29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘O Ministério da Economia está destruindo a ciência brasileira’, afirma o físico Luiz Davidovich

Publicado em 04/01/2022 12:00 -

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Presidente da Academia Brasileira de Ciências, o físico Luiz Davidovich é uma das vozes que têm se levantado contra o desmonte técnico e orçamentário do setor de Ciência e Tecnologia promovido pelo governo de Jair Bolsonaro. Ainda que critique o ministro Marcos Pontes, contudo, ele vê como grandes causas do atual estado de abandono científico a postura do presidente e a política que emana do Ministério da Economia comandado por Paulo Guedes.

“O MCTI sofre as consequências de uma política econômica equivocada, que alia uma contabilidade de planilha excel a interesses eleitoreiros de curto prazo”, diz.

Os maiores exemplos do desmonte em curso, cita Davidovich, são cortes nos orçamentos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o FNDCT, e do CNPq. A liberação imediata dos 2,7 bilhões de reais que a União deve ao Fundo (“uma migalha”, diz) é uma necessidade imediata para desafogar minimamente o setor de CT&I brasileiro. “Esse valor corresponde a um sexto das emendas do orçamento secreto”.

Ele também manifesta sua preocupação com novos cortes que eventualmente serão incluídos no Orçamento para 2022, comenta a renúncia coletiva de 114 servidores da Capes e pede que o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia volte a se reunir, algo que nunca aconteceu no atual governo.

 

Qual o balanço desses três anos de governo Bolsonaro no que diz respeito à Ciência, Tecnologia e Inovação?

A postura do governo federal e a política econômica vigente em relação à Ciência, Tecnologia e Inovação prejudicaram extremamente a gestão do MCTI. Veja o que está ocorrendo com o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. O Ministério da Economia, usurpando funções do Conselho Deliberativo do FNDCT, alocou 50% da arrecadação do fundo para crédito, o que não interessa à indústria, pois as taxas de juros são altas. Portanto, esses recursos não serão utilizados e serão recolhidos ao Tesouro no final do ano. Ou seja, o Ministério da Economia dá com uma mão para tirar com a outra. Os 50% restantes, fora uma parte que foi liberada para o enfrentamento da covid-19, encontram-se retidos, paralisando a pesquisa e a inovação. É um prejuízo enorme para o país.

Os cortes vão além do FNDCT?

Recentemente, o PLN-16, enviado pelo governo ao Congresso Nacional e que contemplava recursos para o CNPq, foi alterado na véspera da reunião da Comissão Mista do Orçamento, a pedido do Ministério da Economia. Os recursos prometidos para o CNPq foram simplesmente desviados para outras finalidades, impedindo a realização de programas importantes para o desenvolvimento nacional. Devemos atribuir isso a uma gestão deficiente do MCTI ou do CNPq? Não! Devemos, isso sim, apontar que os responsáveis por essa situação calamitosa são o Ministro da Economia e os demais componentes da Junta Orçamentária: os ministros da Casa Civil e da Secretaria de Governo. São eles que estão destruindo a ciência brasileira, que estão debilitando a indústria inovadora. O Congresso Nacional também tem responsabilidade nisso, pois aprovou o desvio de recursos do FNDCT para crédito e a mudança no PLN-16.

Qual a necessidade mais imediata do setor?

Estamos brigando agora pela liberação de R$ 2,7 bilhões devidos ao FNDCT. Veja a situação precária em que estamos: isso corresponde a US$ 500 milhões, uma migalha se comparada com os US$ 450 bilhões que o governo norte-americano estará investindo em ciência e inovação, superados pelo investimento da China em CT&I. Aliás, esses recursos pelos quais batalhamos correspondem a cerca de um sexto das emendas do relator, aquelas que têm sido chamadas de orçamento secreto.

O Brasil está perdendo terreno no jogo de campeões mundiais em torno das novas tecnologias, do 5G, da biotecnologia, da nanotecnologia, das novas vacinas, de novas fontes de energia como a célula de combustível de hidrogênio. Estamos caindo para a segunda ou terceira divisão. Apesar de o Brasil estar entre as maiores economias do mundo!

Quais as perspectivas da CT&I brasileira em relação ao Orçamento de 2022?

A Academia Brasileira de Ciência, a SBPC e outras entidades têm apresentado propostas ao Congresso Nacional através da Iniciativa de Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br) no sentido de proteger o FNDCT e corrigir o Orçamento para 2022. É uma tentativa de mitigar o processo de destruição da ciência nacional. Temos nos manifestado também junto ao ministro Marcos Pontes, ressaltando a importância de recuperar os recursos do FNDCT e valorizar a participação das comunidades acadêmica e empresarial nos órgãos deliberativos na área de CT&I.

