29/03/2024 - Edição 540

Ponte Aérea

Nenhum racismo é tolerável

Publicado em 20/01/2022 12:00 - Raphael Tsavkko Garcia

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

186 jornalistas da Folha fazem carta aberta pra reclamar de um texto sobre "racismo reverso" que em momento algum fala em "racismo reverso" e que não se pode dar espaço pra discursos que minimizam o racismo quando o texto faz exatamente o contrário.

É meio desesperador ver que 186 jornalistas leram um texto e foram incapazes de entendê-lo precisando inventar termos que nunca foram usados (racismo reverso) e inventar uma "minimização" de um problema como se pra falar de A fosse preciso falar de B senão você defende B ou algo assim – isso porque o Antonio Riserio deixou claro no texto que em momento algum discute a validade do racismo que sofrem os negros, até porque seria impossível fazê-lo.

Colocar relativização do holocauso, antivaxx, defesa da Ditadura e afins do lado de um texto que EM MOMENTO ALGUM questiona a existência do racismo – na verdade aponta que ele é muito mais amplo – é algo que beira a canalhice mesmo.

Você pode discordar da tese do Risério, tranquilo, mas dizer que existe racismo num texto que NÃO NEGA RACISMO é canalhice.

Sim, é preciso repetir.

O espaço público foi tomado por gente incapaz de pensamento complexo e que tem medo de qualquer tese que não seja a sua.

Já tem tempo que qualquer opinião discordante do diminuto mainstream identitário é tratado como ofensa capital. Qualquer proposta de debate é recebido com pedras – e cancelamento.

E tudo sem qualquer análise do mérito. O mero ato de discordar ou nem chegar a tanto, mas propor uma leitura mais ampla, minimamente divergente, já é suficiente para o cancelamento e a tentativa de censura – como a que propõe essa carta dos "jornalistas" da Folha.

Esse tipo de recurso ajuda alguém? Promove alguma pauta? Não.

Pelo contrário, amplia o antagonismo, divide a própria esquerda, cria uma luta fratricida em que você é forçado a dizer amém para uma minoria barulhenta e ser constrangido a se calar e não pensar porque senão você será desqualificado de todas as formas possíveis.

Essa turma tão afeita a falar em opressões é a que mais usa dessa ferramenta para silenciar vozes dissidentes.

Discorde do texto. Aponte suas falhas, seus erros e limites – eu mesmo fiz isso, o texto tem sim falhas ou ao menos limitações -, mas pelo menos seja honesto de discutir com argumentos, não com chavões vazios, ad hominem e com tentativa de censura.

REAÇÃO

Impecável a carta do Sergio Dávila, diretor de redação da Folha.

Ele lembra a quem defende censura que tal absurdo não cabe no jornal – ainda mais com acusações falsas e canalhas.

Excelente.

Alguns reclamam de "ameaça velada"…

De que?

"Ameaça" nem um pouco velada de defender liberdade de expressão, valores democráticos, pluralismo de opiniões, enfim, princípios básicos de um jornal – ainda mais diante de quem se diz jornalista e abertamente prega censura tentando forçar o veículo no qual trabalham a se submeter aos seus caprichos autoritários.

Os ofendidos por um debate que em momento algum nega racismo – pelo contrário – querem o que? Que o jornal se submeta aos desejos deles e implantem uma censura na redação e nada que os ofenda seja debatido ou publicado?

Os identitários estão tão acostumados a conseguir tudo que querem, a intimidar na base do grito, a submeter e humilhar que quando são confrontados ficam pasmos, não acreditam. "Como assim nossos berros por censura não foram ouvidos?"

Isso me lembra aquele caso do racismo fake na festa de uma editora de revista na Bahia (que eu escrevi pra Quillette). Basta uma turba gritando que o mundo tem que baixar a cabeça e aceitar – prejudicando supostas vítimas e, no caso agora, prejudicando o próprio jornalismo.

Se jornalistas de um jornal defendem abertamente a censura o que o diretor de redação poderia fazer? Na opinião deles, claro, se submeter à censura. Mas, bem, não foi o que aconteceu.

Felizmente.

Que a Folha seja devidamente criticada por seus erros, mas não pelos seus acertos.

