19/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Entrevista: ‘Negação do Holocausto é raiz do negacionismo pandêmico’, diz filósofa perseguida por neonazistas

Publicado em 08/03/2022 12:00 -

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Os negacionistas da pandemia se misturaram a outros na Itália: os contestadores do Holocausto. Desde o ano passado, parte de quem se recusa a reconhecer a gravidade da covid-19 se manifesta contra o passaporte vacinal usando fantasias de detentos dos campos de concentração nazistas.

No Brasil, onde vemos o extremismo florescer sob o governo de Jair Bolsonaro, o negacionismo ganhou contornos de outra natureza, devido ao apoio do presidente. É um negacionismo de estado, segundo definição da filósofa Donatella Di Cesare.

A italiana de 65 anos se dedica a estudar o conspiracionismo e o negacionismo, temas de seus dois últimos livros. Professora de filosofia da Universidade Sapienza, em Roma, ela viveu por 15 anos na Alemanha e tornou-se uma das principais intelectuais da Europa no debate sobre o nazifascismo e a negação dele, o que em alguns países – como a própria Alemanha – é considerado crime.

Seu ensaio “Se Auschwitz è nulla” (“Se Auschwitz não é nada”, em tradução livre), publicado em 2012, acaba de ser reeditado na Itália com atualizações sobre os tempos pandêmicos. Na década passada, o trabalho incomodou tanto que ela foi ameaçada de morte por grupos nazifascistas e obrigada a viver sob escolta armada do governo italiano entre 2015 e 2018, quando a proteção foi suspensa.

O tema do livro, ainda que incidentalmente, conversa com o Brasil de Bolsonaro, fenômeno que Di Cesare tem acompanhado de longe com certa inquietação. O presidente brasileiro se move, ela ressalta, dentro da lógica do “complô no poder”, título de outro trabalho de sua autoria, que foi lançado ano passado na Itália e sairá no Brasil em março pela editora Âyiné.

“Um chefe de governo que nega sistematicamente a pandemia mostra que o negacionismo é um esquema interpretativo por meio do qual a realidade é interpretada, um esquema interpretativo que funcionou com o Holocausto e que agora vem se reapresentando com a pandemia”, me disse Di Cesare.

Além da postura pessoal do presidente brasileiro, outros fatos mostram, segundo a análise de Di Cesare, como o negacionismo pandêmico institucionalizou-se no Brasil: o Exército aumentou a produção de cloroquina nos seus laboratórios, mesmo que ela seja comprovadamente ineficaz contra o vírus; milhares de testes foram esquecidos pelo Ministério da Saúde num depósito até perderem a validade; a compra de vacinas foi retardada pela burocracia governamental; e os ministros Marcelo Queiroga, da Saúde e Damares Alves, dos Direitos Humanos, sugerem recorrentemente que as vacinas podem matar crianças.

O grande maestro do conspiracionismo e pioneiro na adoção do negacionismo de estado foi Adolf Hitler, segundo Di Cesare. Ele moldou esse conceito em 1933, quando se tornou chanceler alemão, embora já o cultivasse desde 1925, quando publicou o livro “Minha luta”, em que denunciava um plano internacional de dominação dos judeus. “Não se trata de uma questão linguística ou retórica, o conspiracionismo levou ao Holocausto. É algo que tem efeito devastador. Somos herdeiros de um fenômeno do século 20”, acrescentou.

Na Itália, país onde o fascismo nasceu e chegou ao poder há 100 anos com Benito Mussolini, principal influência de Hitler, a violência de grupos nazifascistas segue presente na agenda nacional. A senadora e ativista Liliana Segre, 91 anos, sobrevivente de Auschwitz, de onde saiu aos 15 anos após ter o pai e os avós mortos no local, vive há dois anos e meio sob escolta armada, ameaçada de morte pelos mesmos extremistas que colocaram Di Cesare em risco.

As manifestações contra o passaporte sanitário, exigido em todo o país até para se tomar um café no balcão de um bar, viraram alvo da justiça após um grupo de manifestantes antivacina de Novara, cidade no Norte, sair às ruas com os uniformes usados pelos judeus nos campos de concentração e misturar o negacionismo pandêmico com o do Holocausto.

“Quando se compara o passaporte sanitário aos símbolos usados para marcar os judeus, há uma banalização do Holocausto, mas com o objetivo de reivindicar a própria condição de vítima por não ter tomado a vacina. Quem nega não ignora, pois não se trata de desconhecimento e muito menos de opinião. Estamos falando de discurso político”.

Leia, a seguir, a entrevista com a filósofa.

 

Por que os negacionistas pandêmicos utilizam o Holocausto como paralelo para apontarem uma suposta perseguição? 

