25/04/2024 - Edição 540

Especial

O Natal da Fome

Publicado em 24/12/2021 12:00 -

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A cena de gente catando “restos dos ricos” no caminhão de lixo, para matar a fome, é um retrato atroz da desigualdade em nosso país. Sabemos que o Brasil tem uma história trágica de escravidão, dominação e apropriação dos bens comuns pelos senhores das terras e das águas, das finanças e dos privilégios. Apesar de bravas resistências, ainda estamos bem longe de um padrão aceitável de democracia e República.

“A democracia contemporânea exige a soberania popular e o estado de direito com pleno respeito aos direitos humanos, cuja matriz é o direito à vida. Logo, o acesso à saúde e à alimentação adequada é direito fundamental, presente na Constituição. Mas hoje, além da criminosa omissão durante a pandemia, o governo insiste na ficção de que somos o “celeiro do mundo” e o “agro é pop”, enquanto deixa à míngua os miseráveis, os pobres que viraram miseráveis e a classe média que virou pobre. Pobres e famintos”, afirma a socióloga e cientista política Maria Victoria de Mesquita Benevides, membro da Comissão Arns de Defesa dos Direitos Humanos.

A grande seca de 1870 matou cerca de meio milhão de brasileiros e levou a desolação às melhores áreas agrícolas do Nordeste. Estamos vivendo, em 2021, a grande fome, até mesmo nas ricas cidades do Sudeste. Isso, sendo o Brasil o segundo maior exportador de alimentos do mundo!

“Somos atingidos pela tempestade perfeita, com o desmonte sistemático e deliberado de políticas sociais, inclusive as básicas de segurança alimentar. Além da crise hídrica e de energia, da destruição ambiental (que enfraquece a agricultura de subsistência), da inflação, do desemprego, da população morando nas ruas e da tensão causada por novas cepas do coronavírus, a fome avança devastadoramente”, diz Fábio Konder Comparato, advogado, professor emérito da Faculdade de Direito da USP, doutor honoris causa da Universidade de Coimbra e, assim como Benevides, membro da Comissão Arns de Defesa dos Direitos Humanos.

Segundo dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 19 milhões de brasileiros estão famintos e mais de 100 milhões não sabem se terão o que comer no amanhã de incertezas. Pesquisa recente do Dieese revela como essa situação se aprofunda, pois os preços da cesta básica continuam aumentando em todo o país, superando a parcela média do tal “Auxílio Brasil” (substituto do Bolsa Família), que não comprará nem metade da cesta atual.

Mãe desempregada, Sandra Maria de Freitas fala de sua luta diária: “Quando o caminhão passa cedo, dá para pegar coisas boas, pão e mortadela, tá tudo mofado, a gente raspa e come. Tem que desinfetar, mas o gás tá muito caro e com álcool já fui parar no hospital.” Como Sandra, são as milhares de “mães solo” o maior contingente das vítimas da fome. São elas que ficam no aguardo de ossos e pelancas. Com sorte conseguem pé e pescoço de galinha. E as que contam com apoio de ONGs estão nas filas de marmita – “um luxo”, dizem, agradecidas.

O consumo de proteína está cada vez mais raro até para famílias de classe média: o preço médio de 1 kg de carne foi multiplicado por três nos últimos dez anos. E como afirma José Graziano da Silva – ex-diretor da FAO e atual diretor do Instituto Fome Zero –, “crianças que passam fome antes dos 5 anos, se sobreviverem, levarão a marca de desnutrição para o resto da vida, não terão desenvolvimento intelectual e motor normal. Estamos, portanto, condenando o futuro de milhões de brasileiros”.

O que o governo e a sociedade civil estão esperando para agir imediatamente, antes do colapso previsível, com saques, morticínio e violência de todo tipo contra miseráveis e famintos? Esperamos uma réplica sinistra do “caso Manaus”, exemplo típico de omissão e abandono da população no auge da pandemia? Esperamos a condenação do país por crime contra a humanidade?

Quem tem fome não pode esperar. E não devemos apostar em milagres para a eleição em 2022. A hora é agora, de urgência urgentíssima: denunciar a omissão do governo federal e do Congresso, exigir providências relativas a um auxílio emergencial decente para todos que dele precisam (e não apenas para os empregados), mobilizar a sociedade. Os governos estaduais e municipais podem enfrentar a incapacidade e a omissão do principal mandatário ativando conselhos e subprefeituras, programas de transferência de renda, enfim, reativando o refrão do poeta negro Solano Trindade: “Tem gente com fome, dá de comer!” 

