29/03/2024 - Edição 540

Meia Pala Bas

Saudosas Omissões Enciclopédicas

Publicado em 06/03/2015 12:00 - Redação Semana On

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Eu fui um adolescente pré-internet.  Na minha mochila, além de um walkman e muitas pilhas e fitas K7 (claro, também tinha uma Bic sem carga. Os fortes entenderão), eu carregava livros, gibis, uma máquina fotográfica descartável da marca “Love” e uma pequena agenda com os números de telefone da galera, além de umas três ou quatro fichas de orelhão.  Sim, minha mochila era uma versão pré-histórica de smartphone.

Não me atreveria a dizer que minha adolescência se deu numa época mais feliz que o presente. Minha versão teen, por exemplo, teria um ataque epilético ao ver “Os Vingadores” ou jogar “Batman Arkham City”. Mas ser jovem naquele tempo significava estar sujeito a um grave problema: o complexo da enciclopédia.

Não existia lar de classe média que não se orgulhasse em ostentar uma robusta enciclopédia no centro da sala. Uma enorme coleção de livros de capa dura que ocupavam toda uma prateleira e tinham relevância tanto funcional quanto simbólica. Não dava para fazer trabalhos escolares sem uma enciclopédia em casa. Era preciso ir à biblioteca, onde os outros filhos de lares falidos se engalfinhavam pelos fascículos disponíveis.

Se a internet dá oportunidade de acesso universal à informação, ela também dá voz a quem não liga tanto assim para a verdade.

Ter enciclopédia era também um sinal de status econômico. Elas custavam tanto quanto um Mac Book. As marcas mais famosas eram ainda mais caras. Meu sonho era ter uma Barsa. Meus pais não tinham condição. Tive que me contentar com uma Larousse, uma espécie de CCE do mercado enciclopédico. Eu invejava meus amigos que tinham uma Barsa em casa. Não só porque eles tinham mais dinheiro. Quem tinha a melhor enciclopédia tinha um melhor entendimento do mundo. Minha enciclopédia modesta me proporcionava acesso a um mundo modesto. Quem era estudante nessa época sabe a vergonha que era perceber que um determinado assunto não constava na enciclopédia da família. Com o rabo entre as pernas, lá ia eu bater no vizinho e pedir para consultar a Barsa dele. O risinho de canto de boca do garoto, ao abrir a porta, deve ter provocado danos irreparáveis à minha autoestima.

Eu já estava com um pé fora da adolescência quando a Internet pegou pra valer no Brasil. O futuro se mostrava promissor. A ditadura da enciclopédia de grife estava ameaçada. Todos teriam acesso às mesmas fontes de conhecimento. As verdades seriam universais. As dúvidas perderiam a razão de ser. A internet nos prometia um mundo sem espaço para equívocos. E eu, de camarote, assistia o nascimento deste novo Iluminismo.

O que eu ignorava – e somente agora percebi – é que ignorância não é sempre falta de acesso. Às vezes é opção. E, se a internet dá oportunidade de acesso universal à informação, ela também dá voz a quem não liga tanto assim para a verdade.  Num mundo onde todos têm acesso a tudo, a internet nos obriga à convivência com organizações que acham que vacinação infantil causa autismo, que a ditadura militar foi uma boa e que determinadas mulheres merecem ser vítimas de violência sexual.

Navegando sem rumo nem esperança pela terra arrasada dos fóruns de comentários online, sinto saudade do mundo claustrofóbico da minha velha Larousse. Ela podia pecar pela omissão, mas jamais pela inclusão. 

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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