Nesse caso se enquadram o Conselho Diretor do FNDCT, cujas decisões recentes têm sido tomadas com votos contrários dos representantes das comunidades científica e empresarial. E também o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT), o qual, de acordo com a legislação vigente, deve ser presidido pelo presidente da República. A última reunião desse órgão foi no governo Michel Temer.

Dá para contar com Marcos Pontes?

O ministro está promovendo reuniões das Câmaras Técnicas do CCT, preparando uma reunião desse Conselho, que reúne diversos Ministérios, além de representantes da comunidade acadêmica e empresarial. Pode ser um passo importante para a elaboração de uma estratégia de CT&I para os próximos anos. Mas, a permanecer a política econômica vigente, essa estratégia corre o risco de ser uma peça de ficção.

O MCTI sofre as consequências de uma política econômica equivocada, que alia uma contabilidade de planilha excel a interesses eleitoreiros de curto prazo. Nessa batalha difícil e desgastante pelo desenvolvimento científico e tecnológico do país é importante ter um foco preciso, apontando os verdadeiros responsáveis pelo desmonte do sistema nacional de ciência e tecnologia.

Diversos cientistas devolveram a Ordem do Mérito Científico em protesto à cassação do prêmio de profissionais considerados esquerdistas ou críticos ao governo. Existe hoje um quadro de perseguição política no setor?

Esse episódio inédito certamente envolveu perseguição política, atingindo dois pesquisadores que foram retirados da lista de homenageados porque suas atividades, baseadas na evidência científica, contrariavam a ideologia e o negacionismo do governo federal. Demonstrar que a hidroxicloroquina não funciona contra a covid-19 virou motivo de perseguição política!

Diante dos sucessivos cortes, qual o quadro do ensino superior hoje no Brasil?

As universidades federais foram depauperadas, sem recursos para manter minimamente a infraestrutura dessas instituições. A pós-graduação está sendo prejudicada também, pelos valores das bolsas de mestrado e doutorado, que estão 60% abaixo dos valores de 2014 corrigidos pela inflação. É o desmonte de um sistema construído ao longo de décadas e que teve um papel extremamente relevante no desenvolvimento do país.

Como você avalia o recente episódio de renúncia coletiva na Capes?

A renúncia de mais de cem consultores da Capes foi motivada pela determinação do Ministério Público de interromper a avaliação quadrienal da pós-graduação. Essa avaliação está estreitamente ligada ao progresso da pós-graduação nacional, permitindo separar o joio do trigo, valorizar o mérito acadêmico e expandir a pós-graduação, reduzindo as disparidades regionais.

Entre 2010 e 2018, o aumento de cursos de pós-graduação no Brasil inteiro foi de 52%. Já no Norte esse índice chegou a 79% no mesmo período. O número de programas considerados de excelência passou de 234 na avaliação concluída em 2007 para 482 na avaliação de 2017, o que evidencia o impacto da avaliação na qualidade dos programas.

Por decisão judicial, a avaliação pode agora continuar, mas a divulgação dos resultados ainda não foi autorizada. Há ainda a preocupação de que os cursos de educação à distância, com qualidade variável, sejam corretamente avaliados. A avaliação deve ser retomada com urgência, com o pleno funcionamento das comissões de área. Isso inclui o retorno dos que renunciaram e a liberação dos resultados, que devem ser públicos e transparentes.

O orçamento executado em 2020 pelo MCTI foi de R$ 7 bilhões, mesmo valor executado em 2006. Como reverter esse atraso?

Reverter esse atraso exige uma mobilização grande de vários setores da sociedade brasileira, que precisa ser conscientizada da importância da CT&I para a saída desta crise sanitária, social e econômica. O Congresso Nacional precisa apoiar os investimentos estratégicos, que moldam o futuro do país, para além das propostas de curto prazo, que não compõem um projeto nacional de desenvolvimento. Esse tema tem que estar presente em 2022, que é um ano eleitoral. Se ele não comparecer nos debates, o país continuará no atraso.

A pandemia mostrou a relevância de ter uma comunidade científica competente, fruto do investimento feito ao longo de décadas por órgãos como CNPq, Capes, Finep e as Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa. É a competência instalada graças a esse sistema que permite ainda ter esperança que a ciência brasileira vai sair do buraco em que se encontra.


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