Isso significa apoio às cooperativas de agricultura familiar, à distribuição de vales alimentação e cestas básicas, à reabertura de restaurantes populares, ao reforço dos Bancos de Alimentação e da merenda nas escolas, aos programas que atendam povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas, a uma especial atenção para as ditas comunidades (favelas e outras) e para os que estão morando nas ruas. Necessário, ainda, o encaminhamento de pessoas que hoje vão aos postos de saúde com diagnóstico óbvio: a desnutrição severa.

É evidente que a grande fome será apenas mitigada com essas ações urgentes, pontuais e solidárias. Para o enfrentamento de suas causas, diante da desigualdade e da pobreza extrema, são indispensáveis reformas estruturais, econômicas, sociais, políticas e ambientais, enfim, um projeto de desenvolvimento sustentável que inclua a reforma tributária e a reforma agrária, sempre adiadas, além de políticas avançadas de educação e saúde para a imensa maioria dos brasileiros – porque a minoria já as tem. 

“Todos nós, que contamos com o conforto de três refeições por dia, somos também responsáveis. A mobilização deve abranger, além dos aguerridos movimentos sociais e populares (com destaque para o MST e a Cufa), a imprensa, as igrejas, as universidades, entidades de peso, como OAB, ABI, SBPC, CNBB e sindicatos. Os empresários devem ser chamados à responsabilidade na promoção de empregos, mesmo provisórios, no compromisso de evitar demissões e no combate à alta absurda nos preços de alimentos”, afirma Benevides.

Um retrato da realidade

Pesquisa Datafolha divulgada nesta semana aponta que 26% dos brasileiros afirmam que a quantidade de comida em casa não foi suficiente para alimentar suas famílias nos últimos meses. O percentual chega a 37% entre aqueles com renda mensal de até dois salários mínimos.

Nas famílias que recebem o Auxílio Brasil, programa social que substituiu o Bolsa Família, são 39%, ante 22% entre aquelas que não se enquadram no benefício destinado aos mais pobres.

O patamar mais elevado de pessoas afetadas pela falta de comida é encontrado no Nordeste (35%). Nas demais regiões do país, varia de 21% a 25%.

Entre as pessoas que estão desempregadas, mas à procura de emprego, 45% afirmaram não ter comida suficiente. Entre os que desistiram de encontrar uma ocupação, são 34%.

Por outro lado, estão abaixo da média os empresários (9%), estudantes (13%) e funcionários públicos (15% afirmaram não ter comida suficiente).

Também se destacam os 34% entre pessoas que votariam no ex-presidente Lula (PT) em 2022 e os 12% entre os que pretendem votar em Jair Bolsonaro (PL).

A pesquisa foi realizada de 13 a 16 de dezembro, com 3.666 brasileiros em 191 municípios. A margem de erro é de dois pontos percentuais para baixo ou para cima.

O levantamento também mostra que 15% dos brasileiros deixaram de fazer alguma refeição nos últimos meses por não ter comida em casa. O número sobe para 23% entre as famílias com renda mensal de até dois salários mínimos. Nas demais faixas, varia de 3% a 6%.

Nas famílias que recebem o Auxílio Brasil, 26% deixaram de fazer alguma refeição. São 11% entre aquelas que não se enquadram no benefício.

Por região, os maiores percentuais de pessoas afetadas estão no Centro-Oeste/Norte (20%) e Nordeste (17%). Os menores, no Sul (13%) e Sudeste (11%).

Por ocupação, se destacam os desempregados à procura de emprego (30%) em um extremo e empresários (3%) de outro.

O número chega a 17% e 15%, respectivamente, entre pardos e pretos. São 11% entre os brancos. Entre os apoiadores de Lula, 19%. Entre os que pretendem votar no atual presidente, 8%.

Ainda segundo o Datafolha, 89% dos entrevistados disseram que, nesse período de pandemia, o número de pessoas que passam fome no Brasil aumentou. Essa percepção é predominante independentemente do perfil econômico e social do entrevistado ou da região em que ele mora.

Os patamares mais baixos nos recortes por perfil foram encontrados entre empresários (81% avaliam que a fome aumentou), pessoas que afirmaram ter comida mais que suficiente para a família (79%), entrevistados com preferência pelo PL, partido de Bolsonaro, ou que votariam no presidente em primeiro turno 2022 (74% em ambos os casos). Entre os que avaliam o governo como ótimo/bom, 73% dizem que a fome aumentou.

