19/04/2024 - Edição 540

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Um ano após tentativa de golpe nos EUA, Trump segue impune

Publicado em 07/01/2022 12:00 -

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A cena parece ter saído de um roteiro B hollywoodiano: um homem, com o peito nu e a cara pintada com as cores da bandeira dos Estados Unidos, usando um chapéu com chifres, marcha ao lado de outros milhares para invadir o Capitólio. O que parecia ficção estampou as manchetes de todos os jornais no dia 6 de janeiro de 2021, quando a multidão, insuflada pelo então presidente em exercício Donald Trump, interrompeu a sessão do Congresso que validava a vitória eleitoral de Joe Biden.

"Acho que muita gente ainda subestima a importância histórica deste evento, que foi uma grande ameaça à nossa democracia e é um problema que não resolvemos", avalia a professora de história da Duke University, Nancy MacLean.

Doze meses depois da invasão, dezenas de pessoas foram presas e mais de 700, processadas. Houve, na época, figuras públicas e ativistas usaram sua voz para condenar a marcha e a postura de Donald Trump. Tanto republicanos, quanto democratas, vieram à público contra o então chefe da Casa Branca — mas não foi suficiente.

"Ao meu ver, não houve uma resposta dura, institucional. Nada aconteceu com Trump e o Departamento de Justiça não fez nada a respeito desse atentado democrático", diz o cientista político Valerio Bruno, que trabalha como pesquisador sênior no Centro de Análise da Extrema Direita, um think tank internacional. "De um ponto de vista europeu, posso afirmar que qualquer tentativa de minimizar ou amenizar o ocorrido é perigoso", completa.

Para o Dr. Thomas Keck, professor de ciências políticas da Syracuse University, o buraco é ainda mais embaixo: "estamos falando de um golpe". O pesquisador afirma que percebe que muita gente acha que o pior já passou, mas não concorda com essa normalidade. 

"Muitos acadêmicos que estão familiarizados com a instabilidade democrática histórica, no mundo todo, estão alertando para o fato de que o presidente em exercício dos Estados Unidos organizou um golpe de estado. Não foi bem sucedido esse golpe, mas poderia ter sido. Independentemente de a estratégia ter sido bem desenhada ou não, golpes, em geral, são sinal de uma democracia problemática", pontua.

Os desafios da democracia estadunidense, porém, pouco tem a ver com os acontecimentos mais recentes, e sim com a sua raiz. "Os Estados Unidos têm um sistema eleitoral disfuncional e obsoleto, que permite que líderes cheguem ao poder mesmo sem apoio popular", argumenta Keck.

O presidente dos Estados Unidos é escolhido pelo Colégio Eleitoral, que por sua vez é escolhido pelo voto popular. Mas existem distorções na representação de diferentes estados, e o tamanho de sua população, no Colégio Eleitoral. Assim, é possível ser eleito presidente mesmo perdendo no voto popular. Trump, e antes dele George W. Bush, em 2000, entre outros presidentes, foram escolhidos para a Casa Branca pelo Colégio Eleitoral mesmo não sendo os candidatos com o maior número de votos da população. 

Keck ressalta, porém, que a demografia americana vem mudando rapidamente e o país tende a ficar mais miscigenado e, com isso, progressista. "O problema é que esses homens cristãos brancos, que controlam o país há gerações, sabem que estão perdendo controle da nação, então eles colocam em prática estratégias desesperadas para mudar as regras do jogo a fim de beneficiar o partido republicano", conclui Keck. 

A professora Nancy não apenas concorda, como mostra evidências. "Estados controlados pelos republicanos aprovaram leis que desencorajam a votação e alteraram a maneira como as cédulas são contadas. Eles estão tornando partidário um trabalho que deveria ser imparcial, e com isso estão dando a essa facção liderada por Trump o poder de decidir quem ganha e quem perde nas urnas". 

