29/03/2024 - Edição 540

Poder

Com fatiamento da PEC do Calote, Senado agiu como ‘puxadinho’ da Câmara

Publicado em 10/12/2021 12:00 -

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Não foi por falta de aviso. Quando a PEC do Calote, quer dizer, dos Precatórios, foi para análise do Senado após aprovada pela Câmara, muita gente antecipou que era grande o risco de que as mudanças feitas pelos senadores fossem ignoradas. Acabou sendo promulgada, no último dia 8, apenas a fatia em que havia concordância das duas casas. Ou seja, passou aquilo que os deputados federais quiseram que passasse. A segunda fatia ainda será analisada e a Câmara pode retirar as mudanças dos senadores.

Uma das principais alterações feitas pelo Senado que ficou de fora foi a vinculação dos mais de R$ 110 bilhões que devem ser obtidos com todas as fatias da PEC a gastos sociais e previdenciários. Há chance desse dispositivo ser deixado de lado, o que abre caminho para que o presidente tenha mais liberdade para gastar esse dinheiro e que parlamentares tenham mais recursos para emendas no ano em que tentarão a reeleição.

Se não houvesse o fatiamento, a vinculação aos gastos sociais e previdenciários, proposta pelo Senado, seria a condição para que a PEC fosse aprovada nas duas casas. Mas o fatiamento ocorreu, torturando o regimento interno do Congresso.

Após ser desmembrada em um acordo costurado entre os presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), a primeira fatia da PEC do Calote foi promulgada sem a parte do calote, só com a mudança de cálculo oportunista da regra do teto de gastos públicos. Com isso, Bolsonaro já pode contar com R$ 62 bilhões a mais.

Agora, a fatia que ficou de fora, que inclui o adiamento no pagamento das dívidas públicas, inclusive com aposentados, e representa outros R$ 48 bilhões, pode passar sem a vinculação a gastos sociais e previdenciários, entre outras alterações dos senadores que melhoraram o texto dos deputados.

Se essa segunda parte acabar travada em uma briga entre Câmara e Senado, Bolsonaro terá recursos para os R$ 400 do Auxílio Brasil, mas não para outras despesas. Mas como a não-vinculação de gastos interessa ao centrão como preparação para o ano eleitoral, a segunda fatia pode ser aprovada sem o mecanismo. A menos que os senadores que se sentiram enganados, e que se manifestaram no momento de promulgação da PEC, nesta quarta, gerando um momento constrangedor no Congresso, consigam se articular.

Buscar recursos para ajudar uma população vulnerável que está caçando comida no lixo é tão fundamental que não deveria estar a cargo de uma pessoa como Jair Bolsonaro. Mas, infelizmente, está. E, tragicamente, a fome no Brasil foi usada como justificativa para um cambalacho nas contas públicas a fim de garantir recursos para a reeleição do presidente e de seus parlamentares aliados. Não era necessário um calote nas contas públicas para garantir os R$ 400, mas era necessário o calote para garantir mais recursos visando à reeleição.

Em 2017, o Senado Federal também abriu mão de seu papel de câmara revisora deixando passar a Reforma Trabalhista sem as mudanças propostas pelos senadores, apenas com o conteúdo que já havia sido aprovado pela Câmara, sob a justificativa de que o país tinha pressa para crescer economicamente.

Como consequência, houve muito ranger de dentes porque não foi honrado o compromisso de que as propostas dos senadores seriam aprovadas em forma de nova lei logo na sequência. E a Reforma Trabalhista, que tramitou sob a justificativa de que faria leite e mel correr no meio fio das cidades brasileiras, ficou numa vazia promessa.

Lira e Pacheco levaram Rosa Weber na conversa

Arthur Lira e Rodrigo Pacheco levaram na conversa a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal. Obtiveram dela a liberação das emendas orçamentárias secretas que ainda estavam pendentes de pagamento em 2021. Coisa de R$ 9 bilhões, de um total de R$ 16,8 bilhões destinados neste ano pelo Planalto à compra de apoio no Congresso. A ministra também esticou de 30 para 90 dias o prazo para que o Congresso divulgue os nomes dos parlamentares que já receberam sigilosamente mais de R$ 30 bilhões do orçamento paralelo desde 2020.

Em decisão anterior, referendada pelo plenário do Supremo por 8 votos a 2, Rosa havia determinado a suspensão do pagamento das emendas secretas, sob o argumento de que o direcionamento das verbas para "um grupo privilegiado de parlamentares" fere o princípio da impessoalidade. Deu prazo de 30 dias para que o Congresso desse publicidade aos nomes dos beneficiários. Lira e Pacheco disseram que a revelação dos dados sobre o passado era "inexequível". Não colou. Na última sexta-feira, Pacheco pediu seis meses para verificar se será possível coletar os dados. Rosa perdoou a mentira e concordou em dar mais três meses de prazo.

A ministra mencionou em seu despacho o projeto que o Congresso se apressou em aprovar fixando novas regras para o funcionamento do balcão de emendas. Deu de ombros para o fato de que, mesmo sob novas regras, a verba pública continuará sendo distribuída apenas para um grupo de privilegiados. A Comissão de Orçamento do Congresso acaba de reservar R$ 16,2 bilhões para o rateio de 2022. A transparência será fosca, pois os parlamentares foram autorizados a esconder as digitais atrás de pedidos assinados por prefeitos, governadores e entidades sociais.

O plenário do Supremo tende a avalizar a nova decisão de Rosa Weber. Os ministros impressionaram-se com o lero-lero segundo o qual o Supremo travara obras e investimentos prioritários em saúde e educação. Com a liberação, o balcão do troca-troca passa a funcionar com o selo de qualidade do Supremo. Considerando-se que os escândalos não param de escalar as manchetes, a Corte corre o risco de ser vista como cúmplice de malfeitos. As obras e os investimentos meritórios ainda não vieram à luz.

Orçamento secreto e improviso social distanciam Brasília do Brasil da fome

À medida que a fome ganha as manchetes, a Brasília da Praça dos Três Poderes vai adquirindo a aparência de um território improdutivo situado num Brasil paralelo. Notícia da Folha menciona os efeitos da conjunção de três flagelos —seca, pandemia e crise econômica— nos hábitos do nordestino.

Morador de Senador Elói, município potiguar com nome de político, o brasileiro Adailton, 52 anos, se emociona ao contar sobre a última vez que levou carne à boca. Deu-se há mais de um mês. Obteve a pata dianteira de uma vaca. Junto com Sebastiana, sua mulher, extraiu alimento desse pedaço da anatomia bovina por 20 dias.

Nesse período, Executivo, Legislativo e Judiciário rodopiavam como parafusos espanados em torno de três temas: o Auxílio Brasil, a PEC dos precatórios e o orçamento secreto.

Versão piorada do Bolsa Família, o Auxílio Brasil serve descaso e improviso a quem precisa de comida. A emenda dos precatórios utiliza o estômago do pobre como álibi para furar o teto de gastos em R$ 106 bilhões.

Enquanto isso, Câmara e Senado travaram em Brasília uma briga na qual o brasileiro que passa fome entra com a cara. Arthur Lira, líder do centrão e presidente da Câmara, pegou em lanças para destinar parte da verba do calote para o balcão das emendas. Agora pode, já que Rosa Weber fechou os olhos.

Afora a aridez da paisagem, o que diferencia o Brasil real do país surreal da Praça dos Três Poderes é o tipo de fome. A fome das autoridades de Brasília é um problema que pode ser resolvido abrindo a geladeira do apartamento funcional. Ou tocando o interfone para a cozinha do palácio.


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