19/04/2024 - Edição 540

Saúde

Com pandemia e corte de verbas de propaganda, vacinação infantil despenca a pior nível em 3 décadas

Publicado em 23/03/2022 12:00 -

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A pandemia prejudicou a aplicação de todas as vacinas do calendário infantil, como as que protegem contra meningite, coqueluche e sarampo. O recomendado por especialistas, então, era reforçar as campanhas de vacinação, para incentivar mães e pais a levarem os filhos para tomarem as doses mesmo com as dificuldades trazidas pelo coronavírus. Mas o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) fez o oposto: cortou mais da metade dos gastos com propaganda da vacinação, segundo dados inéditos obtidos pela Repórter Brasil via Lei de Acesso à Informação.

O resultado? Uma queda histórica na imunização de crianças e adolescentes em 2021, com a pior cobertura vacinal em mais de 30 anos. E, juntamente com esse quadro considerado um “retrocesso absurdo”, vem o risco do retorno de doenças erradicadas há anos, como a paralisia infantil (poliomielite). 

No ano passado, o Ministério da Saúde gastou R$ 33 milhões em apenas duas campanhas (gripe e multivacinação), uma redução de 52% ante 2020, quando foram gastos R$ 69 milhões nas campanhas de gripe, sarampo, poliomielite, vacinação geral e febre amarela. O corte é ainda maior se comparado a 2017, quando o Programa Nacional de Imunizações (PNI) aplicou R$ 97 milhões em cinco campanhas: hepatites, febre amarela, multivacinação, gripe e HPV. Os valores foram corrigidos pela inflação.

“Eu ouço as pessoas dizendo que não tem mais campanha de vacinação. Mas todo ano tem. O que não tem mais é a comunicação”, critica Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). 

As ações de comunicação incluem campanhas publicitárias em rádio, tv e internet, além de outdoors, cartazes, folders, cartilhas e materiais educativos, distribuídos em postos de saúde e locais de grande circulação, como o transporte público. 

Os cortes nas propagandas não poderiam vir em um pior momento. Isso porque o país vem enfrentando uma redução persistente nas taxas de vacinação infantil – uma queda iniciada em 2016 e que se agrava desde 2019. “As coberturas de hoje estão no patamar de 1987. Isso é um retrocesso absurdo”, diz Ballalai.

Entre as maiores quedas está a da vacina tríplice viral (contra sarampo, caxumba e rubéola), que em 2015 chegou a 96% das crianças, mas em 2021 caiu para 71%; a pentavalente (difteria, tétano, coqueluche, hepatite B e hemófilo B), que caiu de 96% para 68% no mesmo período; e a de poliomielite (ou paralisia infantil), que foi de 98% a 67%, segundo dados do PNI no DataSUS – os números de 2021 estão sujeitos à revisão.

Outro ponto grave que se destaca nos dados obtidos pela Repórter Brasil é a ausência total de campanhas para a vacina contra o HPV desde o início da gestão Bolsonaro. O imunizante, que previne o câncer de colo de útero, é destinado a meninas de 9 a 14 anos e meninos de 11 a 14 anos, mas nunca atingiu a meta de vacinar 80% deste público desde que entrou para o SUS, em 2014. “Há um mito de que a vacina de HPV estimula a atividade sexual. Mas essa teoria, que é falsa, parece estar prevalecendo entre os gestores do ministério”, diz a epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o PNI de 2011 a 2019.

Com a baixa vacinação, o temor hoje é o retorno de doenças consideradas sob controle, como a poliomielite. Nos últimos anos, o retrocesso já causou surtos de sarampo, febre amarela e coqueluche no Brasil, além de casos de difteria e doença meningocócica, segundo Ballalai. Ela ressalta que a culpa não é de pais e mães, mas do Ministério da Saúde. “Não tem como criticar a população se o ministério não investe mais em comunicação [acerca das vacinas] do PNI”.

