20/04/2024 - Edição 540

Especial

O preço da saúde

Publicado em 27/03/2015 12:00 -

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"No momento de ser admitido como membro da profissão médica, me comprometo solenemente a consagrar toda minha vida ao serviço da humanidade. Tributarei aos meus mestres o respeito e a gratidão que merecem. Desempenharei a minha profissão com consciência e dignidade. Respeitarei com todas as minhas forças a honra e as nobres tradições da profissão médica. Respeitarei os segredos que me forem confiados. Os meus colegas serão os meus irmãos. A saúde do meu paciente será a minha primeira preocupação. Não permitirei que fatores de ordem religiosa, nacional, racial, política ou de caráter social se interponham entre os meus deveres e o meu paciente. Mostrarei o máximo respeito pela vida humana, desde o momento da sua concepção; nem mesmo coagido farei uso de meus conhecimentos médicos para fins que sejam contrários às leis humanas. Faço essas promessas, solene, livremente e por minha honra".

Juramento Hipocrático

 

Fraudes em plantões, realização de cirurgias desnecessárias, uso de próteses vencidas ou inócuas, comissões na indicação de medicamentos, desvio de verbas públicas, desumanização no atendimento. A mercantilização da saúde no Brasil ultrapassa os limites da ética e transforma o sacerdócio em mero negócio.

São muitas as situações em que a medicina tem sido elencada em situações pouco nobres nos últimos anos. Via de regra, no entanto, ao invés de servirem como ponto de partida para mudanças fundamentais na profissão e na forma como os profissionais da área se relacionam com a população e a coisa pública, estes escândalos têm sido observados pelas entidades representativas da classe como ataques à Medicina. O resultado é a perpetuação de práticas que desumanizam a profissão e despertam profunda desconfiança da população.

A série de reportagens exibida pelo SBT em 2013, que revelou o esquema que burlava plantões médicos em hospitais públicos de municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro é um exemplo. Apesar da repercussão pública e das consequências criminais, não pôs um fim a prática. Por todo o país, médicos que colocam seus interesses acima do bem estar dos pacientes continuam a envergonhar àqueles que se dedicam à profissão e a por em risco a vida da população.

Um médico que trabalha há cinco anos na rede pública de saúde de Campo Grande (MS) afirma, por exemplo, que os plantões fictícios ainda são prática corrente no município. Segundo o profissional, que pediu para ter sua identidade preservada por receio de retaliações dos próprios colegas de trabalho, há médicos que ganham mais de R$ 30 mil por mês acumulando plantões que não realizam de forma integral.

“Muitos colegas fazem menos da metade das horas que deveriam fazer. Simplesmente se ausentam das unidades de saúde, não cumprem o plantão integralmente, com a conivência dos demais”, afirma.

Segundo o médico campo-grandense, além da fraude nos plantões, é prática corriqueira entre os profissionais que atuam na rede pública do município a troca de atestados. “Um colega dá um atestado para outro e vice-versa. Assim todos ficam cobertos quando querem faltar ao trabalho”, explica.

Vale tudo por dinheiro

Mais recentemente, uma reportagem do Fantástico denunciou um esquema em que fabricantes de próteses pagavam comissões para profissionais de saúde prescreverem seus produtos. O negócio estaria ocorrendo em cinco estados e os médicos chegavam a realizar cirurgias desnecessárias só para receber comissões dos fabricantes de próteses.

Alguns ganhavam R$ 100 mil por mês pelo serviço. Funcionava assim: o paciente — ou melhor, cliente –, depois de esperar pela cirurgia na fila da rede pública, ia para uma consulta, onde o médico indicava um advogado. Ele ajudava a pessoa a entrar na Justiça pedindo uma liminar que obrigava o governo a pagar pelo procedimento.

Pouco mais de dois meses após o escândalo, as cirurgias com os materiais artificiais caíram cerca de 35% em todo o país, segundo a associação de que reúne planos de saúde.

