25/04/2024 - Edição 540

Poder

Queiroga enfrenta cerco do Supremo, da classe médica e da própria língua

Publicado em 26/01/2022 12:00 -

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O ministro Marcelo Queiroga enfrenta algo muito parecido com um cerco. É fustigado pelo Judiciário, pela classe médica e por sua própria língua. A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal encaminhou à Procuradoria "notícia-crime" contra Queiroga e Bolsonaro para apurar, segundo as palavras do seu despacho, o "provável cometimento do crime de prevaricação" pela demora em incluir crianças no programa de vacinação contra Covid.

A Associação Médica Brasileira, AMB, divulgou nota desancando o ministro da Saúde. Acusa-o de desrespeitar normas de conduta e preceitos éticos que se esperariam de um ministro cardiologista. "Se o ministro da Saúde é um médico", diz o texto, os brasileiros esperam que "respeite o Código de Ética da Medicina." Para a entidade, Queiroga "age à margem das mais simples normas de conduta e preceitos éticos."

No afã de prestar serviços ao chefe negacionista, Queiroga acaba perdendo o controle da própria língua. Em entrevista à TV Brasil, foi questionado sobre a nota técnica em que o secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, o olavista Hélio Angotti, anotou que a hidroxicloroquina é eficaz no tratamento da Covid e a vacina não. Queiroga repetiu que "ainda não está comprovada" a eficácia de medicamentos do chamado kit Covid. Mas considerou descabida "a confusão que querem criar entre vacina e cloroquina."

Queiroga inverteu a lógica. Não é que a eficácia da cloroquina contra a Covid ainda não está comprovada. A questão é que a ciência já comprovou a absoluta ineficácia do uso desse medicamento contra o vírus. É surreal que, com dois anos de pandemia, um ministro cardiologista ainda esteja escolhendo o lado da Terra plana do qual irá saltar.

Num ponto, Queiroga tem razão: é totalmente descabido valorizar a cloroquina e desqualificar vacina. O ministro renderia homenagens a lógica se demitisse o secretário que promove a confusão, depois de revogar a nota divulgada pelo auxiliar na semana passada, e que acabou sendo excluída (veja abaixo).

A exemplo de Bolsonaro, Queiroga pratica crimes sanitários em série no Ministério da Saúde. O problema é que o procurador-geral da República Augusto Aras não age nem quando é empurrado por despachos como o da ministra Rosa Weber. E o protesto tardio da classe médica já não surte efeito sobre um ex-médico que trocou o jaleco pelo uniforme bolsonarista.

Saúde exclui tabela que, contra a ciência, dizia que vacina não é eficaz

O Ministério da Saúde alterou no dia 26 a nota técnica e excluiu a tabela em que Angotti colocava a hidroxicloroquina como eficaz para o tratamento contra a covid-19 e as vacinas como não efetivas, contrariando uma série de estudos e orientações sanitárias pelo mundo.

No novo documento, no entanto, a pasta não acrescentou a informação de que os imunizantes são eficazes e a hidroxicloroquina não, como mostram os estudos.

A nota anterior, alvo de críticas da sociedade científica, trazia uma tabela que colocava hidroxicloroquina, medicamento com ineficácia comprovada contra o novo coronavírus, em oposição às vacinas, que já se demonstraram eficientes para reduzir os casos graves e as mortes pela doença no Brasil e em outros países.

Uma das colunas perguntava se há demonstração de efetividade em estudos controlados e randomizados para a covid-19. A resposta era "sim" para a hidroxicloroquina e "não" para as vacinas.

A tabela contrapõe os dois métodos ao afirmar que o medicamento tem demonstração de segurança em estudos experimentais e observacionais contra a covid e que a vacina não tem a mesma resposta. Em março de 2021, a OMS (Organização Mundial da Saúde) afirmou que o medicamento não funciona para lidar com a covid-19.

O documento é assinado pelo secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, Hélio Angotti Neto. Ele diz que a nota anterior trouxe "incorretas interpretações".