Aumento do desemprego, queda na renda e alta da inflação estão entre os fatores que são apontados como responsáveis pelo aumento da fome durante a pandemia. Houve ainda grande oscilação em relação aos programas sociais do governo, com introdução do auxílio emergencial de até R$ 1.200 no ano passado, programa suspenso no começo do ano e que teve o valor reduzido em 2021. Posteriormente, o governo acabou com o Bolsa Família, que foi substituído pelo Auxílio Brasil.

O relatório "Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil", publicado no começo do ano pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), mostrou que 43,4 milhões de pessoas não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros enfrentaram a fome durante a pandemia.

A insegurança alimentar se caracteriza pela falta de acesso e disponibilidade das pessoas aos alimentos em quantidade suficiente para a sobrevivência.

A fome ganhou rosto nos últimos meses, seja nas cenas protagonizadas por famílias em busca de alimentos próximos do descarte no centro de São Paulo, buscando comida no lixo de Fortaleza ou acompanhando o trajeto do caminhão do osso no Rio de Janeiro.

Nesta semana, a cidade de São Paulo registrou protestos contra a fome em pelo menos 15 bairros.

Um deles, na frente da Bolsa de Valores, onde no início de dezembro foi colocada a escultura de uma vaca magra, em alusão a fome e miséria, após a polêmica sobre o Touro de Ouro colocado no mesmo local.​

Estudo da USP confirma explosão da fome sob governo Bolsonaro

Estudo elaborado pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) sobre a fome no Brasil aponta evidente piora da situação desde a vigência do governo de Jair Bolsonaro, em contraponto à expressiva melhora, especialmente a partir de 2004, segundo ano do primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O material abrange o histórico de 75 anos do tema no país, quando o médico e pesquisador Josué de Castro passou a estudar o fenômeno como consequência de ações humanas e políticas.

“Os avanços e recuos no combate à fome são consequência direta do modelo econômico e da construção de políticas públicas”, apontam os pesquisadores. Pela primeira vez neste século, mais da metade dos brasileiros vivenciam algum grau de insegurança alimentar. Para entender este fenômeno, a FSP-USP inclui no estudo os hábitos alimentares dos brasileiros.

Segundo dados do IBGE, 55% da população do país sofre atualmente com incertezas sobre como obter alimentos para as refeições. Destes, 10% convivem diariamente com a falta de comida. “A partir dos últimos anos da década passada, a insegurança alimentar voltou a crescer no Brasil. A fome está presente como nunca nas capas de jornais e reportagens do noticiário. São relatos e imagens diárias de brasileiros com pratos vazios, procurando ossos descartados ou revirando o lixo”, relatam os pesquisadores.

“A fome exibida nessas imagens, é claro, existe e é extremamente degradante. Entretanto, ela não é a única manifestação do fenômeno – e nem é a mais comum. Os brasileiros que estão expostos à insegurança alimentar muitas vezes têm algum tipo de comida no prato, mas frequentemente sem a diversidade ou a quantidade necessária”, completam.

A partir dos dados, é notável que a volta da fome e da insegurança alimentar no país tem data de início. Enquanto durante os governos do PT o Brasil teve seu nome retirado do Mapa da Fome da ONU, o cenário foi invertido a partir de 2017, um ano após o golpe que tirou do poder a ex-presidente Dilma Rousseff.

Em 2004, 65% da população encontrava-se em situação de segurança alimentar, ou seja, em condições de contar com ao menos três refeições diárias, em qualidade e quantidade compatíveis com as necessidades básicas. “Vivia-se o início de programas como o Fome Zero e o Bolsa Família, que teriam impacto significativo na redução da pobreza nos anos seguintes. No intervalo entre 2009 e 2013, a insegurança alimentar caiu ainda mais. Quase três quartos da população estava em segurança alimentar. A queda, dessa vez, aconteceu em todos os segmentos de insegurança alimentar. Uma década depois do início da série histórica, a insegurança alimentar chegava ao patamar mais baixo já registrado”, afirma o relatório.

Após o golpe que levou Michel Temer ao poder em 2016, a situação foi se degradando rapidamente. “Via-se a redução do investimento em serviços públicos que, somados a crises econômicas, tiveram efeitos rápidos na qualidade da alimentação da população. Em 2020, a pandemia de Covid-19 se soma ao desmonte dos programas sociais e intensifica o aumento da fome, que já ocorria de forma rápida”.

