29/03/2024 - Edição 540

Especial

Um novo feminismo

Publicado em 06/03/2015 12:00 -

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O dia 8 de março é um marco na luta pelos direitos das mulheres ao redor do mundo. Se fosse possível retroceder no tempo e contar para um cidadão do começo do século 21 que as mulheres, hoje, votam, tem média de escolaridade maior que a dos homens, governam países e estão inseridas amplamente no mercado de trabalho, talvez o sujeito não acreditasse no relato.

No entanto, ainda há muito que avançar para se alcançar a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Os dados sobre a opressão sofrida pelas mulheres é assustador. Segundo pesquisa realizada pela Comission on the Status of Women da ONU, uma em cada três mulheres no mundo já foi espancada ou violentada sexualmente.

Os números no Brasil também são alarmantes. A cada cinco minutos, uma mulher é agredida no país. Em cerca de 70% dos casos, quem agride é o marido ou namorado, de acordo com relatório do Ministério da Justiça.

Os direitos constitucionais ainda não garantem igualdade de condições para os gêneros. Para entender as diferenças entre homens e mulheres no mercado de trabalho, por exemplo, a PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, diz que a equiparação de salários só deve acontecer daqui a 79 anos, para mulheres e homens que executam as mesmas funções. As mulheres, no caso, ganham menos.

"A data de comemoração do dia das mulheres é simbólica. No entanto, é uma boa maneira de inserir o debate sobre os direitos das mulheres e colocar o tema na agenda. Por exemplo, é importante que as políticas públicas permitam a discussão nas escolas sobre igualdade de condições para os gêneros", afirma Karina Janz Woitowicz, doutora em Ciências Humanas na área de Estudo de Gênero da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).

Historicamente, as mulheres foram autorizadas a frequentar a escola no Brasil apenas em 1827, quando uma lei no período imperial permitiu-lhes o acesso à Educação. No entanto, a lei garantiu acesso apenas às escolas elementares.´

História de lutas

O movimento feminista mundial surgiu como uma forma de reivindicar esses e outros direitos. As origens do movimento estão atreladas aos acontecimentos da década de 1960. Com o surgimento da pílula anticoncepcional, por exemplo, as mulheres conquistaram liberdade sexual. Antes, as relações eram estritamente monogâmicas e voltadas para o casamento.

Escritoras como Simone de Beauvoir e Betty Friedan ganharam espaço por buscarem desconstruir o papel então convencionado para a mulher na sociedade.

Um caso emblemático desse período aconteceu no dia 7 de setembro de 1968, quando centenas de mulheres de vários partes dos Estados Unidos saíram às ruas de Atlantic City e protestaram contra os estereótipos femininos e a "ditadura da beleza". A ideia era fazer uma queima coletiva de sutiãs. No entanto, o plano não foi concretizado.

No Brasil, a autora Céli Regina Pinto, no livro "Breve história do feminismo no Brasil", descreve duas fases do movimento no país: "feminismo bem-comportado" e "feminismo mal-comportado".

Na primeira fase, entre o final de século 19 até o início do século 20, em 1932, as mulheres conquistam o direito de votar. A bióloga Bertha Lutz é a principal articuladora feminista do período.

A segunda fase, entendida como "mal-comportada", foi marcada por mobilizações contra a ditadura, quando muitas mulheres brasileiras foram exiladas. Nesse período, as mulheres tiveram uma participação efetiva nas lutas pela democracia, mobilizadas para as causas gerais (fim da ditadura) e para causas específicas (pelo combate à violência doméstica, pela construção de creches para os filhos das trabalhadoras e pelo direito ao aborto).

Ao longo das décadas, o Brasil conquistou muitas vitórias na luta contra a violência domiciliar. Em 1985, foi criada a primeira delegacia da mulher. Quase dez anos depois, a Lei 11.340, mais conhecida como Lei Maria da Penha, aumentou o rigor nas punições para violência doméstica ou familiar. Hoje, agressores de mulheres podem ser presos em flagrante ou ter prisão preventiva decretada. Além disso, a lei prevê medidas como a saída do agressor do domicílio e a proibição de sua aproximação da mulher agredida e dos filhos.

A violência contra as mulheres ainda encontra apoiadores de forma velada na sociedade ou explícita em redes sociais. Luzinete Simões Minella, professora do programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), explica que uma grande questão atual na luta por direitos é a conscientização sobre os preconceitos. "A misoginia, por exemplo, é muito maior que simples preconceito, é o ódio ao sexo feminino. Essa forma de pensar alimenta a ideia de alguns estereótipos e impede mais conquistas das mulheres", afirma. 

