19/04/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Populismo de direita perde força onde se percebe os efeitos deletérios do capitalismo’, afirma Jodi Dean

Publicado em 04/01/2022 12:00 -

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Professora de teoria política, feminista e de mídia no Hobart and William Smith Colleges, em Genebra, no estado de Nova York, Jodi Dean acaba de publicar no Brasil o livro Camarada – Um Ensaio Sobre Pertencimento Político. Nesta entrevista, Dean fala sobre o livro, as expectativas para as eleições presidenciais no Brasil, os efeitos das fake news e seitas sobre os grupos de direita e o receio de uma nova crise mundial provocada pela nova variante do Coronavírus.

 

Há algumas definições da palavra “camarada” no seu livro. Em um mundo tão individualista, como podemos ser camaradas nos dias de hoje?

O que é crucial para a camaradagem é reconhecer que você está do mesmo lado da luta. E acho que na sociedade contemporânea nos deparamos com esse problema de hiperindividualismo, somado a uma espécie de linguagem de “todos”. Na pandemia, era comum ouvir um “ah, todo mundo está em casa durante a Covid”. Bem, isso, obviamente, não é verdade, porque havia milhões e milhões de trabalhadores que todos os dias estavam fazendo e entregando alimentos, que estavam trabalhando no armazenamento de produtos, nas fábricas… e, portanto, não foram todos que ficaram em casa. Existe, porém, uma maneira muito estranha que eu chamo de capitalismo comunicativo que faz a classificação entre todos ou apenas dos indivíduos. Na camaradagem, presu­mimos um mundo onde somos partidários, onde estamos engajados na luta e onde podemos reconhecer que estamos do mesmo lado de uma luta política e, quando estamos do mesmo lado de uma luta política, isso nos dá uma espécie de obrigação uns com os outros e legítimas expectativas uns dos outros. Assim reconhecemos que não sou só eu, nem todo mundo, mas é sobre o nosso lado e a escolha de que lado estamos.

Embora sejam expressões clássicas, o uso no cotidiano de palavras como “comunismo” ou “camarada” voltou à moda. A que isso se deve?

Bem, a extrema-direita chama de comunista tudo o que discorda. Nos Estados Unidos, uma ala da direita chamava o governo de Barack Obama de comunista e havia até um comediante que tinha uma música estúpida no YouTube chamada Há Um Comunista Morando na Casa Branca. No Reino Unido, artigos e capas de revistas chamavam Corbin-Mark (um líder bem conhecido e altamente respeitado no movimento de justiça ambiental) de camarada. Esse comportamento é adotado pela direita nos últimos dez ou 15 anos. É uma forma de demonizar velhos oponentes liberais ou qualquer coisa que não seja completamente de direita, além de tentar fazer com que pareçam ilegítimos. Mas, ao mesmo tempo, tem havido por parte da extrema-esquerda um revigoramento dessa linguagem e acho que isso acontece como forma de dizer “se a direita usa palavras como essas para nos atacar é porque eles reconhecem que comunismo é o nome da alternativa ao capitalismo”. Precisamos, de fato, de uma alternativa ao capitalismo, porque ele mata a todos nós, mata o planeta, e levou a uma desigualdade inacreditável. Agora nos leva a essa desastrosa resposta à Covid-19. Quando a direita demoniza a linguagem, isso nos permite saber que ela ainda é muito poderosa. Por isso é bastante notável que, nos últimos dez anos, a esquerda nos EUA passou a se referir uns aos outros como camaradas. Eles não faziam isso há 20 anos e não é apenas por causa da direita, mas porque eles reconhecem o poder do legado comunista ou socialista.

Até recentemente, Jair Bolsonaro estava sem partido. Nos Estados Unidos, vimos uma grande divisão entre os republicanos, quando muitos votaram pelo impeachment de Donald Trump. Eles parecem, portanto, não se importar muito em fazer parte de um grupo. Em que isso pode arruinar uma candidatura ou a permanência no poder?

Trump não teria se tornado presidente se não fosse o candidato republicano. No sistema dos Estados Unidos, a conquista da Presidência requer um aparato partidário por trás dela basicamente para passar pela eleição. Portanto, desde o nível mais básico de ganhar eleições, um partido é necessário. Em sistemas parlamentares, os indivíduos podem criar novos partidos facilmente? Sim, mas isso ainda significa que para ganhar uma eleição eles precisam de um partido. Há um tipo de sensação estranha entre muitos na esquerda que especulam e questionam a necessidade de partido, mas não é assim que as coisas de fato funcionam. Se o objetivo é o poder político, é imprescindível fazer parte de um partido.

O que esperar das eleições no próximo ano no Brasil?