O estudo completo pode ser acessado aqui.

Combate à fome não está na agenda do governo Bolsonaro

O quadro de desespero não compadece o presidente Jair Bolsonaro. Desde que tomou posse, em janeiro de 2019, segue fiel em sua aliança com o agronegócio e suas políticas são orientadas no sentido de desmanche das instituições e programas voltados à produção e distribuição de alimentos.

Logo no seu primeiro dia como presidente, 1º de janeiro, assinou a Medida Provisória 870, que entre outras coisas extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Houve muita mobilização pela permanência do órgão colegiado de assessoramento imediato à Presidência criado em 2003. Uma medida que revogava a extinção, porém, foi vetada por Bolsonaro.

O presidente se manteve firme também na perseguição aos agricultores familiares, que produzem a maior parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros, especialmente frutas, verduras. Além de excluir esses trabalhadores do benefício do Auxílio Emergencial, vetou leis voltadas a beneficiar esses trabalhadores. Em setembro, vetou integralmente o Projeto de Lei (PL) 823, de 2021, a Lei Assis Carvalho II, que instituiria medidas emergenciais de amparo a agricultores atingidos economicamente pela pandemia da covid-19.

O PL também permitiria a renegociação de dívidas de agricultores familiares afetados pela pandemia e abriria linhas de crédito para investimento em produção de alimentos básicos e leite. Pelo projeto aprovado no mês passado, por ampla maioria no Congresso Nacional, a União teria de pagar auxílio de R$ 2,5 mil por família para produtores em situação de pobreza e extrema pobreza. Entretanto, como justificativa ao veto, Bolsonaro afirmou que o projeto não indica de onde viriam os recursos para atender às necessidades do setor.

“O governo acabou com o Consea, foi enfraquecendo a Conab e não temos política de abastecimento. Ao mesmo tempo, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) vai sendo modificado e o de Aquisição de Alimentos (PAA) foi extinto com a aprovação da Medida Provisória 1061/21, que extinguiu também o Bolsa Família”, disse à RBA a ex-presidente do Consea, Maria Emília Pacheco.

Assessora da organização Fase – Solidariedade e Educação e integrante de núcleos executivos da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Maria Emília faz um paralelo. De um lado, o histórico de desmonte das políticas criadas nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, que chegaram a tirar o Brasil do Mapa da Fome.

E de outro, a aliança mantida com o agronegócio desde os governos de Michel Temer, e fortalecida por Bolsonaro. Enquanto a população passa fome, o setor recebe benefícios tributários dos governos para derrubar florestas, colocar pastos na Amazônia e ampliar a produção e exportação da soja, milho e algodão, entre outras commodities. Ou seja, aquilo que estiver dando mais lucro.

Para analisar toda essa contradição, a Fase lançou recentemente o Dossiê Sistemas Alimentares: Fome, Corporações e Alternativas, em parceria com a Fundação Heinrich Böll. A obra está dividida em quatro temas: Fome é política: a captura corporativa dos sistemas alimentares; Políticas de abastecimento e compras públicas; Soberania Alimentar no campo-cidade; e Comer é um ato político.

O dossiê pretende que as reflexões fortaleçam a luta contra a fome e contra as investidas das corporações. Em todos os temas, os autores apontam saídas para as crises atuais, todas pautadas pelo princípios do direito humano à alimentação e nutrição adequadas, à soberania alimentar e à agroecologia, que com seu modo de produzir alimentos em harmonia com a natureza é a melhor alternativa ao modelo hegemônico de produção agrícola.

As raízes da fome no Brasil são tratadas no capítulo A fome é política, escrita pelo economista, assessor de políticas da ActionAid e membro do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN), Francisco Menezes.

Mapa da Fome

Para ele, o Brasil retornou ao Mapa da Fome seis anos depois, em plena pandemia da covid-19, porque não fez as transformações estruturais necessárias para sustentar o avanço na segurança alimentar. “Faltou a democratização do acesso à terra e a garantia dos direitos territoriais e, vale assinalar, mesmo no período correspondente ao que o país saiu do Mapa da Fome, mantiveram-se situações de fome entre indígenas, quilombolas e povos tradicionais”, diz, em um trecho do capítulo.

A fome não é uma fatalidade. Não são causas naturais que geram a fome. A fome é determinada pelas profundas desigualdades sociais que acompanham nossa história. Não será o mercado, as corporações e suas propostas tecnológicas para os sistemas alimentares que vencerão a fome.

