28/03/2024 - Edição 540

Judiciário

Há oito anos, Justiça trabalha para garantir condenação de uma mulher que furtou R$ 50 em chocolates e chicletes

Publicado em 04/01/2022 12:00 -

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Desde 2013, todas as instâncias da Justiça brasileira, começando de baixo, pelos juízes, seguindo pelos desembargadores dos tribunais e chegando aos ministros das cortes superiores, inclusive a mais alta delas, a Suprema Corte, se uniram para garantir a condenação de uma mulher. Seu crime? Há oito anos, ela foi detida pelo furto de 18 barras de chocolate e 89 chicletes. Somados, o valor total dos produtos correspondia, na época, a R$ 50.

O episódio mais recente dessa jornada ocorreu em 6 de dezembro, quando o ministro Kassio Nunes Marques analisou um recurso movido pela Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, que pedia a absolvição da ré em nome do princípio da insignificância, também chamado de bagatela — a noção de que o direito penal não deveria perder tempo com ações que não resultaram em ofensas ou prejuízos graves. O ministro, que recebe um salário mensal de R$ 39.293,32, rejeitou o recurso e considerou que o furto no valor de R$ 50 não podia ser considerado insignificante.

Mesmo reconhecendo que há precedentes dentro do próprio STF para casos de crime de bagatela, Nunes Marques baseou a sua decisão no fato de o furto dos chocolates e chicletes ter envolvido a participação de mais de uma pessoa. “Como bem destacou o Superior Tribunal de Justiça, ‘a prática do delito de furto qualificado por concurso de agentes, caso dos autos, indica a especial reprovabilidade do comportamento e afasta a aplicação do princípio da insignificância’”, pontuou o ministro em sua decisão.

O defensor público Flavio Aurélio Wandeck Filho, do Núcleo de Atuação da Defensoria Pública de Minas Gerais junto aos Tribunais Superiores, em Brasília, afirmou à Ponte que pretende recorrer à 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, no início do próximo ano, para tentar reverter a decisão de Nunes Marques.

Para Ariel de Castro Alves, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais e especialista em direitos humanos e segurança pública pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), casos como esse não deveriam dar origem a processos judiciais, que são mais caros do que os chocolates e chicletes furtados. “Casos desse tipo não deveriam nem movimentar a máquina judicial. O custo de movimentação do Judiciário é muito superior ao valor dos produtos furtados. Deveria ter sido concedida transação penal no início, para evitar a tramitação do processo, que é bem mais custoso aos cofres públicos do que os bens furtados”, afirma.

“A decisão dele abre um precedente perigoso no STF e acabará influenciando os tribunais estaduais na manutenção de processos e prisões em furtos famélicos [cometidos para saciar a fome] e crimes de bagatela”, analisa o ativista.

Ariel de Castro Alves defende que o problema e a solução para que casos de crimes de menor poder ofensivo não cheguem até as últimas instâncias do poder judiciário já está previsto na lei. “O problema é que a legislação prevê transação penal para crimes e contravenções com penas de até dois anos. No furto, a pena prevista é de até quatro anos. Na transação penal ocorre uma espécie de acordo, com reparação do dano ou pagamento de uma multa e o processo fica suspenso e depois será extinto, sem audiências e julgamento. Seria o mais adequado pra esses casos. Incluindo a possibilidade de prestação de serviços comunitários para quem não pode reparar o dano ou pagar multa”, diz.

Cada cabeça uma sentença 

Após ser detida com os chocolates e chicletes, a mulher foi inicialmente condenada, por furto qualificado, a pena de dois anos de reclusão, a ser cumprida em regime aberto (fora da prisão). Ela recorreu e, em segunda instância, conseguiu diminuir a pena para oito meses, mas não a absolvição. Em 30 de março deste ano, uma decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça), com relatoria do ministro Joel Ilan Paciornki, manteve a condenação.

“A gente tem visto muitos casos onde deveria se aplicar o princípio da insignificância indo para o STF e para o STJ e com decisões muito diferentes. Tudo depende das mãos de quem vai cair cada caso. Isso acaba reforçando uma ideia de insegurança jurídica ou até mesmo de injustiça”, lamenta o defensor Flavio Aurélio.

Em outubro deste ano, a Ponte revelou o caso de uma mulher, mãe de cinco filhos, que foi presa em São Paulo por roubar miojo e Coca Cola para alimentar os filhos. Ela ficou 13 dias encarcerada e só foi solta após o seu caso chegar ao Superior Tribunal de Justiça.

Dentro do próprio STF há uma série de decisões de outros ministros que divergem do que foi feito por Nunes. Gilmar Mendes, por exemplo, concedeu recentemente a liberdade para um homem que foi preso por furtar duas telhas de aço. O mesmo entendimento teve a ministra Rosa Weber para onde dois homens que roubaram objetos semelhantes.

“Nos últimos anos os ministros têm tomado mais decisões individuais, devido ao grande volume de processo nos tribunais. O regimento interno permite isso. A gente só consegue levar casos como esses para um colegiado entrando com recursos e é o que vamos fazer nesse caso. Só assim os outros ministros da segunda turma poderão emitir a opinião deles sobre esse caso”, explica o defensor público Flavio Aurélio.

Para o defensor, levar um caso como esse até a última instância da Suprema Corte é também uma forma de levar uma mensagem sobre o papel da Defensoria Pública dentro do sistema de justiça: “Antes havia uma ideia de que só quem tinha dinheiro conseguia levar uma caso até as cortes superiores. Hoje, com a estruturação das Defensorias, está se mostrando que, seja rico ou seja pobre, o direito é o mesmo. Essa é a ideia de Justiça em que a gente acredita.”


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