"Considerando que determinados aspectos da NOTA TÉCNICA Nº 2/2022-SCTIE/MS (0024896684) ensejaram incorretas interpretações, para fins de melhor esclarecimento e no intuito de promover maior clareza, opta-se por sua revisão procedendo-se a exclusão da Tabela intitulada 'Tabela 1 – Tecnologias em saúde propostas para COVID-19 e respectivas informações usualmente relevantes para suas eventuais recomendações', que constava no item '4.17 Assimetria no rigor científico dedicado a diferentes tecnologias', tornando sem efeito a NOTA TÉCNICA Nº 2/2022-SCTIE/MS", diz um trecho do documento.

"Kit Covid"

A nova nota técnica foi publicada no site da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias), mas a decisão sobre as diretrizes do "kit Covid" não mudou. O Ministério da Saúde rejeitou as orientações da Conitec na semana passada.

A tabela sobre hidroxicloroquina e vacinas está em um documento do Ministério da Saúde que reprovou na semana passada as diretrizes elaboradas pela Conitec contra o uso do chamado "kit covid", protocolo que determina o uso de medicamentos como hidroxicloroquina, ivermectina e azitromicina, todos já comprovadamente ineficazes contra a covid-19.

Em nota técnica publicada no site da Conitec, Angotti Neto disse que a rejeição foi feita tendo em vista o "respeito à autonomia" de médicos e a "necessidade de não se perder a oportunidade de salvar vidas".

Aliado ideológico do presidente Jair Bolsonaro (PL), Angotti Neto promoveu quatro audiências públicas em 2021. Metade era relacionada aos tratamentos hospitalar e ambulatorial para a covid-19. Inundadas com manifestações de negacionistas, as audiências e consultas públicas feitas pelo governo sobre o tema serviram para adiar a decisão e para não contrariar Bolsonaro. A Conitec reprovou o uso hospitalar das drogas em junho do ano passado.

O partido Rede Sustentabilidade acionou o STF (Supremo Tribunal Federal) para pedir o afastamento de Angotti Neto. Na petição, a legenda também pediu a suspensão da nota e a determinação de elaboração de uma nova diretriz, que observe normas e critérios científicos e técnicos.

Além disso, há o pedido de abertura de um processo administrativo no Ministério da Saúde contra o secretário, bem como procedimentos de investigação no MPF (Ministério Público Federal) para apurar eventuais responsabilidades criminais e atos de improbidade administrativa.

Brasil morre sob Bolsonaro, e não vai para o céu

Bolsonaro virou uma pessoa invariável. Sempre corresponde aos que não têm nenhum motivo para confiar nele. A notícia de que o presidente cogita preencher uma vaga que será aberta na diretoria da Anvisa em junho com a indicação de um médico negacionista tem um lado positivo. Indica que o índice de insanidade de Bolsonaro não aumentou. Continua nos mesmos 100%.

O lado ruim é a confirmação de que o Brasil virou mesmo um hospício dirigido pelos malucos. O preferido de Bolsonaro para a vaga na agência incumbida de aprovar remédios e vacinas era o médico Hélio Angotti. Exerce no momento a chefia da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Ministério da Saúde, que enviou à lata de lixo diretriz elaborada por médicos e cientistas. Coisa aprovada pela Conitec, comissão ligada à pasta da Saúde. Invalidou-se um trabalho técnico que atesta, com dois anos de atraso, que medicamentos como a hidroxicloroquina são inúteis no tratamento da Covid.

A essa altura da crise sanitária, a presença de um personagem assim, tão alucinado, numa secretaria da pasta da Saúde é um atentado à sanidade pública. Mas a presença da maluquice no terceiro escalão do governo se torna banal quando se recorda que acima do secretário negacionista há o ex-médico Queiroga e Bolsonaro, um presidente sem comprovação científica.

Nesse ambiente, a mera cogitação de enfiar o negacionismo de Angotti dentro dos quadros da Anvisa é a confirmação de que Bolsonaro não sofre de insanidade. Ele aproveita cada segundo dela. Tomado pela incapacidade de reação, o Brasil morre aos poucos. E não vai para o céu.


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