Era de se esperar que a invasão ao Capitólio, condenada mundo afora, arranhasse a imagem de Trump – e talvez até tenha feito, num primeiro momento. "Há republicanos da base e do alto escalão que são muito críticos a Trump, mas essas pessoas sentem que não têm mais lugar no partido. A grande verdade é que Trump e seus apoiadores estão no controle do partido Republicano e isso é, de novo, um perigo enorme para a democracia americana, porque a literatura política nos ensina que uma das principais salvaguardas é centralizar a elite dos partidos de ambos os lados. Quando isso é violado, líderes autoritários têm mais facilidade para desmantelar as instituições e normas democráticas". 

Todos os especialistas ouvidos acreditam que é possível e provável que uma figura similar a de Trump, se não o próprio ex-presidente, volte ao poder nos Estados Unidos se nada for feito. "O problema é que, se tivermos mais uma eleição contestada, eu temo que cause uma grave ruptura nas forças militares no país", adverte a professora MacLean. "Um levantamento mostrou que 1 a cada 10 pessoas presas por conta da invasão ao Capitólio era militar e tantos outros militares apoiam as mentiras de Trump. Isso torna evidente como as instituições da nossa sociedade estão ameaçadas". 

Como todo movimento político é também um pouco de efeito dominó, o cientista político e estudioso da extrema direita Valerio Bruno se mostra particularmente preocupado. "Muita gente acha que os Estados Unidos são a maior democracia do mundo; que é uma espécie de farol democrático da sociedade moderna. Se é mesmo isso, acho tudo isso um péssimo exemplo para os outros países".

Biden diz que Trump é "perdedor" que instigou "insurreição"

No discurso que marcou o primeiro aniversário da invasão do Capitólio, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, prometeu que "não permitirá que ninguém coloque um punhal na garganta da democracia" americana e acusou seu antecessor, Donald Trump, de ter "tentado impedir uma transferência pacífica do poder" em 6 de janeiro de 2021.

"Pela primeira vez na nossa história, um presidente não apenas perdeu as eleições; tentou evitar a transferência de poder pacífico quando uma multidão violenta invadiu o Capitólio", disse Biden em discurso na sede do Congresso americano.

"Não era um grupo de turistas. Era uma insurreição armada", disse Biden nesta quinta-feira. Sem citar diretamente o nome de Trump, Biden disse que seu antecessor, ao propagar a tese falsa de que houve fraude eleitoral, "criou e espalhou uma rede de mentiras sobre as eleições de 2020".

"Precisamos estar absolutamente claros sobre o que é verdade e o que é mentira. Aqui está a verdade: um ex-presidente dos Estados Unidos da América criou e espalhou uma teia de mentiras sobre as eleições de 2020. Ele fez isso porque valoriza o poder acima dos princípio, porque coloca seu próprio interesse à frente do de seu país", criticou o político republicano. "Ele não consegue aceitar que perdeu."

"Não se pode amar nosso país apenas quando se vence. Não se pode obedecer à lei apenas quando lhe convém. Não se pode ser patriota abraçando as mentiras e as permitindo", acrescentou.

Biden ainda avaliou que os Estados Unidos e o resto do mundo travam no momento uma batalha entre a democracia e o autoritarismo.

"Vivemos num ponto de inflexão na história, tanto em casa como no exterior. Estamos travando novamente uma luta entre a democracia e a autocracia; entre as aspirações da maioria e a ganância de poucos. Não permitirei que ninguém coloque um punhal na garganta da democracia: defenderei esta nação", concluiu.

Falsas acusações de fraude

Visivelmente irritado, o presidente americano reiterou que há "zero provas" das acusações de fraude eleitoral que Trump fez após as eleições de 2020. "Ele não é apenas um ex-presidente. É um ex-presidente derrotado, por uma margem de mais de 7 milhões de votos, em eleições plenas, livres e justas", disse Biden.

Biden acusou ainda Trump de negligência, ao ficar "sentado numa sala de jantar, perto do Salão Oval, vendo o que acontecia pela TV". "Ele não fez nada por horas. Havia vidas em risco."

Por fim, o democrata direcionou críticas ao Partido Republicano, cuja maioria protegeu Trump e bloqueou uma tentativa de impeachment após a insurreição, afirmando que muitos de seus membros estão "transformando a legenda em alguma outra coisa".

Antes de Biden, a vice-presidente Kamala Harris também fez um breve pronunciamento, no qual comparou o 6 de janeiro de 2020 a outros episódios trágicos da história do país, como o ataque japonês a Pearl Harbor, em 1941, e os atentados de 11 de setembro de 2001, por extremistas islâmicos.

