29/03/2024 - Edição 540

Poder

PEC do calote abre crise entre Câmara e Senado

Publicado em 03/12/2021 12:00 -

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A tentativa do presidente da Câmara, Arthur Lira, de promulgar em fatias a PEC dos precatórios abriu uma crise com o Senado. Os senadores sustentam que as modificações feitas no texto foram redigidas de forma a impedir a promulgação parcial. Assim, os deputados teriam que votar novamente a emenda constitucional para que o Auxílio Brasil de R$ 400 comece a ser pago. A promulgação depende da assinatura do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. Ele ateará fogo à Casa que preside se ceder às pressões de Lira.

"O Senado ficaria ingovernável", disse à coluna a senadora Simone Tebet, do MDB. "Sem acordos, essa PEC teria sido rejeitada. Nós já prevíamos que poderíamos ter problemas com a Câmara. Fizemos um texto amarrado. Não há como fabricar uma redação diferente daquilo que foi aprovado." O senador tucano José Anibal, que também participou das negociações que levaram parte da oposição a votar a favor da emenda ecoa a colega: "O texto está amarrado."

Os senadores conseguiram despiorar, por assim dizer, o texto que receberam da Câmara. Permaneceram os vícios de origem: calote de dívidas judiciais, furo do teto de gastos e drible na Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas o texto passou por supressões e, sobretudo, acréscimos que tornaram o ruim menos pior. Os R$ 106 bilhões obtidos com o calote foram carimbados para o pagamento do novo Bolsa Família e gastos com Saúde, assistência social e aposentadorias. O benefício de R$ 400, que venceria em dezembro de 2022, tornou-se permanente, embora tenha sido indicada a fonte da receita. O prazo do calote foi abreviado em dez anos, de 2036 para 2026. Colocou-se acima do teto a cifra de R$ 16 bilhões referentes a precatórios do Fundef, dívidas da área da Educação.

Alheio às divergências que eletrificam as relações entre Câmara e Senado, Bolsonaro e João Roma, ministro do Auxílio Brasil, trombetearam o benefício na live presidencial de quinta-feira. A dupla dá de barato que a primeira parcela do beneficio de R$ 400 será paga antes do Natal.

Calote

A aprovação da PEC dos Precatórios vai consolidando as mudanças nos pagamentos de dívidas do governo. As novas regras vão tornar mais difícil a vida de quem já precisa esperar às vezes décadas para receber o dinheiro a que tem direito, mesmo depois de a Justiça mandar pagar. A mudança definitiva ainda depende de aprovação na Câmara, mas a tendência é que aconteça mesmo. O governo está fazendo isso para bancar o Auxílio Brasil (ex-Bolsa Família).

Com as novas regras, o tempo para o governo federal pagar os precatórios a pessoas e empresas vai se tornar ainda mais incerto, segundo especialistas. Processos que hoje já duram pelo menos 15 anos podem se tornar ainda mais demorados.

A mudança cria uma lista de prioridades para pagamento dos precatórios, e quem ficar fora dessa lista só volta a ser considerado nos anos seguintes, isso se houver disponibilidade de recursos do governo conforme certo limites. Em 2022, por exemplo, deveriam ser pagos R$ 90 bilhões em precatórios, mas só estão destinados R$ 45,3 bilhões para esses pagamentos.

"Desamparada", diz professora que esperou 24 anos

Se a Justiça já deu o direito, por que a gente não recebe? A gente se sente totalmente desamparada.
Izabel Cristina Miranda Lourenço, 63, professora aposentada

Izabel esperou 24 anos para receber uma dívida da Prefeitura de São Paulo, e só conseguiu porque negociou no mercado paralelo e abriu mão de 30%. O precatório demorou 21 anos para sair. E, ainda assim, mesmo com a decisão judicial, passados três anos, ela não havia recebido nada da prefeitura.

Em 1997, entrou com uma ação na Justiça, com outros colegas da Secretaria de Educação da cidade de São Paulo, pelo pagamento de reajustes salariais não concedidos pela prefeitura.

Depois de passar por todas as instâncias, em 2018, a Justiça emitiu o precatório.

Quando isso acontece, quer dizer que não há mais nada que a administração, no caso, a Prefeitura de São Paulo, possa fazer. Tem de pagar. Mas, mesmo depois disso, o valor não foi liberado.

Eram R$ 40 mil que, por causa do tempo, viraram quase R$ 100 mil. Um dinheiro que estava fazendo cada vez mais falta na vida da professora. Izabel viu a aposentadoria também ser achatada, sem reajustes, por sete anos.

