26/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Latuff: ‘existe um esforço para calar vozes que discutem a violência policial’

Publicado em 07/12/2021 12:00 -

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O chargista e o ativista político Carlos Latuff coleciona situações em que seus trabalhos foram alvos de críticas e tentativas de censura ao serem aplicados em escolas. A mais recente ocorreu na semana da Consciência Negra, quando estudantes do Colégio Cívico-Militar Ced 1 da Estrutural do Distrito Federal produziram uma exposição sobre a data. Nos murais estavam charges de diversos artistas com críticas à violência policial.

A vice-diretora da escola disse ao site Metrópoles que o diretor de disciplina, um tenente da PM, pediu a retirada das obras, o que foi negado. Dias depois, o deputado federal Heitor Freire (PSL-CE) entrou na escola acusando os profissionais de corrupção de menores e apologia ao nazismo, já que uma das charges, de autoria de Latuff, mostra um policial com uma braçadeira com a suástica nazista assoprando uma vela com o número 20 num bolo escrito “novembro” e com um corpo de um jovem negro em cima.

Para o chargista, as polícias têm um espírito corporativista que inviabiliza a discussão sobre a violência de Estado. “É a mesma discussão de que ‘o Brasil não é um país racista’, ‘não tem racismo no Brasil’ e o que acontece são casos isolados. Quando você faz isso, você nega que tem problema”, aponta Latuff. “O Brasil é um país racista e a máquina que mais mata e prende o povo no Brasil é o Estado. É uma máquina de moer gente preta e pobre. E como isso acontece? Através do seu braço armado. Quem é o seu braço armado? É a polícia”.

No ano passado, a Polícia Militar do Rio Grande do Norte pediu esclarecimentos ao Colégio Marista de Natal por usar charges críticas à polícia em prova. Em 2019, o deputado federal Coronel Tadeu (PSL-SP), do mesmo partido de Freire, destruiu uma placa que continha uma charge feita pelo artista exposta no Congresso Nacional no mês da Consciência Negra, na qual aparece um jovem negro morto, vestido com uma camiseta com a bandeira do Brasil, com as mãos algemadas para trás e, ao fundo, aparece de costas um policial caminhando para longe com a arma indicando ter feito o disparo. A placa ainda continha a frase “o genocídio da população negra”.

Em 2015, duas alunas da Escola Estadual Professor Aggeo do Amaral, de Sorocaba, no interior de São Paulo, ilustraram um trabalho de filosofia sobre o livro Vigiar e Punir de Michel Foucault com uma charge de Latuff ao abordar a violência policial. Na imagem, um policial da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), representado por uma caveira, segura uma caixa com um homem morto e com a seguinte frase “por relevantes serviços prestados”. Na época, a PM expôs os nomes das alunas, menores de idade, do orientador e o trabalho com a declaração de que os profissionais de ensino estavam “propagando e incutindo o discurso de ódio em desfavor de profissionais da segurança”. Essa charge, feita em 2013, também foi usada na exposição do Ced 1 da Estrutural.

Em entrevista à Ponte, Latuff conta como e por que começou a incluir a temática em seus trabalhos, a proporção e o incômodo que geraram.

 

O que o levou a incluir críticas à violência policial no seu trabalho?

Eu sou carioca, então eu via muito isso no meu cotidiano, a truculência, principalmente, da PM. Acompanhava isso, fosse pela imprensa, fosse no dia a dia. Eu trabalhava como office boy de rua, então via muita coisa na rua. Eu, particularmente, nunca sofri violência policial, mas vi muita gente, inocente inclusive, sofrendo violência policial. O primeiro trabalho que eu fiz sobre isso foi em 1997, quando teve aquele incidente da Cidade de Deus em que os PMs espancaram os moradores e isso foi filmado, logo depois daquele outro incidente da Favela Naval, em que um uma pessoa foi assassinada por PMs numa blitz. De lá para cá, eu tenho tido um trabalho devotado a esse assunto justamente por entender que a violência policial no Brasil é endêmica e é algo que precisa ser tratado com coragem.

Toda a vez que você vai tratar desse assunto, você recebe algum tipo de represália, algum tipo de retaliação, uma ameaça seja lá quem for. Seja um chargista, seja um jornalista, qualquer que seja que trate dessa questão. Então, por isso, achei por bem, enquanto um chargista que sempre teve o trabalho associado a causas sociais, a direitos humanos, sempre achei que esse fosse um tema muito importante. E como ele [o tema] foi tratado num trabalho de escola sobre o Dia da Consciência Negra e teve esse incidente também lá no no Congresso Nacional [em 2019], fazendo menção ao Dia da Consciência Negra, levando em consideração que a violência policial tem a ver com o extermínio de pretos e pobres do Brasil, eu sempre procurei tratar dessa temática das minhas charges.

Inclusive, também acabou sendo usado como marca de movimento social, como o das Mães de Maio, com a representação da mãe negra com o filho ensanguentado nos braços.

Isso, com a Débora [Silva, fundadora do movimento Mães de Maio]. Não só a Débora como outras mães também que perderam filhos para a violência policial. Exatamente por elas entenderem que o meu trabalho se encaixa nesse sentido de solidariedade, de denúncia. Eu me sinto muito honrado quando sou acionado por mães que perderam filhos. Isso também aconteceu algumas vezes, além da Débora, já fiz outros trabalhos para outras mães. É uma tragédia absurda. E toda vez que você vai entrar nesse assunto sempre tem o ar de ameaça, de que não pode falar, que vão acionar a justiça, o policial vai na escola, notinha de repúdio, ameaças em redes sociais. Sempre é a mesma coisa.

Você já foi ameaçado diretamente pelas charges a ponto de ter que fazer um boletim de ocorrência ou se precaver juridicamente?

Não chegou a esse ponto.

Por que tocar nesse assunto incomoda?

Porque existe um espírito de corpo. As polícias, as instituições policiais, sejam elas Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar ou as guardas municipais, mas principalmente a Polícia Militar, tratam a questão como um fato isolado. Se você reparar, todas as notícias que você tem sobre violência policial, sobre a participação das polícias com o crime, sempre o argumento é o mesmo. É uma minoria, é uma banda podre, são poucos os policiais que não representam a totalidade da corporação. É sempre o mesmo argumento. Esse é um argumento que nega um fato de que as instituições policiais estão contaminadas até o osso, não só com essa violência cotidiana contra os negros e pobres das comunidades de favela, como também com envolvimento com o crime. Você não precisa pesquisar muito, basta você abrir jornal, ver a TV ou rádio, para ver que toda vez que tem quadrilhas desbaratadas, tem sempre um ou dois PMs ou então, no caso do Rio de Janeiro, tem quadrilhas inteiras formadas por policiais tocadas por milícias. A milícia no Rio de Janeiro e em outras partes do Brasil, formada por policiais, bombeiros, etc., forças do Estado, é um indicativo indubitável da participação das forças policiais com o crime. Então, você negar que existe violência policial ou minimizar de que isso é obra de um ou dois policiais é você negar o problema.

Existe um espírito de corpo de que as polícias são uma força intocável. Você não consegue depurar, tratar do papel delas, dos desmandos dela, dessa participação das polícias no crime. Você não consegue fazer esse debate em termos racionais, razoáveis, porque, além dessa dessa aura de ameaça, também tem aquele argumento de que, se você é contra a violência policial, você é a favor de bandido. ‘Defensor de bandido! Se você for assaltado, vai chamar quem? Chama o Batman!’. E geralmente quem defende cegamente aos desmandos das polícias, quem ignora essa essa violência, essa epidemia, essa pandemia de violência policial no Brasil, 99% é a direita e a extrema direita, é a base do Bolsonaro, por exemplo. É o próprio Bolsonaro. Não é à toa que o Bolsonaro sempre faz aceno às polícias. É a mesma discussão com racismo, entendeu? ‘O Brasil não é um país racista, não tem racismo no Brasil, tem casos isolados’. Quando você faz isso, você nega que tem um problema e é uma forma de inviabilizar um debate nacional. Então você tem que afirmar: o Brasil é um país racista, quem mais mata preto e pobre no Brasil é o Estado. A máquina de moer gente preta e pobre no Brasil é o Estado. E como o Estado faz isso? Através do seu braço armado. Quem é o seu braço armado? É a polícia. A gente precisa aceitar isso como um fato inegável. Por isso, inclusive, que existe o movimento de Policiais Antifascismo, que vai na contramão dessa ideia de que a polícia tem que ser violenta. Esse movimento abre um diálogo, que é feito por policiais que têm consciência de que esse modelo adotado no Brasil, esse modelo de Polícia Militar de ações em favelas, chamada de guerra às drogas, mata gente inocente, mata bandido, mata a polícia, mata todo mundo e não resolve nada. Os índices de criminalidade só aumentam.

Desde que você começou a retratar a violência policial nos seus trabalhos, na década de 1990, você sente que essa discussão avançou?

Não vi nenhum movimento para enfrentar isso. A coisa nova que surgiu no cenário político social foi esse movimento de Policiais Antifascismo. Agora, em relação à atitude dos comandos, essa atitude continua sempre a mesma. Por exemplo, aquele vídeo em Minas Gerais de uma mulher com uma criança sendo agredida por PMs. E detalhe: é tudo documentado, é filmado. Na época que eu fiz um grafite contra a violência policial na Cidade de Deus em 1997, ter uma câmera não era uma coisa tão simples assim como hoje, em que qualquer pessoa tem um celular e o celular tem câmera de 4K e transmite para as redes sociais. Hoje, tem uma penca de vídeos, de fotos, documentando a violência policial. Mas quando acontece, o argumento é sempre o mesmo, parece um template: vamos apurar possíveis desmandos, caso seja confirmado, os responsáveis serão afastados e responderão de acordo com o Código Militar, ou serão afastados. E aí o que acontece? Eles são afastados do serviço da rua e daqui a pouco voltam para a rua de novo e não acontece mais nada. Por exemplo, processos envolvendo massacres cometidos pela polícia não avançam. Aquilo que aconteceu no Jacarezinho foi decretado sigilo de 100 anos [a Polícia Civil do Rio impôs 5 anos de sigilo ao inquérito sobre a chacina, em maio]. As polícias parecem ser um poder paralelo realmente. Até governador tem medo de mexer com as polícias. Eu não consigo imaginar isso num país minimamente decente, num país democrático, em que o governo tenha medo de mexer na estrutura policial. E a estrutura policial precisa ser mexida, sim. Se a gente quer uma polícia que sirva ao cidadão ao invés de assassiná-lo, a gente precisa discutir isso. Quando discute, como no caso da escola e do Congresso Nacional, se discute aquilo por um tempo, têm aqueles debates nas redes sociais para depois voltarmos à estaca zero.

Agora eu, como chargista, coleciono situações como essa que aconteceram e que aconteceu agora nesse centro educacional de Brasília. Esse caso de Sorocaba foi muito importante, eu estive lá, e inclusive posteriormente àquilo houveram outros incidentes na mesma linha. Recentemente no Rio Grande do Norte também teve um problema igualzinho a esse. Sequer se pode tratar desse assunto. Um aluno, um professor, dentro da sala de aula não podem fazer um trabalho sobre violência policial. Como se a violência policial fosse uma fantasia da esquerda, do movimento de direitos humanos. Eu fico muito honrado que usem não só as minhas charges, mas de outros artistas, em trabalhos de escola com esse poder de representação. Mas vem sempre a mesma resposta. E a gente vai não avançar num debate sobre um problema tão grave no Brasil sem discutir a violência policial, o extermínio de pessoas pretas e pobres e o racismo que são temas coligados.

O que faz com que a divulgação desses trabalhos, usando essas charges, em escolas ganhem essa proporção?

Recentemente, teve um grupo de chargistas da Folha de S. Paulo, incluindo a Laerte, fizeram charges sobre violência policial, sobre o caso de Paraisópolis, e houve uma ação, eu creio que uma organização de policiais militares entrou na justiça, se eu não me engano, contra os chargista e essas charges que foram publicadas pela Folha. Então, existe sempre uma tentativa das polícias, seja os comandos, seja as organizadoras de representação dos policiais, de calar vozes que tragam essa discussão a público. Então, você como jornalista deve saber que tem jornalistas que, por terem feito matérias sobre violência policial, sobre massacres ou crimes cometidos pela polícia, sofrem represálias. Sofrem ameaça. Quando elas [críticas] acontecem na imprensa e na escola, têm preocupação maior porque se entende que a escola e a imprensa têm uma importância muito grande na sociedade. Elas têm papéis importantes de formação e informação. Então, existe um esforço de tentar sufocar essas vozes já no nascedouro.

Mas, como se percebe, de Sorocaba para cá, os alunos e os professores não têm se intimidado. Esse tipo de trabalho sobre violência policial é recorrente nas escolas. Que bom que seja assim. Então, eu respeito muito diretores, professores, professoras, alunos que tenham coragem de trazer esse debate para as escolas ou para as universidades, para as instituições de ensino. Eu como chargista faço a minha parte. Essas charges, inclusive, que são utilizadas são até antigas. Para você ver que o problema não passa, o problema continua e charges feitas anos atrás continuam sendo relevantes, infelizmente, hoje em dia.

Você comentou que esses casos têm um rebuliço no começo, com discussões, mas depois se volta para a estaca zero. O que deve ser feito?

Você vê as pessoas falando da Marielle atualmente? As pessoas já não falam mais da Marielle. E daqui a mais um ano, dois anos, vai se esquecendo e daqui a pouco a Marielle está na gaveta. É isso, entendeu? Isso é um problema dos nossos tempos: um ato de violência, se ele não for tratado com a devida gravidade, passa a ter o próximo. A gente teve uma mulher, a Cláudia, uma mulher negra, favelada, arrastada por uma viatura da PM. Isso foi registrado. É isso que eu estou te falando. Não é a palavra nossa contra a deles. Isso tem registro. Tem filme, tem foto, tem tudo, mas não adianta. Não comove mais as pessoas, principalmente, porque quem morre é preto. Se fosse branca, classe média, rica, aí tudo bem, ia render muito, mas depois de algum tempo também ia desaparecer das manchetes. Infelizmente, nos nossos tempos, como diria o Bauman, é tudo líquido. Então, tudo vai passando. Acontece uma tragédia agora, as pessoas são mobilizadas por aquilo ali, a imprensa cobra aquilo ali por um tempo, daqui a pouco some e vem a próxima tragédia. Quantas crianças, meu Deus do céu, foram assassinadas no Rio de Janeiro, com as tais balas perdidas. Você já não lembra o nome porque morreu tanta gente. Eu desafio você a lembrar o nome de 10. Você não lembra. Nem você que mexe com hard news.

O George Floyd nos Estados Unidos ninguém vai esquecer porque gerou toda aquela comoção, toda aquela revolta. Agora no Brasil, não tem isso, o rapaz que foi assassinado no Carrefour, as pessoas não lembram mais, cara. O Amarildo, que desapareceu, cadê ele? Então, é preciso pautar o tempo todo. Outra coisa que eu acho que precisa ser feita é criar monumentos, como se dizem em inglês, mementos, memoriais para lembrar. Você vai na Europa, lá tem placas, em Londres tem lá ‘aqui houve um atentado a bomba que matou tantas pessoas’, ‘aqui o trem que levava judeus para Auschwitz saía dessa estação’. Tem placas que indicam onde essas desgraças aconteceram, como na Candelária [no RJ], onde tem lá uma cruz que lembra a chacina da Candelária. É preciso sempre lembrar as pessoas. É preciso estar em constante mobilização. As Mães de Maio, a Débora, estão em constante mobilização. Se você não fizer isso, as pessoas esquecem. É preciso sempre lembrar, seja através de uma placa, de um monumento, de um dia, como o da Consciência Negra, livros, filmes, música, é preciso sempre pautar essa questão. Se não tem uma resposta da sociedade a altura, continua se repetindo e cai na vala comum do esquecimento.


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