25/04/2024 - Edição 540

Poder

A passeata de Guedes contra o FMI

Publicado em 17/12/2021 12:00 -

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O ministro da Economia, Paulo Guedes, conseguiu se superar. Hostilizado pelo ministro, o Fundo Monetário Internacional (FMI) anunciou a decisão de fechar seu escritório de representação em Brasília. “Estamos dispensando a missão do FMI”, declarou Guedes durante encontro com empresários na sede da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). “Dissemos para eles fazerem previsões em outro lugar”, acrescentou. Previsões sombrias têm sido rejeitadas pelo ministro, empenhado em mostrar ao mundo um Brasil próspero e bem ajustado, só existente em suas fantasias. Mas o limite parece ter chegado quando Ilan Goldfajn, economista respeitado dentro e fora do País, foi nomeado para um importante cargo no Fundo, a direção do Hemisfério Ocidental.

Ex-presidente do Banco Central (BC), Ilan Goldfajn ocupa atualmente a presidência do Conselho do Crédit Suisse e assumirá o novo posto no próximo ano. Geralmente discreto, suas opiniões continuam sendo ouvidas e registradas com interesse. Serão necessários, disse ele recentemente, pelo menos dois anos de muito trabalho para reconduzir a inflação à meta. “Passamos os últimos dois anos com incertezas fiscais, econômicas, políticas e institucionais. Um dia a conta vem”, comentou no começo do mês em entrevista ao Estadão.

“Ilan também tem o direito de criticar”, disse Guedes em sua fala na Fiesp. “Mas, já que tem um brasileiro que critica o Brasil indo para o FMI, ele não precisa mais ficar aqui”, completou o ministro, um tanto confusamente. Ninguém criticou “o Brasil”. Goldfajn falou sobre a incerteza fiscal, o rompimento do teto e a inflação distante da meta, fatos conhecidos, inegáveis, incorporados nos cálculos do mercado e refletidos na instabilidade cambial. Dólar acima de R$ 5,60 é um dos efeitos dessa desordem e da insegurança quanto à evolução das contas públicas. São façanhas atribuíveis ao presidente da República e a sua equipe, com destaque para o ministro da Economia.

Guedes ainda se refere a um erro de previsão para sustentar seu discurso contra o FMI. No ano passado, o Fundo chegou a estimar para a economia brasileira uma queda de 9,1%, mais que o dobro da perda registrada, meses depois, nas contas oficiais (4,1%). Houve um erro, de fato, mas alguns meses depois os técnicos do FMI começaram a rever seus números. Para este ano a projeção divulgada em outubro indica expansão de 5,2%, parecida, naquele momento, com a do mercado. As novas estimativas correntes no setor financeiro, no entanto, já estão abaixo de 5%. Para 2022 o Fundo ainda prevê para o Brasil uma expansão de 1,5%, bem superior às do mercado, próximas de 0,5%.

Ao contrário de Guedes, economistas do setor privado, de escolas e de entidades internacionais, como o FMI, o Banco Mundial e a OCDE, costumam rever suas contas e avaliações. Todas essas instituições têm um currículo de serviços importantes à comunidade internacional. O FMI, por exemplo, ajudou cerca de 90 governos a enfrentar os efeitos econômicos e sociais da pandemia, desde o ano passado.

Não por acaso essas organizações são valorizadas por governos de países de todos os grupos. A maior fatia de capital do FMI é controlada pelos Estados Unidos. A segunda maior, pelo Japão; a terceira, pela China. A da Rússia, bem abaixo na lista, supera a do Brasil. A maior parte dos países-membros do FMI compõe grupos, para somar suas cotas e aumentar seu poder de voto. Líder de um desses grupos, o Brasil ocupa um assento na diretoria executiva, órgão política e administrativamente importante.

Em várias ocasiões o governo brasileiro recorreu à instituição para enfrentar dificuldades cambiais e fiscais, mas conseguiu dispensar essa ajuda nas últimas duas décadas. Isso de nenhum modo reduz a importância do Fundo ou de outra instituição multilateral. Americanos, alemães e chineses sabem disso. Guedes, como seu chefe Bolsonaro, parece ter dificuldade para perceber o valor da ordem e da cooperação internacionais.

Guedes funda uma nova linha do pensamento econômico: a escola ficcional

Entre avanços e recuos, o pensamento econômico ganhou muitos rótulos desde o surgimento da escola clássica, no século 18. Costuma-se dizer que Paulo Guedes segue a linha da escola de Chicago, de tendência neoclássica. Engano. O Posto Ipiranga inaugurou uma novíssima vertente da teoria econômica: a escola ficcional. A economia, como se sabe, compreende todas as atividades do país. Mas nenhuma atividade do país compreende a economia de Guedes.

Para Guedes, o PIB está sempre "decolando em V", mesmo quando desliza de uma recessão técnica para uma estagflação. Nesta sexta-feira, após almoçar com empresários, o ministro declarou que fará reformas estruturais em 2022, mesmo que a perspectiva de turbulência eleitoral indique o contrário.

"Há uma convicção política de que em ano de eleição não se faz reforma, não faz nada, o jogo é parado", afirmou Guedes. "E o recado que recebi da classe empresarial foi para prosseguir com essas reformas, porque são importantes, ajudam o Brasil a crescer e trazem votos." Mencionou a reforma administrativa.

Todo ministro da Economia tem um quê de animador de auditório. Entretanto, não há otimismo que resista a uma inflação de 10,74%, maior do que a pior marca da ruinosa fase Dilma. O brasileiro que ainda dispõe de renda e consegue ser previdente já não economiza para os dias ruins. Poupa para os dias piores.

Nem Bolsonaro presta atenção ao que diz seu ex-superministro da Economia. No final de outubro, instado a falar sobre as reformas tributária e administrativa, o capitão sapecou: "Essas reformas têm que acontecer no primeiro ano de cada governo. Já estamos praticamente terminando o terceiro ano. Se não aprovar este ano, ano que vem pode esquecer."

Como economista, Guedes revelou-se um ficcionista que venceu na vida. Um pedaço de sua prosperidade foi flagrada num paraíso caribenho. O ministro seguiu uma máxima de John Kenneth Galbraith segundo a qual "a primeira tarefa de um economista é ganhar um mínimo de dinheiro."

No Brasil, nunca houve produção de algo que pudesse ser chamado propriamente de teoria econômica. Numa perspectiva historiográfica, apenas dois economistas fizeram uma contribuição expressiva: Celso Furtado e Mário Henrique Simonsen. Guedes foi aluno de Simonsen. Mas não fixou o principal ensinamento do professor: "Em teoria econômica, o que não é óbvio quase sempre é besteira."

Guedes prometera reformar o Estado, eliminar subsídios, zerar o déficit no primeiro ano, dar uma facada no Sistema S, coletar R$ 1 trilhão com a venda de estatais e imóveis públicos… A essa altura, é óbvio que a empulhação dá as cartas na pasta da Economia. O resto é besteira.

Sob Bolsonaro, o brasileiro vai se dando conta do seguinte: das várias maneiras para se atingir o desastre, o negacionismo do presidente é a mais letal; o relacionamento com o centrão é a mais cara; e a ficção econômica de Guedes, a mais segura.


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