“Faltou também uma política nacional de abastecimento, cuja ausência provoca reflexo direto no preço dos alimentos atingindo desproporcionalmente a população mais pobre. Intervir sobre esses dois fatores significará sempre defrontar-se com forças poderosas que controlam o sistema alimentar brasileiro, que terá que ser resolvido no campo da política”, prossegue.

Menezes lembra que após o golpe de 2016, intensificou-se um conjunto de medidas de um projeto ultra liberal, com o objetivo simultâneo de maior fortalecimento do agronegócio e da mineração. Cresce a pobreza e, mais ainda, a extrema pobreza como consequência de uma política de enfrentamento da crise econômica calcada na chamada “austeridade”, que cobrou preço alto para os mais vulneráveis, ao mesmo tempo em que os mais ricos tiveram suas riquezas ainda mais aumentadas.

Vieram o desemprego, as variantes do subemprego, o desalento, a perda de renda de milhões de famílias , alterações na legislação trabalhista, precarização das relações de trabalho e também a retirada e direitos previdenciários. “Produziu-se, assim, uma vasta camada da população com baixa ou nenhuma condição de acesso aos alimentos por sua incapacidade de poder de compra. Iniciou-se, também, um obsessivo desmonte de políticas públicas, incluídas as de segurança alimentar”, destaca Menezes.

Programas como o de Cisternas, de Aquisição de Alimentos e tantos outros que já haviam comprovado seu potencial de enfrentamento da pobreza e da insegurança alimentar foram esvaziados, enquanto crescia a população em condições de pobreza e extrema pobreza. Mas não se ampliou o público do Bolsa Família, nem sequer foi efetuada qualquer correção nas linhas de renda para ingresso no programa e nos valores a serem repassados.

No campo, o impacto não foi menor. O agronegócio a cada ano celebra o crescimento de seus lucros, enquanto a agricultura camponesa e familiar luta contra o seu alijamento das políticas públicas. Produz-se um rastro de destruição ambiental e violência.

Alternativas à fome

A saída, segundo o autor, está na retomada dos valores originais do Auxílio Emergencial para R$ 600 e R$ 1.200 e incorporação daqueles que comprovam suas insuficiências de renda, fazendo uso do Cadastro Único e dos Centros de Referência de Assistência Social (CREAs) como os equipamentos mais adequados para a identificação desse público.

Garantia de fornecimento da alimentação escolar às famílias com alunos em escolas públicas ainda fechadas, cumprindo o fornecimento mínimo de 30% pela agricultura familiar e camponesa.

Retomada do Programa de Aquisição de Alimentos, com dotação orçamentária suficiente, priorizando as modalidades da Compra direta e Doação Simultânea e da Formação de Estoques.

Adotar e executar proposta a ser elaborada por movimentos do campo e da floresta para enfrentamento com urgência de situações de fome de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.

Sem estoques, Brasil flerta com o desastre

Falta orçamento, falta execução, falta vontade política. E faltam alimentos. A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) possuía, conforme dados abertos de outubro, 34,7 mil toneladas de milho, 21,5 mil toneladas de arroz, uma tonelada de café e estoques zerados de açúcar, algodão, feijão e farinha de mandioca. Amendoim, castanha e fécula de mandioca também estão, há anos, no zero. Em um país agrícola, que se vangloria das exportações recordes de soja, os estoques públicos deste grão também são nulos, desde 2013.

A FAO (sigla em inglês para Food and Agriculture Organization), braço de alimentação e agricultura da ONU, recomenda aos países que armazenem estoques equivalentes a três meses de consumo da população, com a finalidade de garantir a segurança alimentar nacional. Alguns pesquisadores defendem que os países devem ter, pelo menos, seis meses de estoques. Além disso, a lei 8.171, de 1991, que dispõe sobre a política agrícola do país, determina que é papel do Estado manter estoques bem cuidados para abastecimento e calibragem de preços que devem ser adquiridos, preferencialmente, de pequenos e médios produtores.

Com os números atuais, no caso de uma emergência como uma enchente ou tornado, nossos estoques de arroz seriam suficientes para alimentar a população por menos de um dia. O estoque de milho, por um dia e meio. No “celeiro do mundo” – mas onde 43,4 milhões de pessoas não têm alimentos em quantidade suficiente, conforme dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN) – estoques zerados de alimentos me parece de uma incoerência psicótica. O dramático derretimento dos estoques públicos, uma tendência iniciada ainda em 2013, acentuou-se no período Temer e chega ao ápice do desmonte no governo atual. Em 2019, a Conab colocou à venda 27 das atuais 92 unidades armazenadoras – em 1991, ano do início das suas atividades, a estatal tinha 349 armazéns que incluíam galpões, unidades de processamento e postos de comercialização. Guilherme Bastos, presidente da companhia vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), afirmou, na luz do dia, em entrevista à imprensa no ano passado, que o governo “tem que estar fora do estoque regulador”.