Quando se relaciona o passaporte sanitário aos símbolos usados pelo nazismo para marcar os judeus, como acontece muito na Itália, ocorre em primeiro lugar uma banalização do Holocausto. Dizer que, no fundo, aquilo não foi um crime contra a humanidade, mas alguma coisa que acontece também agora. A segunda questão é que eles reivindicam a própria condição de vítima diante do público ao dizerem que “o estado impõe o passaporte sanitário”. Há toda uma questão de sentimento, de acusar alguém, que continua a ser muito indefinido, de ser o culpado por minha discriminação. E também um modo de acusar uma conspiração dos poderes fortes, das forças ocultas.

Os negacionistas dos crimes do nazismo foram considerados “assassinos da memória” pelo historiador francês Pierre Vidal-Naquet. Essa expressão pode ser usada para os negacionistas pandêmicos? 

Absolutamente. Essa figura nova do negacionista do coronavírus é também alguém que mata a memória de todas as vítimas da pandemia. Na Itália, é como se tivesse desaparecido uma inteira cidade [houve mais de 155 mil óbitos até o momento], para não falar do Brasil [onde já há mais de 650 mil mortos pela covid-19].

O negacionismo pandêmico tem a mesma raiz do negacionismo do Holocausto? 

Esse é o ponto, e para mim foi uma descoberta. No início da pandemia, quando o negacionismo ainda não tinha se disseminado na Itália, soube por amigos e colegas no Brasil do comportamento de Bolsonaro, que defino como um negacionismo institucional. Ele é um chefe de estado e de governo que nega sistematicamente a pandemia. Esse aspecto me ajudou a pensar no negacionismo como um esquema interpretativo por meio do qual é lida a realidade. Esse esquema interpretativo funcionou com o Holocausto e vem se reapresentando na pandemia. [Nos dois casos] O motivo do negacionismo é a propaganda política. No início da pandemia, Donald Trump tentou implementar o negacionismo de estado nos EUA, mas quem realmente o colocou em prática foi Bolsonaro. Isso me impressionou muito.

O que um presidente ganha com essa propaganda política? 

Essa é uma pergunta fundamental. Bolsonaro é um expoente do que chamamos de soberanismo. Não é o único, temos representantes na Europa e na Itália. O que é interessante e constitui um paralelo entre Bolsonaro e Trump é que se trata de um soberanismo de estado verdadeiramente novo.

Pensando em Trump, ele teve sucesso e continua a ter mesmo fora do governo, porque se propõe a ser um guardião, um salvador do corpo místico da América. Como ele, Bolsonaro é o guardião do corpo místico do Brasil. Do outro lado está nosso inimigo. Trump dizia isso, foi o primeiro a falar em vírus chinês. Os inimigos são os imigrantes mexicanos, as feministas os internacionalistas, etc.

Essa foi a jogada de Bolsonaro, que considerava o vírus uma invenção dos outros. O Brasil não precisa do vírus nem da vacina, pois Bolsonaro, o Führer, o condottiero, [passa a ideia de que] é imune e deixa a todos imunes. Ele se apresentava sem máscara de forma ostensiva. Para ele, a pandemia é uma narrativa conduzida pelos inimigos, e os estrangeiros aproveitam para se infiltrar nela. Essa é a propaganda política. Na minha avaliação, trata-se de um fenômeno novo.

E que, parece, vai marcar a política do nosso tempo. 

Sem dúvida. No fundo, o que é conspiracionismo? É a denúncia de um partido dos estrangeiros que se infiltram, os chamados poderes fortes. E eu, o salvador da pátria, defendo a nação. Essa é uma figura que me recorda Matteo Salvini [senador italiano e aliado de Bolsonaro, que já foi vice-primeiro-ministro da Itália mas hoje está em queda nas pesquisas de avaliação]. Mas há tantos outros por aí. No meu livro [“O complô do poder”], chamo essa figura de porta-voz do engano, o falso profeta. Esse porta-voz diz aos ressentidos que todos foram enganados, tudo é uma farsa: a pandemia é uma farsa; a vacina, uma criação das grandes farmacêuticas, é uma farsa.

O discurso conspiracionista também está presente em outros campos ideológicos, da direita à esquerda, não?

Sim, o encontramos nos dois lados. Inclusive, no que chamo de esquerda improvável. É uma loucura. O porta-voz do engano está à direita, tradicionalmente o conspiracionismo é algo relacionado à direita. Mas agora existe também um conspiracionismo da esquerda, o que é perigosíssimo, um grande problema.

Mais perigoso que o da direita? 

É um outro conspiracionismo. É um sinal de impotência política, tem a ver com a melancolia da esquerda que está derrotada. Em vez de ela usar esse aspecto como um ponto de alerta, para fazer uma análise política, ela faz da suspeita um dogma. Limita-se simplesmente a dizer que existe o poder forte, o mercado financeiro, e que efeito isso provoca? O primeiro é o reconhecimento da impotência política. Se digo que o mercado financeiro é o poder e me limito a reproduzir isso, não posso fazer nada além dessa denúncia.

