeras de vigilância e drones.

Mas a maior parte dos contratos da empresa vem das vendas dos softwares da israelense Cellebrite, comercializados no Brasil com exclusividade pela Techbiz. Alguns contratos fazem parte do Projeto Excel, da Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça, que equipa polícias estaduais e cria uma base de dados federal para investigações.

Os contratos da Techbiz envolvem outras ferramentas da empresa israelense, como dispositivos para extração de dados de celulares e computadores e softwares para organizar as informações. A Cellebrite fornece tecnologias que não apenas captam o que está armazenado no celular, mas também nas contas dos usuários em serviços online – e têm a capacidade de extrair informações por um longo período de tempo, inclusive além do autorizado pela justiça.

O UFED Cloud Analyser, por exemplo, é uma ferramenta que “oferece acesso imediato e extração de dados privados baseados na nuvem, sejam eles oriundos de mídias sociais, webmail e armazenamento na nuvem”. Segundo a Techbiz, o software permite a preservação e análise de contas de redes sociais privadas como Facebook, Twitter, Kik, Instagram, além de serviços de “armazenamento de arquivos e outros conteúdos de contas baseadas em nuvem”.

Em 2018, a Cellebrite anunciou uma evolução: a versão 7.2 passou a incluir dados da Alexa e do Google Home, além do Office 365 e Dropbox. “Alto-falantes inteligentes, como o Alexa da Amazon e o Google Home, conquistaram o mundo”, declarou a Cellebrite em seu comunicado de imprensa. Segundo a empresa, todos os clientes de UFED Cloud Analyzer que possuem o contrato de atualização válido têm a funcionalidade à sua disposição.

Perguntamos à Techbiz se esse tipo de tecnologia já foi usada para o fim propagandeado. “Não sabemos se alguma operação de busca e apreensão resultou na apreensão de algum sistema Alexa e ele tenha sido periciado”, minimizou ao Intercept Giovani Christófaro, CEO da empresa. “Não conhecemos casos em que um sistema Alexa tenha sido invadido e usado como escuta ambiental e também não conhecemos ferramentas que possam ser utilizadas com esse propósito”, ele disse.

Segundo Ramiro, todas as situações de vigilância que envolvem a Amazon são alarmantes. Uma delas é a extração de dados acontecer com uma violação no sistema de segurança da empresa, ou um malware espião que concederia acesso à informações privadas em tempo real, ou ainda uma violação que permitia acesso às informações do smartphone conectado à assistente virtual. “Em todos eles, a violação à privacidade e à proteção de dados é bastante marcante”, falou o pesquisador.

Nem tão seguro assim

Em dezembro de 2020, a Cellebrite anunciou que havia quebrado a criptografia e agora conseguiria extrair também dados do aplicativo Signal, popularmente conhecido como um dos aplicativos de mensagens mais seguros. Em resposta, o fundador do Signal, Moxie Marlinspike, negou que houve a quebra de criptografia, mas sim a extração de dados a partir de um celular desbloqueado em posse da Cellebrite.

Um pouco depois, Marlinspike divulgou um comunicado afirmando que tinha conseguido explorar as vulnerabilidades das ferramentas Cellebrite da linha UFED e Physical Analyser. Segundo o fundador do Signal, as vulnerabilidades do sistema permitiriam não só alterar os relatórios de extração de dados passados e futuros, como também inserir ou deletar dados, como foto, texto, contatos, arquivos ou qualquer outro tipo de dado, sem ser detectado. Essa descoberta motivou questionamentos judiciais em casos criminais em que ferramentas da Cellebrite foram utilizadas, além de pesquisas que apontaram outras vulnerabilidades.

A preocupação com a integridade das provas para fins de investigações criminais é importante para garantir uma correta aplicação da lei penal e resguardar os direitos do cidadão de não ser condenado injustamente. A cadeia de custódia da prova, como também é conhecida, permite documentar a cronologia e integridade das evidências, preservando seu valor como prova na investigação criminal. Contudo, há uma lacuna legal no sistema brasileiro em relação às provas em meios digitais.

“Nosso Código de Processo Penal é da década de 1940, e muitos trechos dele não receberam reformas, principalmente para adaptar as medidas investigativas mais invasivas ao mundo digital”, explica Heloisa Estellita, professora da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas.

Na falta de uma lei que regulamenta a utilização de provas digitais para persecução penal, é o próprio Poder Judiciário que tem autorizado o acesso aos dados em nuvem, de acordo com cada caso. Segundo Estellita, as medidas dependeriam de lei específica, da mesma forma que só se pode apreender coisas que têm relação com a apuração criminal em curso, o mesmo valeria para os dados. O mandado de busca deveria especificar os tipos de dados a serem extraídos e o período de tempo da busca, o que não ocorre na prática, com previsões genéricas de acesso a todos os dados de celulares apreendidos.