Para recuperar a cobertura e evitar novos surtos, a comunicação deveria exercer um papel central na estratégia do governo, pois um dos motivos que explicam a baixa vacinação é o fato de a população ter se esquecido dos danos causados pelas doenças. De 1980 a 1994, quando as doenças alvo das vacinas infantis causavam hospitalizações e mortes, como a pólio e o sarampo, as taxas de vacinação cresceram de forma constante, segundo dados da SBIm. Nos anos seguintes, o Brasil viveu um período de altas coberturas vacinais, até começarem a cair em 2016.  

“A alavanca principal que leva a população a se vacinar é a percepção de risco. Por muitos anos, os brasileiros viam as doenças de perto e se preocupavam. Mas, aos poucos, essa memória começa a desaparecer, os índices de cobertura caem e os surtos acontecem”, diz a vice-presidente da SBIm.

“Precisa de publicidade o tempo todo. A imunização não é uma ação pontual. Não adianta fazer campanha esse ano e no ano que vem não. Todo ano tem novos nascimentos e novas vacinas para reforçar. É uma ação eterna que não pode ser desmobilizada”, reforça Domingues. “Sem a comunicação, a população começa a achar que a vacinação não é tão importante e a coloca em segundo plano, que foi exatamente o que aconteceu”.

Foi durante a gestão de Domingues à frente do PNI que se identificou a queda na cobertura vacinal. Em razão disso, o programa decidiu aumentar os gastos com comunicação para mobilizar a sociedade. Os dados obtidos pela Repórter Brasil mostram que os investimentos dobraram em 2017 e 2018. E o impacto foi uma melhora dos índices naquele ano, diz a ex-coordenadora.

“Quando identificamos a queda das coberturas, fizemos um trabalho gigantesco de mobilização da sociedade até conseguirmos reverter essa tendência em 2018, quando as taxas se recuperam. Infelizmente em 2019 e 2020 essa ação não teve continuidade, o que colaborou para que as coberturas vacinais despencassem novamente”, diz Domingues.

Efeito da pandemia

A pandemia de coronavírus também prejudicou a vacinação, segundo as especialistas, em razão do medo dos pais em irem a postos de saúde ou mesmo por causa da mensagem principal do começo da pandemia de “fique em casa”. Contudo, mais uma vez, faltou uma campanha de comunicação eficiente.

“No início da pandemia teve interrupção por três meses da vacinação de rotina. Depois, não houve nenhuma mensagem adequada sobre reabertura dos postos. Faltou uma comunicação das autoridades públicas de que havia riscos altos para a população além da Covid”, diz Ballalai.

Para a ex-coordenadora do PNI, o cenário da vacinação de crianças contra a Covid é “ainda mais grave”, pois não só faltou uma campanha de esclarecimento sobre a importância da vacina e contra as fake news, como o próprio ministério desestimulou a aplicação das doses, atrasando o início da vacinação e difundindo a mensagem de que a vacina era “voluntária”, não obrigatória. “O próprio governo deixou a população confusa”, diz Domingues. Bolsonaro, inclusive, disse que não iria vacinar a filha de 11 anos.

O resultado é que a vacinação da Covid até hoje não decolou – menos de 5% das crianças de 5 a 11 anos receberam as duas doses, segundo a Fiocruz. “Não só faltou uma comunicação positiva, como setores do ministério da Saúde abraçaram a causa antivacina e passaram a ouvir esses grupos”, diz Ballalai. 

O Ministério da Saúde disse, em nota, que “monitora atentamente as coberturas vacinais e tem trabalhado para intensificar as estratégias para reverter o cenário de baixas coberturas”. Ressaltou ainda que nos últimos três anos realizou campanhas de vacinação contra influenza, poliomielite, sarampo de multivacinação para a atualização da carteira de vacinação. 

“A pasta também tem reforçado, junto aos estados e municípios, a importância da manutenção das ações de vacinação de rotina, mesmo durante a pandemia”, continua a nota. O órgão não comentou sobre o corte nas verbas de propaganda nem sobre a ausência de campanhas sobre o HPV. A Repórter Brasil solicitou as taxas de vacinação da vacina de HPV, que não estão no sistema de informação do PNI, mas a pasta não enviou os números. A nota destaca apenas que, de 2014 a 2020, 18,5 milhões dessas doses foram aplicadas.


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