Outro aspecto gravíssimo é mostrar que não vale a pena ocupar uma fábrica ou lutar, por exemplo, pelos próprios direitos, pois o confronto não é com o capital produtivo, e sim com as fantasmagóricas finanças internacionais. Mas onde estão elas? É uma impotência absoluta. Para a esquerda, é um suicídio.

Quando a senhora fala da esquerda, pensa em algum país ou movimento?

Não, falo em geral.

Por que o conspiracionismo é algo tradicionalmente relacionado à direita? 

Porque começa com Hitler, o maestro do conspiracionismo. Logo que assume o poder, ele começa a falar no grande complô hebraico. Toda a propaganda de Hitler, todos os seus discursos são conspiracionistas. Ele diz que os judeus se infiltram em instituições como os bancos para atacar a nação alemã já em “Minha Luta”, de 1925, para denunciar o judeu-bolchevismo dos intelectuais russos na Revolução de 1917. O nacional-socialismo não se baseia apenas no racismo de sangue e do solo, ele se baseia no conspiracionismo.

A propaganda de Hitler funcionou, a Alemanha nazista respondeu a ela. Não se trata simplesmente de questão linguística ou retórica. O conspiracionismo de Hitler levou ao Holocausto. É gravíssimo, pois tem um efeito devastador. Sem essa propaganda conspiracionista, não haveria o Holocausto.

O negacionismo tem essa mesma matriz conspiracionista. Quanto mais complexo o cenário, maior a ansiedade para encontrar um culpado. São fenômenos que não podem ser subestimados.

A senhora fala no livro sobre um dilema: se partirmos para o debate com os negacionistas, estamos legitimando-os. Mas, se os ignorarmos, deixamos espaço para eles influírem no debate público. E aí?

É um problema de informação, de liberdade de opinião. Eles reivindicam o papel de vítimas. Então, ao lhes tolher espaço no debate, eles reclamam que são censurados. De uma parte, existe esse problema. Por outro lado, você acaba dando espaço para charlatões, para quem na realidade não exprime uma opinião. O negacionismo não é opinião, é declaração política.

A Europa, a Alemanha e a Itália, países que tiveram o nazismo e o fascismo, são os responsáveis por gerar o negacionismo. Em 1945, quando a Segunda Guerra ainda não havia acabado, os nazistas e os fascistas já começavam a negar os seus crimes. Eles queriam contribuir com alguma visão revisionista da história? Não, o objetivo era absolver os regimes, que são os culpados pelos crimes contra a humanidade. Eles negam isso desde o início.

Nas décadas de 1980 e 1990, eles se travestem de revisionistas, contestando o número de mortos do Holocausto, as seis milhões de vítimas. Dizem que o Holocausto é uma farsa, que os judeus se fazem passar por vítimas, mas são os vencedores, pois fundaram até um estado após a guerra – Israel – e hoje detêm o poder. Podemos assumir a negação como uma opinião qualquer? Esse é um grande problema para a informação.

O negacionismo é um produto do século 20, e somos seus herdeiros. Não se trata de uma questão de ignorância. Quem nega não ignora, pois não se trata de desconhecimento e muito menos de opinião. Estamos falando de discurso político.

Esse negacionismo que a senhora diz nascer no final da Segunda Guerra não existia antes? 

Não, é um fenômeno que nasce em 1945. É interessante perceber que os nazistas já eram negacionistas, eles cometem os crimes negando-os. Havia seis campos de extermínios, que não podem ser confundidos com os campos de concentração, que eram maioria e onde estavam aqueles submetidos ao trabalho forçado. Nos campos de concentração, o índice de morte era de 30%, mais ou menos. Já sobre os campos de extermínio, que eram apenas seis, sabemos pouco até hoje.

Em Treblinka, por exemplo, os trens chegavam até o prédio, os passageiros desciam, entravam em fila e logo iam para a câmara de gás. Era uma coisa industrial. Por que eles andavam como ovelhas para a morte? Porque eles não sabiam. Quando desciam dos trens, os agentes nazistas diziam para eles deixarem os pertences e irem tomar banho. Entravam nas salas pensando que era uma ducha, esse era o ponto. Quando viam o destino que estava reservado a eles, já era tarde. Aquele método já era um início da negação, da ocultação do crime.

A maneira pela qual os nazistas escreviam os documentos sobre o extermínio dos judeus já revelava essa negação.

Sim. Quando eles falam em Solução Final [termo descrito num documento do governo alemão que indicava o extermínio dos judeus], o que isso quer dizer? Pode dizer tudo e nada. Em 1944, quando eles entendem que a guerra está perdida, começam a eliminar as câmaras de gás nos territórios ocupados e tentam destruir as provas dos crimes contra a humanidade. Tanto que Auschwitz tem os restos de uma câmara de gás destruída. A negação de hoje é uma continuidade da destruição de ontem. Não é à toa que os negacionistas pedem pelas provas da existência das câmaras de gás.


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