Em tempo, aqui tenho uma discordância relevante com o Antonio Riserio. Ele se colocou contra o conceito de "racismo estrutural" em um post no Facebook, reproduzido pelo Poder 360.

Eu penso de forma diferente dele – ainda que eu entenda seu raciocínio.

Eu não estou certo de que a existência de um racismo estrutural significaria a inexistência de outras formas de racismo – apenas estes não seriam decorrentes ou submetidos à estrutura que fundou o Brasil, de opressão (maior) a negros, mas seriam "racismos".

A estrutura pressupõe ser a fundação do Estado brasileiro que DE FATO exclui mais negros que quaisquer outros grupos. Me parece inegável. Isso, no entanto, não impede que mesmo àqueles submetidos à estrutura racista não sejam racistas, apenas que são vítimas mais comuns que outras.

São alvos preferenciais, ainda que a estrutura não signifique que não possam também ser racistas.

O problema, claro, é COMO militantes usam o conceito de racismo estrutural – da forma como usam antissemitismo não seria racismo, tampouco asiáticos jamais seriam vítimas de racismo, apenas aqueles submetidos à estrutura, tomada como algo absoluto e desprezando relações de poder que são muito mais fluidas.

Por exemplo, uma gangue possui efetivo poder em um território, até mais que o Estado (o suposto "titular" da estrutura) – e nesse ponto a crítica do Risério tem mérito, no entanto, como comentei antes, isso não muda o fato de que a própria gangue não deixa de ser um reflexo das estruturas de poder do Estado.

Temos a carta aberta em apoio à liberdade de expressão e ao Risério com mais de 600 assinaturas.

BOM DEBATE

O Joel Pinheiro da Fonseca publicou uma excelente coluna na Folha em que pontua algo importante: Racismo não precisa ser estrutural para ser racismo (https://outline.com/6CJ86n) – além de acertar na crítica fundamental ao texto do Risério, da qual compartilho.

Isso em nada diminui a perversidade do racismo estrutural ou a necessidade de políticas públicas para mitigar seus efeitos, pelo contrário, apenas corretamente deixa claro que racismo é algo muito mais amplo e que não existe um titular do termo – ou titular de sofrimento.

Oras, se racismo apenas existe se for institucional, então antissemitismo inexiste no Brasil? Asiáticos não podem ser vítimas de preconceito? Não são "dignos" de serem ofendidos em sua essência? Será que o preconceito contra indígenas é estrutural ou só cabe uma estrutura?

Esse raciocínio dialoga com algo que o Wilson Gomes questionou no Twitter, a quem serve a suposta pureza da minoria?

"Isso me lembra os clássicos argumentos dos marxistas que atribuíam aos pobres, ao povão, à massa todas as virtudes e nenhum defeito. Esse tipo de argumento que Gramsci desclassificou como de "sociedade protetora dos animais". Parece respeitoso, mas é o contrário."

Não resta dúvida que o identitarismo deriva – por mais nonsense que possa parecer – do marxismo. Ou ao menos que deriva da esquerda que é ou foi marxista e que por muito tempo pensava nos trabalhadores como imaculados, como meros explorados e humilhados incapazes de errar ou de serem responsabilizados por seus atos. A gente vê essa esquerda "protetora dos animais" ainda bastante atuante, aliás.

Essa pureza do trabalhador se vê na suposta pureza da minoria. Claro, isso não vale caso a pessoa não reze pela cartilha, aí vira capitão do mato, perde direito à sua identidade, etc. Rola um processo de desumanização bem pesado contra aqueles que discordam dos dogmas identitários – vide os prints com ataques ao Gomes que até branco virou, despido de sua identidade ao não se encaixar no dogma militante.

Enfim, a discussão serviu para se pensar um pouco. Racismo não precisa de estrutura (ou ser estrutural) para se manifestar, para ser odioso e para se combater. Racismo é preconceito racial, ponto. Um sistema pode ser organizado com base em racismo, mas não é imprescindível, tão somente uma triste "evolução".

Não é uma olimpíada da opressão, a existência de múltiplos racismos não muda o fato de que o racismo contra negros é uma chaga social. Racismo do bem não existe.

Leia outros artigos da coluna: Ponte Aérea

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *