19/04/2024 - Edição 540

Povos da Terra

O futuro é indígena

Publicado em 20/04/2022 12:00 - Luiz Felipe Stevanim - Radis

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“Nossos territórios não estão à venda!” A frase-manifesto balança ao vento ao lado da bandeira do Brasil, como síntese da resistência dos povos originários contra o avanço da violência, da mineração, das invasões e do desmatamento em seus territórios. A cena foi registrada no fim da tarde de 5 de abril, durante a 1ª marcha do Acampamento Terra Livre (ATL), que aconteceu em Brasília entre os dias 4 e 15 de abril. Ao chegar em sua 18ª edição, a maior mobilização indígena do país reuniu cerca de 7 mil pessoas e mais de 200 povos em defesa da demarcação das terras indígenas e contra a agenda de devastação proposta pelo governo federal e que tramita no Congresso Nacional.

Pelas ruas de Brasília, outra imagem marcante lembra que não há futuro para o planeta Terra sem os povos indígenas, responsáveis pela preservação de grandes áreas de floresta. Contra o passado e o presente de destruição, uma faixa carregada à frente da manifestação sintetiza que “o futuro é indígena”. “A nossa luta não tem fronteiras. O que existe para nós é a unidade para defender a Mãe Terra, que está gritando e pedindo socorro”, afirmou Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) durante a abertura do ATL (5/4).

A mais recente ameaça aos povos originários, alerta a Apib, é o Projeto de Lei (PL) 191 de 2020, de autoria do governo federal, que pretende liberar a mineração em terras indígenas. Em 9 de março, a Câmara dos Deputados aprovou a tramitação do projeto em regime de urgência, por 279 votos a 180, após requerimento do líder do governo, deputado Ricardo Barros (PP-PR). A pressa em ver a lei aprovada foi justificada pelo próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, no início de março: ele argumentou que as exportações brasileiras foram afetadas pela guerra na Ucrânia, pois a Rússia é uma das principais fornecedoras de fertilizantes para o Brasil, dentre eles o potássio, e que seria necessário abrir as terras indígenas para exploração. Contudo, um levantamento feito pelo Instituto Socioambiental (ISA) revelou que os requerimentos para extração de potássio em terras indígenas (TIs) representam apenas 1,6% das jazidas requeridas para atividade.

Na realidade, o PL 191 se soma a outros projetos que tramitam no Congresso Nacional e afetam o direito dos povos indígenas a suas terras, garantido pela Constituição Brasileira de 1988 (veja na página XX). Além de legalizar o garimpo e a mineração nesses territórios, o PL abre brechas para a construção de estradas, hidrelétricas e outras obras associadas à atividade mineradora e viola o direito à consulta prévia, livre e informada, como destacou nota técnica da Abip sobre o tema (11/3).

Como um clamor da floresta, os indígenas presentes no ATL lançaram uma carta aberta, em 5 de abril, com apoio da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas (FPMDDPI), que denuncia os problemas jurídicos e de inconstitucionalidade do PL 191. “É um projeto que atropela a Constituição Federal e ataca, mais uma vez, os direitos dos povos originários do Brasil”, diz o texto.

Em sua fala, Sônia Guajajara fez um chamado para que toda a sociedade conheça e apoie a luta indígena, com um alerta sobre a situação de emergência vivida nos territórios, pois são questões que têm impacto climático e terão consequências para toda a humanidade. “Nós não estamos dando conta mais dessa linha de frente sozinhos: de barrar o avanço da mineração, do garimpo ilegal, da exploração de nossos territórios, da retirada de madeira e da expansão do agronegócio”, apontou.

Com a proposta de “aldear a política” para proteger os territórios e fazer valer os direitos originários, o ATL destacou o protagonismo e a diversidade do movimento indígena, incluindo mulheres, jovens e LGBTQIA+. Representante do povo Guarani Mbya, além de coordenadora da Comissão Guarani Yvyrupa e também coordenadora executiva da Apib, Kerexu Yxapyry lembrou que a Constituição de 1988 garante não apenas a demarcação de terras, mas a saúde, a educação e a preservação do modo de vida de cada povo. “O governo aproveitou o contexto de isolamento social com a pandemia de covid-19 para propor projetos de leis que prejudiquem os povos indígenas”, disse durante a abertura do ATL, ressaltando ainda que os “nossos anciãos conseguiram resistir” desde 1500.

Já o coordenador executivo da Apib pela Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), Dinamam Tuxá, ressaltou que os povos indígenas sempre viveram sob a ameaça de retrocessos, extermínio e genocídio. “O genocídio é praticado e executado pelo próprio Poder Público, poder esse que tem a obrigação constitucional de proteger os povos indígenas e os seus territórios. Infelizmente, ao longo da história, principalmente até a década de 1970, vivemos um verdadeiro extermínio”, pontuou. Contudo, ele ressaltou que o movimento indígena está vivo, “ao contrário dos que os pesquisadores afirmam e do que os governos desejaram”. “Essa diversidade de 305 povos e de um milhão de indígenas em 2022 é reflexo da nossa resistência”, destacou.

Epidemia do garimpo             

“O garimpo tem se espalhado como uma epidemia sobre as Terras Indígenas no país”. A constatação parece apenas uma metáfora, mas retrata um cenário desolador de “rios contaminados, florestas destruídas, comunidades inteiras devastadas”. Essa é uma das conclusões da quarta edição do relatório Cumplicidade na Destruição, publicado em fevereiro pela Apib e pela organização Amazon Watch. O propósito do documento é entender “como mineradoras e investidores internacionais contribuem para a violação dos direitos indígenas e ameaçam o futuro da Amazônia” — para isso, traça uma espécie de mapa da mineração em terras indígenas e não hesita em apontar os responsáveis.

O mar de lama provocado pelos vazamentos de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, e que afetaram as comunidades indígenas que viviam no entorno do rio Doce não é o único envolvimento desastroso da Vale com mineração que impacta sobre a saúde indígena. No Pará, o projeto Onça Puma, mantido pela companhia para exploração de níquel no Rio Cateté, afeta os povos Xikrin e Kayapó que vivem na região. Um estudo realizado pela Universidade Federal do Pará (UFPA) constatou que 100% dos indivíduos que habitam o entorno estão com seus organismos contaminados por pelo menos um metal pesado “em grau alarmante”. Até novembro de 2021, a Vale detinha 75 requerimentos ativos de exploração com sobreposições em TIs na Amazônia no sistema da Agência Nacional de Mineração (ANM), aponta o relatório.

“A contaminação das águas, solos e deterioração da saúde de diversos povos indígenas e comunidades tradicionais segue avançando com casos de vazamentos no Maranhão e no Amazonas em 2021”. O relatório traz ainda um alerta: se o PL 191 for aprovado, uma área de Floresta Amazônica maior que a superfície da Inglaterra — equivalente a 160 mil km2 — pode ser destruída (veja dados abaixo). “O desmatamento ligado à mineração na Amazônia aumentou 62% em 2021, em relação a 2018, ano da eleição de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil”, diz ainda o documento. A mineração é também uma das atividades que mais mata defensores do meio ambiente — com 722 casos de conflito e 17 mortos em 2020.

Outro relatório, publicado pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) com apoio do ISA, em 11 de abril, revela que o garimpo ilegal avançou 46% na TI Yanomami em 2021 em comparação com 2020. Com o título Yanomami sob ataque, o documento mostra que 273 das 350 comunidades indígenas e 16 mil pessoas estão sendo afetadas pela invasão dos garimpos. Apesar de ilegais, as atividades de extração de ouro estão plenamente estabelecidas em diversos pontos da maior terra indígena do país, com construção de mercados, aeroportos clandestinos, pousadas e acesso à internet. Além do desmatamento e da morte de rios, “a extração ilegal de ouro (e cassiterita) no território yanomami trouxe uma explosão nos casos de malária e outras doenças infectocontagiosas, com sérias consequências para a saúde e para a economia das famílias, e um recrudescimento assustador da violência contra os indígenas”, diz o relatório.

O relatório produzido pelos Yanomami traz ainda uma série de denúncias sobre violência e assédio sexual, revelando que garimpeiros teriam exigido sexo com meninas e mulheres indígenas em troca de fornecimento de comida nas aldeias. As denúncias levaram o Ministério Público Federal a apresentar à Justiça Federal novo pedido que obriga a União a retornar as ações de proteção e operações policiais contra o garimpo ilegal na TI Yanomami.

As acusações receberam ampla repercussão na imprensa e reacenderam a violência na região. Em um conflito armado na comunidade Pixahenabi, que é contrária à mineração, deixou cinco pessoas feridas e pelo menos dois mortos, de acordo com informações fornecidas pelo presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye´kuana (Condisi-YY), Júnior Hekurari Yanomami ao jornal O Globo (12/4).

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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