O populismo de direita perde força nos lugares em que os eleitores percebem os efeitos deletérios do capitalismo, do individualismo e do militarismo. Percebem que as respostas à Covid-19 oferecidas por Jair Bolsonaro ou Donald Trump tornaram a situação infinitamente pior do que o necessário. Acho que há uma chance muito boa de Lula vencer e acho que é a melhor coisa que poderia acontecer nas eleições do Brasil. O que também significa que deve haver ainda muito mais espaço para candidatos de esquerda em outros patamares da disputa. Nesse sentido, nos Estados Unidos, os democratas não foram bem nas últimas eleições (para os cargos nas cidades e estados). Mas, ao contrário de muitos, não considero isso um sinal da ascensão da direita ao poder, mas apenas uma demonstração da fraqueza e da estupidez do Partido Democrata, porque eles não são de forma alguma um partido de esquerda, e acredito que o mundo inteiro saiba disso, mas a mídia e a população norte-americana parecem não saber. Eu não quero fazer uma comparação grosseira, mas é como se os EUA pensassem que a direita é Hitler e a esquerda é ­(Joseph) Goebbels. É uma mentalidade tão limitada, uma versão tão estreita da possibilidade política, que eles são capazes de enxergar os democratas como esquerdistas. Portanto, os resultados dessas recentes eleições nos Estados Unidos são, na verdade, apenas uma falha do fracasso dos democratas, e não a força da direita. A esquerda, em geral, precisa ser mais forte, precisa estar disposta a ficar lá fora com o povo e se organizar, e ir de porta em porta. A esquerda em todo o mundo precisa reconhecer que apenas as mídias sociais não são de forma alguma um campo para a nossa ação política.

Nas últimas eleições presidenciais no Brasil, e também nos Estados Unidos, assistimos a um grande despreparo dos progressistas para lidar com notícias falsas.

Há duas razões. Uma é a aceitação da propriedade capitalista da mídia e da mídia capitalista. A segunda é a fidelidade à verdade, enquanto a direita fica realmente feliz em apenas escrever mentiras. Eles não são limitados por questões morais como “o que estamos dizendo é verdade ou não? O que estamos fazendo é correto?” A direita tem muito mais condições de jogar com essa política de indignação e fomentar uma espécie de sentimento de violência, do que tentar fomentar um sentimento de esperança. Essa é uma das principais razões para que eles se saiam tão bem. Além disso, também podem ser escolhidos pela mídia tradicional, porque ela não é ameaçada por eles. Nas eleições presidenciais em 2016, Trump recebeu infinitamente mais atenção do que qualquer outro candidato porque ele era ultrajante nas redes sociais, porque ele estava disposto a dizer coisas que eram inescrupulosas, que eram mentiras totalmente ofensivas, e então a mídia cobriu isso.

Por isso seitas como o QAnon ou as fake news fazem tanto sucesso entre os eleitores da extrema-direita?

Esta é uma questão supercomplexa. Primeiramente, se observarmos como a mídia social está estruturada, as mentiras circulam mais rápido e facilmente do que a verdade. E a razão pela qual circulam mais facilmente do que a verdade é que os usuários entram para contradizê-los e argumentar sobre elas, e então elas obtêm o dobro e, em seguida, mais acessos e mais circulação múltipla, o que é algo que é apenas colocado lá como um fato. Mentiras tendem a gerar mais debates e, além disso, qualquer um prefere ver algum tipo de vídeo que não conhece, rápido e chocante, do que ler um relatório de política de 50 páginas. Quanto ao ­QAnon, eles são claramente de extrema-direita, e provavelmente fascista, e o apelo desse grupo deu legitimidade maior a Trump. É uma espécie de conjunto de razões quase religiosas para seguir Trump, e pensar que ele seria bom para eles, para o país, para o mundo. Para essa organização, Trump é quase uma espécie de figura messiânica, uma autoridade além do governo dos EUA, além da Constituição, alguém onisciente que realmente sabia o que acontecia, mesmo quando toda mídia dizia que Trump é terrível e a política dominante mostra que tudo isso é falso.

O Brasil atravessa uma crise econômica muito séria. A democracia é a saída para corrigir a financeirização econômica?

Se quando falamos em democratizar a economia, o que queremos dizer é democratizar os bancos, democratizar o sistema financeiro, democratizar a propriedade, democratizar os locais de trabalho e democratizar todo o sistema de propriedade privada e geração de lucro, então a resposta é sim. Se reconhecermos isso, essa democracia realmente requer que todos tenham a capacidade de viver em uma casa e ter cuidados, e comer sem medo de perder seus empregos e serem despejados, e não serem capazes de alimentar seus filhos. Essa é uma maneira muito poderosa de derrotar as forças de direita, mas realmente tem de significar uma real democratização das finanças, não o uso das finanças para continuar a privatizar os serviços públicos e transformar o que é realmente para aqueles em veículos para a acumulação privada de poucos.


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