"Quando finalmente eu soube que o precatório tinha sido emitido, eu tomei um empréstimo para quitar contas e fazer uma reforma na casa, que estava precisando. Mas o dinheiro não saía. Aí tinha as despesas e mais o empréstimo. Com todo esse desgaste, eu passei a ter síndrome do pânico. Já era diabética e fiquei deprimida", conta Izabel.

Desconto de 30%

Para antecipar o dinheiro, a professora aposentada soube pela advogada que existe um mercado onde quem tem precatório consegue antecipar o pagamento e parar de esperar o pagamento do governo. Mas ganha menos dinheiro, porque há um desconto para isso.

"Fui aconselhada a vender o precatório. Eu não tenho condições de esperar mais 20 anos. Nem vou estar viva. Mas tinha um deságio de 30%, e eu só recebi 70%", diz Izabel.

"Não estou exagerando. Alguns colegas meus que estavam na ação morreram antes de receber. A gente sabia porque nas correspondências da ação aparecia 'herdeiro' no lugar do nome de quem tinha entrado com ação."

Segundo projeções do Instituto dos Advogados de São Paulo, 80% dos precatórios do estado têm como beneficiários pessoas acima de 60 anos. São aproximadamente 200 mil credores.

Demora 15 anos pelo menos

A jornada de uma ação na Justiça até virar precatório demora pelo menos 15 anos. Isso se o caso já tiver um precedente, ou seja, se o tema já tiver sido decidido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), diz a advogada Tatiana Chiaradia, sócia do escritório Candido Martins Advogados.

Uma ação tributária de temas já decididos, por exemplo, dura até cinco anos, apenas para decidir se a pessoa ou empresa tem ou não o direito a receber. Depois, tem a discussão de mérito, que pode demorar mais de oito a dez anos, quando entram as provas, os cálculos. E só então começa a discussão de como será feito o pagamento, o que pode levar mais de três a cinco anos. Se for um tema que ainda depende do STF, a ação pode durar outros sete a oito anos a mais.
Tatiana Chiaradia, escritório Candido Martins Advogados

Segundo a advogada, a PEC dos Precatórios representa "um prejuízo enorme para os credores, com aumento de incertezas e prejuízos" e ainda cria motivos para outras ações na Justiça.

"Se a PEC vale para precatórios já emitidos neste ano, vai ser discutida em juízo a constitucionalidade por causa de direito adquirido de quem deveria receber no ano que vem", afirma Tatiana. "Se a PEC mexer nessa situação peculiar de quem já tinha um direito antes da mudança da lei, isso vai abrir possibilidade para um novo processo".

Mercado vai ficar mais difícil

A PEC dos Precatórios muda as regras dos títulos devidos pelo governo federal. Mas pessoas como Izabel, que têm precatórios de prefeituras e de governos estaduais, também vão sofrer, afirmam especialistas.

Arthur Farache é o executivo chefe da Hurst Capital, uma empresa que busca pessoas e empresas que têm precatórios a receber e oferece a elas o pagamento antecipado, mas em troca de um bom desconto.

Depois, oferecem o precatório que adquiriram a investidores -pessoas que podem esperar pelo pagamento do governo- e que por isso vão receber os 100% do valor do título, faturando a diferença como lucro do negócio.

Já no dia seguinte que começar a valer a lei do governo federal para os precatórios, os governos estaduais e municipais vão querer mudar as regras também.
Arthur Farache, Hurst Capital

Segundo ele, o mercado com precatórios já mudou mesmo sem as regras da PEC dos Precatórios entrarem em vigor: o desconto para quem tem precatório aumentou, e o volume de negócios diminuiu. Os descontos ficavam em torno de 20% a 30%, e agora subiram para 40% em média.

"Os grandes compradores do mercado de precatórios, como bancos e fundos de investimentos, que negociam precatórios acima de R$ 100 milhões, pararam de fazer negócio por causa da incerteza", diz o CEO da Hurst Capital. "Mas quando as regras estiverem claras, esses players vão voltar ao mercado", diz.

Governo diz que PEC não é calote

O ministro da Economia, Paulo Guedes, disse na quinta-feira (2) que a PEC dos Precatórios não é calote, acrescentando que, com a proposta, o governo quer os precatórios também embaixo do teto de gastos.

Anteriormente, o ministro havia dito que o país não tem dinheiro suficiente para bancar as políticas sociais e os gastos com precatórios, mas prometeu pagá-los. " Devo, não nego. Pagarei assim que puder", afirmou.


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