“Claramente, o que vemos é um posicionamento de política agrícola ultraliberal que entrega a regulação do mercado de alimentos de bandeja à iniciativa privada. Os interesses econômicos estão colocados acima do interesse público. Ficamos com o ônus ambiental de devastar biomas para cultivar grãos para exportação in natura; é o velho Brasil-Colônia presente ainda na atualidade. E temos, hoje, um Estado que não cumpre sua função social de garantir os direitos básicos da população”, critica Silvio Porto, ex-diretor de Política Agrícola da Conab por 11 anos e professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).

O economista Allexandro Mori Coelho, professor da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (FECAP), defende que a formação dos estoques públicos é importante como mecanismo de estabilização de preços, proteção dos pequenos agricultores e da população de baixa renda. “O Brasil tem uma população muito grande e é muito desigual. Então, os estoques são uma forma de garantir a segurança dos grupos vulneráveis, que na hora do aperto não tem para onde correr”, afirma.

Enquanto manter estoques para fins de segurança alimentar parece consenso, sobretudo em tempos de pandemia, a discussão sobre composição de estoques para regular preços gera controvérsias. A economista Juliana Inhasz acredita que para a política de estoques dar certo é preciso que o país esteja com a casa arrumada – política e economicamente. “Se o país está com a economia em ordem, caminhando bem no âmbito fiscal, tem um ambiente institucional forte e uma agenda bem definida de apoio à agricultura de pequena e média escala, e comprometimento firme com a segurança alimentar, então, formar estoques pode ser bom para o país” declara, “Mas de nada adianta gastar dinheiro com a armazenagem, que sai caro, com as contas bagunçadas. Eu questiono se vale a pena investir nesta política no Brasil…”, opina.

O argumento central dos economistas contrários aos estoques é o custo decorrente das atividades de armazenagem. Controle de temperatura e umidade dos silos (alguns comportam mais de 30 mil toneladas de cereais), fretes, seguros em geral, estiva, pesagem, capatazia e braçagem saem caro aos cofres públicos.

Já economistas a favor dos estoques insistem em um ponto-chave: o governo precisa ser forte e ter capacidade técnica o suficiente para executar uma política agrícola coerente com a realidade social do país, que não abandone os pequenos agricultores ao sabor dos ventos do mercado.  Para eles, um governo forte e justo seria capaz de, ao mesmo tempo garantir a segurança alimentar dos cidadãos, preços acessíveis nos supermercados e a proteção do produtor rural, navegar bem entre os contratempos do comércio internacional, tudo isso sem desrespeitar as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e os acordos bilaterais que mantém. “O governo tem que dar a regra do jogo. E precisamos de um governo que assegure o bem-estar da população, tarefa crucial em países em desenvolvimento. Veja que uma adversidade climática com nossos estoques zerados pode representar um perigo imenso!”, alerta Claudemir Galvani, professor de economia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Em tempos de mudanças climáticas afetando a produtividade agrícola em várias partes do mundo, e de forte inflação global de alimentos, o debate sobre estoques de alimentos precisa estar mais presente. E o assunto merece análise aprofundada, sem pressa, devido à complexidade das dinâmicas através das quais a economia agrícola opera em um mundo globalizado. A pressa pode ficar apenas em detectar quem são os agentes penalizados pelo desmonte dos estoques.

Parecem ser, naturalmente, as duas pontas que a Política de Garantia dos Preços Mínimos (PGPM), do Ministério da Agricultura, a razão de ser da Conab, pretende proteger. De um lado, a combalida agricultura familiar, dependendo das migalhas que lhe sobram no orçamento federal e de medidas provisórias que autorizem a compra urgente do grão que falta. Do outro lado, sofre o consumidor de alimentos, deixado à mercê da volatilidade dos preços nas gôndolas, determinado por um mercado violento. A classe média reclama, mas ainda pode comer.  A classe pobre agoniza com a insegurança alimentar. E o Brasil, com seus armazéns vazios, segue firme novamente no mapa tenebroso da fome.


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