Novas lutas

Décadas depois dos protestos pela liberação sexual, nos anos 1960, e mais de um século depois da campanha pelo direito ao voto – causas que uniram gerações inteiras de mulheres –, um feminismo novo e multifacetado está emergindo dos blogs e redes sociais. Muitas das novas militantes são mulheres jovens, educadas na era digital, que passaram a juventude inteira ouvindo que homens e mulheres já tinham direitos iguais. Com a chegada à vida adulta e ao mercado de trabalho, elas depararam com inúmeros sinais de que a igualdade entre os sexos ainda é uma ilusão – e decidiram se organizar para fazer algo a respeito. Alguns especialistas já descrevem esse fenômeno como o surgimento da quarta onda feminista, para diferenciá-lo dos três outros grandes momentos do feminismo no século XX. Há até quem tenha trocado a palavra “feminismo” por “feminismos” – assim mesmo, no plural. Em vez de formar um movimento único, como no passado, as novas feministas formam vários grupos distintos. Suas causas muitas vezes são semelhantes, mas cada um tem sua visão de feminismo e sua estratégia para buscar mais igualdade. 

As novas feministas têm diferentes formas de protestar. Ex-líder do Femen no Brasil, Sara Winter é uma das radicais. Desde o surgimento do grupo na Ucrânia, em 2008, as passeatas usam a nudez para chamar a atenção da mídia – e muitas vezes terminam com suas integrantes na delegacia. O grupo já promoveu manifestações diante de templos religiosos, como mesquitas, ou símbolos públicos, como sedes de governos e embaixadas. Sara, que acaba de criar um movimento próprio, com base no Femen, o Bastardxs, acredita no poder do corpo como instrumento de protesto. “A gente choca por meio da nudez descontextualizada”, diz Sara. A Marcha das Vadias, movimento que surgiu em 2011 no Canadá, também usa o espaço público das ruas para seus protestos. Nas marchas, repletas de cartazes com palavras de ordem, há nudez, mas não é obrigatória. “Até homens podem marchar, mas o comando é sempre das mulheres. A única regra é essa”, diz uma integrante da Marcha de São Paulo, que não quis se identificar.

As manifestações no mundo virtual também fazem barulho. Um exemplo foi a campanha Chega de Fiu-Fiu, lançada em 2013 pela jornalista Juliana Faria, em protesto contra as cantadas ofensivas. Por meio de seu site Think Olga, ela coletou opiniões de 7.762 mulheres sobre assédio sexual. A pesquisa teve grande repercussão e foi compartilhada por dezenas de milhares de pessoas. Outra estrela do ativismo digital é a professora universitária Lola Aronovich, autora do blog Escreva Lola Escreva, que tem em média 260 mil visitantes por mês. Desde 2008, o blog abriga longos textos diários que defendem a liberdade sexual e criticam a maneira como as mulheres são retratadas na imprensa, na publicidade e no cinema. O blog Blogueiras Feministas, criado pela pesquisadora Cynthia Semíramis, também se destaca. O site reúne textos de ativistas brasileiras e também de outros países. Doutoranda em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Cynthia tenta levar a discussão da internet para o Legislativo, sugerindo mudanças em leis relacionadas às mulheres.

Polêmicas

Uma das características das novas feministas é que elas, além de se expressar de forma distinta, também têm opiniões divergentes sobre causas polêmicas. Uma delas é a regulamentação da profissão de prostituta. Algumas feministas discordam. Sara Winter acredita que a regulamentação transforma o corpo da mulher em mercadoria. “É preciso pensar quando a prostituição é, de verdade, uma opção para a mulher, e não uma necessidade”, diz. Lola Aronovich pensa de outro modo. Ela apoia a regulamentação, mas com ressalvas. “Eu gostaria de viver num mundo onde a prostituição não existisse”, afirma.

Outras causas unem todos os grupos, apesar das diferenças. Todas defendem o direito da mulher de se vestir como quiser, sem ser julgada ou criticada por isso. A Marcha das Vadias, além de chamar suas integrantes por um adjetivo que choca, usa o topless e slogans fortes para chamar a atenção. Juliana, do Chega de Fiu-Fiu, é mais comedida. Em vez de mostrar o corpo, prefere combater o assédio com a divulgação dos números de sua pesquisa e seu relato pessoal. “Fui assediada pela primeira vez aos 11 anos”, diz. “Era uma criança e estava voltando da padaria, um carro passou perto de mim e gritou palavrões. Não entendi aquilo e comecei a chorar.” Os resultados da pesquisa mostram que Juliana não é exceção. Das mulheres entrevistadas, 83% não gostam de ouvir cantadas na rua, 81% já deixaram de fazer algo por medo de ser abordadas por homens e 90% já trocaram de roupa antes de sair de casa para evitar provocações.

