28/03/2024 - Edição 540

True Colors

A nova velha polêmica

Publicado em 20/03/2015 12:00 - Guilherme Cavalcante

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Babilônia estreou na última semana com a promessa de uma telenovela com trama envolvente, capaz de reagrupar o brasileiro atualmente disperso entre Internet, videogames e TV a cabo, em frente a TV no horário das 21h. Só que logo no primeiro capítulo, o roteiro escrito por Gilberto Braga e Ricardo Linhares trouxe o polêmico (zZzZz) beijo entre duas personagens lésbicas e idosas. E é claro que os conservadores desse Brasil varonil chiaram.

Aliás, não só chiaram, como encabeçaram campanhas grotescas pelo boicote da novela. Nem preciso dizer as celebridades que puxaram coro: Eduardo Cunha, Marco Feliciano, Magno Malta, João Campos e outras bizarrices políticas que, coincidência ou não, são todas evangélicas.

Até aí não tem novidade. Nem sei nem porque alarde e indignação da nossa parte, para ser franco. Desde que o mundo é mundo e que existe novela na TV Globo, qualquer cena que fuja da norma da época vai ser rebatida com uma campanha conservadora. Será que temos amnésia?

E cada vez que a gente compartilha um link com as críticas desses carolas, estamos dando visibilidade ao retrocesso que eles defendem. Tipo, nada estratégico. Alguém já ouviu falar em ostracismo? Eu super defendo… Esse lance do boicote à novela tem que ser ponto pacificado. Deixa a turma conservadora falar, espernear, fazer birra. O choro é livre e é melhor com ranger de dentes. Tem LGBT na novela, doa a quem doer. Já vou explicar o porquê.

Personagens LGBT, sobretudo gays e lésbicas, vão estar cada vez mais presentes e progressivamente sexualizados nas tramas, sabe por quê? Querido, a fórmula desta narrativa precisa disso, precisa ler a sociedade e propor uma representação dela, nem que seja na forma de ilusão.

Se o expectador não se identificar de alguma forma com a trama, não assiste à novela. E se ninguém assiste a ela, a emissora não fatura com merchandisings voltados especialmente às audiências. Nem mesmo a Globo ia querer implodir esse negócio da China que é telenovela.

Quando o autor quer promover essa identificação, ele precisa bancar o sociólogo e ler a sociedade ou, pelo menos, a sua audiência. E quando ele faz isso, adivinha só, ele lê quem quem tem visibilidade. Cheias de Charme, por exemplo, foi uma novela pensada para a “classe C”, justamente porque naquela época era só desse estrato social que se falava. A própria TV Record está abraçando temas bíblicos, voltados ao público evangélico, cada vez mais crescente.

E se a gente mexer nos neurônios para fazer uma reflexão, a comunidade LGBT, ou pelo menos uma parte dela, é muito mais visível que há dez anos. O próprio Felix, de Amor à Vida, atende a isso, principalmente porque um ano antes houve a legalização (judicializada, que diga-se de passagem) da união estável homoafetiva e a regulamentação (também judicializada) do casamento civil homoafetivo. E por muito tempo só se falou isso. Fala-se até hoje.

A propósito, essa polêmica toda em torno do “novo” está longe de ser inédita. Creio que já falei sobre isso em uma das colunas passadas, mas vai aqui: a lei que implementou o divórcio no Brasil data de dezembro de 1977. Até então, a possibilidade de não mais viver maritalmente com a pessoa com quem se casou era o desquite. Não dava para casar de novo.

Em 1979, estreou na Globo uma série chamada Malu Mulher, protagonizada por Regina Duarte. Foi um sucesso, mas também um escândalo. Sabe por quê? Malu, a personagem, era divorciada.

No entanto, hoje o que mais vemos nas telenovelas são personagens de mulheres divorciadas, mães solteiras… Tem novelas que o filho nunca é do pai, tem história que a mulher casa e descasa com frequência. Império, que acabou a menos de um mês, teve uma noiva que casou no lugar da irmã e o noivo nem se chocou. Hellooo! Por que ninguém jogou pedra na mesma proporção que o selinho da Fernanda Montenegro com a Nathália Timberg?

O lance é esse, com o tempo a audiência absorve. O moral se torna relativizada, porque de uma forma ou de outra, todo mundo padece com ela. Quantos pastores evangélicos, homens e mulheres, já não juraram amor eterno diante do trono (rss) se divorciaram depois para constituir novas famílias? A regra da infelicidade vale para todos. E se o mecanismo está aí, por que não usar? Moral relativizada, como disse.

É bom dizer, no entanto, que não pela novela que ocorre essa indiferença a alguns tabus (ou ex-tabus). Afirmar que a novela influencia desta forma o comportamento da sociedade é um anacronismo. Este gênero teria um poder magnífico se isso acontecesse do jeito que os carolas andam propondo, mas é que a engrenagem gira justamente no sentido oposto. Pode até ser que um a da aspecto representado na narrativa incentive algumas pessoas (por exemplo, denunciar violência doméstica), mas esse enredo não vai parar no roteiro se já não for uma realidade no dia a dia.

E a conquista de direitos do segmento LGBT é, em alguma proporção, realidade. Ou pelo menos, estamos mais visíveis, nem que seja pela violência que sofremos. Faz mais que sentido ter bicha e fancha se beijando na telinha.

E isso está gerando polêmica? Ok. Faz parte. Mas foi assim no fim da década de 70, com Malu Mulher, foi assim em Torre de Babel, quando as duas personagens lésbicas vividas por Cristiane Torlone e Silvia Pfifer foram sumariamente mortas na implosão do shopping. Foi assim em A Próxima Vítima com um casal gay e interracial.

Aliás, também teve orquestramento de boicote a Salve Jorge, sabia? Nesse caso, foi um supercombo, já que São Jorge, além de ser santo católico, também é sincretismo do orixá Ogum, no candomblé. E adivinha quem puxou o boicote? Sim, eles mesmos, pastores evangélicos fundamentalista.

Sem brincadeira, eu realmente louvo a Deus que a TV Record estreou uma versão noveleira de Os Dez Mandamentos nesta semana. Quem sabe essa turma retrógrada se contenta com a história mítica, genocida e violenta da bíblia em vez de fiscalizar o que o resto do país pode ou não assistir. Oremos!

Em tempo: O Brasil dispõe do serviço de Classificação Indicativa, oferecido pelo Ministério da Justiça, previsto na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente. A Classificação Indicativa provê a pais e responsáveis um mecanismo de controle parental, a jovens e crianças de 0 a 18 anos, sobre o conteúdo que é passado na TV, levando em conta a incidência de quatro vertentes: linguagem obscena, uso de drogas lícitas e ilícitas, violência e conteúdo sexual. Beijo entre personagens homossexuais não constituem nenhum fator de inadequação, podendo, inclusive, ser elemento atenuante na atribuição de faixa etária recomendada.

Ah, para conferir a cena, clique AQUI e procure a cena 2. (Infelizmente, a TV Globo não permite incorporar cenas de novela em outros sites).

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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