“Tem que continuar com essa convergência, com essa busca de contínua de combater os maus profissionais, que são minorias, mas causam um estrago tremendo na vida das pessoas e na sociedade como um todo”, aponta o presidente do Fórum Latino Americano de Defesa do Consumidor, Alcebíades Santini.

“A segurança clínica do paciente está em jogo. É um fato para que o governo atente a esta questão e tome as medidas cabíveis. Essa máfia está muito bem orquestrada no setor público e setor de privado de saúde do Brasil”, afirma Pedro Ramos, diretor da Associação Brasileira de Medicina de Grupo (Abramge).

Em Brasília, o governo federal escalou um grupo de ministros para investigar a máfia das próteses. O escândalo também vai passar por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no senado. “Uma vez instalada a CPI, certamente virão crimes conexos. Nós temos um monte de indivíduos que não poderiam estar na medicina, que são criminosos e que mutilaram pessoas”, diz o senador Magno Malta (PR-ES).

Sangre frio

Em Mato Grosso do Sul, a Operação Sangue Frio, que investiga o desvio de dinheiro do Sistema Único de Saúde (SUS) em hospitais públicos de Campo Grande, completou dois anos no último dia 19. Até o momento, ficou constatado prejuízo de R$ 11 milhões.

Quatro inquéritos foram abertos, três já estão concluídos e 20 pessoas foram indiciadas. "São crimes graves. Foi constatada fraude em licitações, peculato, corrupção passiva, ou seja, há um passeio pelo Código Penal", disse o superintendente da Polícia Federal (PF), Edgar Marcon.

Três pessoas foram indiciadas na investigação que apura irregularidades no Hospital do Câncer: o médico e ex-diretor da unidade de saúde, Adalberto Siufi; a filha dela, ex-diretora financeira do hospital, Betina Siufi, e o ex-tesoureiro. Os três podem responder pelos crimes de estelionato, peculato e violação de dever na administração pública, todos na forma continuada, que é quando as irregularidades se repetem várias vezes.

Em relação ao Hospital Universitário (HU), ligado à Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), dois inquéritos apuram irregularidades. Um deles investigou o setor de cardiologia, especialidade médica do então diretor José Carlos Dorsa, e o outro, contratos para a compra de equipamentos e prestação de serviços nas áreas de nutrição e construção civil. Ao todo, 17 pessoas foram indiciadas. Dorsa, três assessores dele, três servidores do HU e 10 empresários e representantes de empresas. Eles vão responder pelos crimes de corrupção passiva, peculato, dispensa ilegal, fraude à licitação e formação de quadrilha.

Desumanização

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a medicina é a carreira que tem o melhor desempenho trabalhista no Brasil, com base em quatro critérios: salários, jornada de trabalho, cobertura previdenciária e facilidade de se conseguir emprego. De acordo com o Instituto, o salário médio dos médicos é o mais alto do mercado (R$ 8,4 mil). Este “privilégio”, no entanto, não diminui a ganância de alguns agentes, especialmente quando estes atuam na confluência entre a saúde e a coisa pública.

É difícil estabelecer em que momento a paixão e o compromisso que originalmente caracterizaram a Medicina, cederam a prioridade ao status social e ao acúmulo de riqueza. Mas parece que cada vez são mais escassos os médicos que antepõem seu compromisso com a saúde do próximo, acima da recompensa econômica ou social que seu trabalho pode representar.

A Medicina virou comércio; paciente é cliente, o que indica que as universidades do Brasil formam médicos empresários; ou, no mínimo, que a lição de humanizar a Medicina não foi aprendida direito. O resultado são os escândalos citados acima – e muitos outros – e de comportamentos como o do vídeo abaixo.

Para fazer frente a esta deformação profissional, que embota os sentidos e a ética de profissionais que deveriam, por definição, cuidar das pessoas, é preciso apostar na humanização. É o que sustenta Emerson Elias Merhy, professor titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para quem é necessário inverter a prioridade da saúde, hoje fincada no mercado, e redirecioná-la para a atenção as pessoas.