Já existe no Congresso Nacional um projeto de lei com objetivo de regulamentar a proteção de dados para fins de segurança pública e persecução penal — a LGPD Penal —, que irá impactar diretamente a forma de utilização dessas ferramentas de vigilância pelos órgãos de investigação criminal. “Eu acho que a Techbiz e outros revendedores têm a plena noção de que existe um draft da LGPD Penal, e eles precisam estabelecer qual é o cenário de ferramentas forenses no Brasil, porque isso vai terminar pautando os termos da LGPD Penal”, ponderou Ramiro.

Para o pesquisador, a estratégia da Techbiz nesse momento é de aumentar ao máximo o número de contratos e de fidelizações com as agências de investigação, para que suas ferramentas estejam totalmente integradas nas rotinas investigativas desses órgãos, o que dificultaria a aprovação de uma legislação que restringisse a utilização dessas ferramentas. “A LGPD Penal, quando for estabelecer limite para extração de dados em dispositivos, ela não vai conseguir fazer com que um UFED da vida seja excluído do aparato forense de uma agência de investigação. Então existe uma corrida regulatória, e quem está ditando o status quo é a Techbiz”.

Vigia dentro de casa

A Techbiz garante que, para ter acesso às informações, é necessário que os órgãos de investigação apreendam os aparelhos a serem periciados – o que só acontece com ordem judicial. Para funcionar como escuta ativa, seria necessário que a própria Amazon autorizasse o acesso dos órgãos de investigação às informações gravadas e enviadas à nuvem da empresa.

A Amazon diz que a Alexa só grava quando o usuário fala a palavra de ativação. Para “acordar” o aparelho, é preciso falar uma palavra específica. Segundo a empresa, só depois disso o que você disser é enviado ao servidor na nuvem da Amazon. Além disso, diz a empresa, os áudios enviados para o servidor também são analisados – se o sistema não encontrar a palavra, o fluxo de áudio de sua casa para os servidores é encerrado. São, segundo a Amazon, “várias camadas de proteção para garantir que suas conversas pessoais permaneçam privadas”.

Mas, no ano passado, um usuário percebeu que talvez não seja bem assim. A pessoa pediu à Amazon todas as informações que a empresa tinha coletado sobre ela. Então, se surpreendeu com mais de 3 mil clipes de áudio que ela não tinha a menor ideia que tivessem sido gravados.

No ano passado, em uma piada no Twitter, a própria Amazon mostrou que estava registrando tudo. A empresa resolveu fazer um “exposed” com as coisas que os brasileiro mais falam à assistente virtual – o que mostrou que as conversas não apenas são armazenadas, mas também analisadas e catalogadas.

Ao Intercept, a Amazon afirmou que não compartilha gravações de voz ou outros dados da Alexa com a Cellebrite. Também disse que “não divulga informações de clientes em resposta a ordens de autoridades governamentais” – a menos que seja obrigada a fazer isso para cumprir uma ordem legalmente válida. A empresa afirmou que “oferece oposição a solicitações inadequadas ou exageradas”, sem especificar que tipo de ordem seria classificada dessa maneira.

O sigilo das comunicações é um direito fundamental no Brasil. É por isso que escutas telefônicas devem ser sempre autorizadas pelo Judiciário e só podem acontecer se não houver outro meio de obter provas necessárias, além de outras exigências da lei. Esses pedidos devem ser bem embasados, e somente as informações necessárias para as investigações podem ser acessadas – aquelas trocadas em um determinado período de tempo, por exemplo. O problema é que ferramentas tornam qualquer quebra muito fácil, inclusive o acesso a informações que nada têm a ver com a investigação em questão.

Esse banco de dados com gravações íntimas é, claro, um material rico para investigações. Nos EUA, já há um debate sobre o uso da assistente virtual como prova ou mesmo testemunha em investigações. Por aqui, por enquanto, há uma aquisição desenfreada desse tipo de equipamento, com 60 contratos com a Techbiz para compra de Cellebrite firmados só nos últimos dois anos. Mas o entusiasmo dos vendedores e dos responsáveis pelas investigações contrasta com a proteção legal a possíveis abusos e violações no uso dessas tecnologias.

Na Alemanha, uma decisão do Tribunal Constitucional reconheceu em 2008 o direito fundamental à garantia de confidencialidade e integridade dos sistemas técnico-informacionais. A decisão surgiu depois de uma ação contra dispositivos que permitiam a busca e investigação remota de pessoas suspeitas. Foi uma decisão que combinou a proteção de dois direitos fundamentais: a inviolabilidade do domicílio e a do direito à personalidade, diz Estela Aranha, presidente da Comissão de Proteção de Dados Pessoais da OAB-RJ.

Para ela, há um paralelo entre o entendimento da lei alemã e o ordenamento jurídico brasileiro. “Se todos tivermos sempre a possibilidade de estar sendo vigiados não é possível o desenvolvimento pleno da autonomia humana”, argumenta Aranha. “O desenvolvimento e a consolidação de uma sociedade de vigilância podem, no longo prazo, impactar a liberdade e a autonomia de escolha individual”.

Especialmente se o vigia estiver plantado na sua casa e conhecer todos os seus hábitos e conversas.


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