Lançar um ataque tão direto a Trump – embora Biden não tenha mencionado o nome de seu antecessor durante o discurso – marca uma mudança de estratégia para o presidente democrata, que passou a maior parte de seu primeiro ano no cargo focado em implementar sua própria agenda, em vez de atacar Trump.

Mas democratas, alguns republicanos e muitos observadores independentes têm alertado que o estrago causado por Trump para minar a confiança no sistema eleitoral deixou uma herança nefasta.

De acordo com uma pesquisa Reuters/Ipsos, cerca de 55% dos eleitores republicanos acreditam nas acusações falsas de Trump, que foram rejeitadas por dezenas de tribunais, departamentos eleitorais estaduais e até ex-membros do antigo governo.

No entanto, Trump continua a insistir nas acusações mentirosas. Após o discurso de Biden, divulgou um comunicado afirmando que seu rival democrata quer "cancelar" a discussão sobre "a fraudada eleição presidencial de 2020". "A grande mentira foi a própria eleição", alegou o ex-presidente.

O republicano acusou ainda Biden de usar seu nome "hoje para tentar dividir ainda mais a América". "Esse teatro político é apenas uma distração para o fato de que Biden fracassou totalmente", afirmou Trump.

Democracia ameaçada

A invasão do Capitólio não deveria ter sido uma surpresa. Mesmo antes de os locais de votação na disputa presidencial terem sido abertos, o então presidente Donald Trump já havia anunciado que, se perdesse a corrida à Casa Branca, só poderia haver uma razão: fraude eleitoral. Ele e milhares de apoiadores não aceitariam uma derrota.

Trump perdeu. E seus apoiadores radicais invadiram o Capitólio no dia em que o Congresso deveria confirmar formalmente a eleição do vencedor, o democrata Joe Biden. As imagens abalaram o mundo já na época. Mas somente há algumas semanas sabe-se quão perto os EUA estiveram de um verdadeiro golpe de Estado.

Foi somente graças à capacidade de reação de alguns poucos funcionários que um banho de sangue no prédio do Parlamento foi evitado. Poderíamos até mesmo ter visto a morte de um vice-presidente, assassinado por se ater às regras democráticas, e não às ordens do presidente. Foi por muito pouco.

O que deveria ter sido um sinal de alerta para todas as forças democráticas, independentemente da filiação partidária, tornou-se apenas mais uma peça no destrutivo espetáculo político americano. Até hoje, os republicanos tentam impedir que os acontecimentos daquele dia sejam esclarecidos.

Em vez de bom senso e de um retorno a uma disputa política pelo argumento mais convincente, na qual fatos e o respeito por uma opinião diferente desempenham um papel, a guerra de trincheiras se aprofundou.

Desde o primeiro dia da era Biden, os republicanos se preparam para a próxima campanha eleitoral pela presidência. Enquanto os democratas no poder se perdem nas brigas entre suas várias alas, até mesmo a mortal crise do coronavírus é explorada politicamente. Os republicanos bloqueiam importantes ajudas financeiras federais para que o governo Biden não marque nenhum ponto para a próxima campanha eleitoral.

O mais perigoso, no entanto, é a mudança dos distritos eleitorais, o que restringe os direitos democráticos fundamentais de negros e outras minorias. A isso se somam diferentes requisitos que, em última análise, têm todos a mesma finalidade: impedir que potenciais eleitoras e eleitores democratas possam votar.

Os Estados Unidos tinham, justificadamente, orgulho das conquistas do movimento de direitos civis. Por mais imperfeito que o país continue a ser, os pilares básicos de uma democracia pareciam estar seguros com o direito de voto para todos os cidadãos.

Mas esse não é mais o caso. É preciso se preparar para o pior em um país onde, graças às redes sociais, que mudaram as regras do jogo, é mais fácil para teóricos da conspiração racistas do que para o presidente em exercício dominar o clima político. Pelo menos por ora, ninguém parece ter uma resposta sobre como deter populistas dispostos a derrubar o sistema para garantir poder duradouro para si.


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