“Você percebe que nem todo médico no Brasil está imbuído da ideia de que a vida de qualquer um vale a pena. É lamentável dizer isso, mas digo com experiência. Tenho 40 anos de docência na escola médica. É lamentável a gente ver que muitas das nossas escolas formam bons comerciantes”, afirma.

Para Merhy, a mudança neste paradigma passa pela formação do profissional, mas esbarra em uma filosofia de formação que não privilegia o ser humano. “Temos um processo atrasado, com cursos de formação absolutamente voltados a um mercado perverso. Nossas universidades públicas e privadas são do mesmo padrão ético. Soltamos milhares de profissionais das mais variadas áreas todos os anos, todos sedentos pelo mercado, sem nenhum tipo de obrigação por terem sido formados por um fundo público. Não sentem obrigação nenhuma em devolver à sociedade parte do investimento que ela fez nele.”

Mais humano

O médico Hamilton Lima Wagner é especialista em Saúde da Família e Comunidade, e ajudou a implantar a Estratégia de Saúde da Família (ESF) em Curitiba (PR) na década de 90, e a transformá-la em referência nacional. Para ele, o profissional de saúde precisa aprender a olhar o paciente em sua totalidade.

Wagner sustenta que a formação é vital para estabelecer no profissional de saúde uma noção de compromisso para com a comunidade. No entanto, a vocação também tem um papel neste processo.

“Desde criança eu queria ser médico, tinha esta coisa de me envolver com a comunidade. Mexer com gente, gente que te olha no rosto, te abraça, é uma das minhas alegrias. Às vezes chego à unidade e está cheio de crianças aguardando consulta. Elas correm para mim, pedem colo, querem abraçar. Quando chega um velhinho e me dá um abraço, me dá um beijo e pergunta por que não fui mais a casa dele – às vezes o paciente está bem e não temos tempo de visitar a todos – me cobra, diz que fez um café para me esperar e eu não pude ir. Isso é muito legal. Isso cria um vínculo com a comunidade”, afirma.

Corporativismo e impunidade

Se a formação do médico colabora para a construção de uma visão mais humana de sua relação com o paciente e a coisa pública, a punição de crimes e desvios de conduta também tem o seu papel na construção de uma medicina que mereça o respeito da sociedade. O problema é que, enquanto colegas julgarem os próprios pares, o corporativismo continuará prevalecendo sobre a justiça. Quando o coleguismo prevalece nestas situações, a sociedade sai irremediavelmente prejudicada.

Sociólogos e cientistas políticos afirmam que o lobby exercido por diversas categorias só aumenta a permissividade nas instituições, a contemporização e a sensação de impunidade. “Quantas vezes os conselhos de ética de Medicina absolveram seus pares, mesmo indo contra todas as provas”, questiona Aldo Fornazieri, doutor em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp). “A linha entre amizade e proteção é muito tênue, e extremamente fácil de ser cruzada, mesmo sem querer. A consequência é um enfraquecimento da democracia e a corrupção das instituições”, afirma.

Segundo a socióloga Fátima Pacheco Jordão, o corporativismo está tão arraigado na cultura brasileira que muitas vezes passa desapercebido. “Faz parte dos nossos processos políticos e profissionais. Todas as categorias criam suas entidades de classe para se protegerem. O corporativismo muitas vezes cria uma sensação de impunidade, o que revolta as pessoas. Mas, acho que as coisas estão mudando com o fortalecimento da democracia”, diz.

A omissão da opinião pública, muitas vezes, fortalece estas práticas. “É uma questão muito difícil, pois a sociedade precisa julgar esses tipos de procedimento, mas no final das contas ela tem pouco poder para mudar a situação”, afirma o cientista político Leôncio Martins Rodrigues.


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