O despertar de um novo feminismo na internet também deu voz a outros grupos, que o movimento feminista tradicional não representava. É o caso do transfeminismo, uma corrente que defende o fim da discriminação não só contra as mulheres, mas também contra as pessoas que não se identificam com comportamentos ou papéis esperados para pessoas de seu sexo. Entre os grupos incluídos na corrente estão os transexuais (aqueles que têm o desejo de viver e ser aceitos como alguém do sexo oposto) e os transgêneros (desde quem se identifica com o gênero oposto até quem se considera parte homem e parte mulher). “Hoje, não é possível ser aquela feminista que só pensa nos direitos das mulheres”, diz Lola. “É preciso debater os direitos de todos.”

Lá fora

Essa multiplicidade de cenários no Brasil também é vista no exterior. Uma das ativistas mais importantes da atualidade é a cantora pop americana Amanda Palmer. Ela acredita que o debate político sobre o feminismo não funciona e, por isso, prefere chamar a atenção do mundo para o tema com performances ousadas – geralmente envolvendo nudez – e letras sobre medos e emoções femininas. Amanda também se dedica a criticar a exposição do corpo da mulher como objeto do prazer masculino nos meios de comunicação. Sua vítima mais recente foi o jornal britânico Daily Mail, que publicou a foto de seu seio “fugindo” do sutiã num show. Em resposta, Amanda ficou totalmente nua em outro concerto – e tocou uma canção que satirizava o jornal. “Mulheres jovens estão finalmente sendo reeducadas a respeito do que o feminismo significa e que a coisa mais importante é lembrá-las de que a batalha nunca foi vencida”, afirma Amanda.

Outra feminista que se destacou no exterior recentemente foi a cineasta argentina Paula Schargorodsky, que lançou um vídeo intitulado 35 e solteira. Nele, Paula descreve com bom humor sua experiência como a única solteira num mundo rodeado por casais. “Todos os meus amigos querem se casar, morar com seus namorados, ter filhos. Estou lá apenas como testemunha”, diz ela no filme. Ela defende a ideia de que é possível ser solteira e feliz, a despeito das cobranças para casar e ter filhos que atormentam muitas mulheres.

O uso de ferramentas tecnológicas como sites de vídeos e redes sociais é uma das principais características do novo feminismo. Os estudiosos do movimento feminista costumam dividir sua história em três grandes etapas – cada uma delas caracterizada por  suas bandeiras e pela incorporação de novos desafios. A primeira onda, no início do século passado, foi marcada pela luta da conquista do poder político, especialmente o direito ao voto. A segunda onda, da década de 1960 até a década de 1980, lutou pelo fim da discriminação e pelo fim de uma estrutura de comando em que somente os homens tinham acesso ao poder. A terceira onda feminista teve início a partir da década de 1990 e contestou as omissões do movimento anterior. Combatia as definições da mulher típicas da segunda fase, que se baseava apenas nas experiências das mulheres brancas de classe média alta americanas e britânicas. Atualmente, especialistas discutem ainda se estaríamos diante de uma quarta fase do feminismo, definido pelo uso das tecnologias para construir um movimento popular forte, reativo e multifacetado na internet. Nessa onda estariam as dezenas de milhares de mulheres que, como Juliana, Lola e Cynthia, escrevem sobre o assédio nas ruas, a discriminação e a liberdade sexual. A nova onda incentiva as mulheres a perceber que a desigualdade não é um problema individual, mas coletivo – e, por isso, precisa de soluções políticas. Outros especialistas discordam da existência da quarta onda feminista e afirmam que o aumento do uso da internet não seria suficiente para delinear uma nova era. Os novos feminismos seriam uma continuação da terceira onda.

Num ponto, todos concordam: o feminismo de fato deixou de ser um movimento único para dar lugar a grupos fragmentados. A mudança é vista como algo natural. “Seria louco juntar todas as mulheres num único movimento, dada a diversidade de suas necessidades e experiências”, afirma a escritora feminista americana Naomi Wolf. Isso não significa que o feminismo tenha se enfraquecido. Pelo contrário: “A tensão entre os diferentes feminismos é positiva, pois nos mantém pensando sobre o tema, buscando respostas e tentando descobrir novas visões” diz Lisa Wade, professora de sociologia da Occidental College, na Califórnia. A forma democrática como os grupos são organizados, a diversidade das participantes e a pluralidade de reivindicações incentivam mulheres antes marginalizadas a aderir a alguma das bandeiras feministas e começar a protestar por seus direitos. “Essa é uma das riquezas do feminismo atual, que ele seja múltiplo”, diz Tânia Swain, professora de estudos feministas na Universidade de Brasília (UnB). “Há uma grande movimentação de negras, latinas e lésbicas para se fazerem ouvir.” Somadas, as vozes de múltiplos grupos diferentes podem soar mais fortes do que um movimento unificado. 


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