08/05/2024 - Edição 540

Poder

Por que parte da esquerda não reconhece o autoritarismo em Cuba, Nicarágua e Venezuela?

Publicado em 26/11/2021 12:00 -

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Causou furor na imprensa e nas redes sociais a comparação que fez Lula, em entrevista ao El País na Espanha. O ex-presidente, na resposta a um questionamento da jornalista Lucía Abellan sobre as eleições nicaraguenses, que não foram reconhecidas por grande parte dos países democráticos da comunidade internacional, equiparou a longevidade no poder de Daniel Ortega àquela de líderes de democracias europeias.

Lula disse que todo político que se acha insubstituível transforma-se num pequeno ditador. Por isso, o líder petista defende a alternância no poder. Emendou afirmando o princípio da não interferência na política interna de outros países. Até aí nada demais, já que a declaração combinava a defesa quase protocolar do princípio da rotatividade democrática com o reconhecimento da soberania dos países. Pode-se dizer que o ex-presidente defendeu a democracia na primeira afirmação e foi pragmático na segunda.

O problema veio na continuidade da resposta: “Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não? Por que Margaret Thatcher pode ficar 12 anos no poder e Chávez não? Por que Felipe González pôde ficar 14 anos no poder? Qual é a lógica?”

A réplica, feita pela outra jornalista, Pepa Bueno, pegou o ex-presidente no contrapé: “Sim, mas Angela Merkel governou por 16 anos e Felipe González por 13 na Espanha e nenhum dos dois colocou seus opositores na prisão”.

Lula ficou desconcertado. Tanto que imediatamente afirmou que não pode julgar o que aconteceu na Nicarágua, pois não saberia o que as pessoas fizeram para ser presas. Acrescentou que no Brasil foi preso injustamente, tornando possível a eleição de Bolsonaro. E finalizou: “Se o Daniel Ortega prendeu a oposição para não disputar a eleição, como fizeram no Brasil contra mim, ele está totalmente errado”. A transcrição da entrevista na matéria está incompleta; vale a pena assistir ao vídeo, que traz as falas de Lula e das jornalistas na íntegra (o trecho polêmico está a partir de 12:44).

Não é crível que um ser político sofisticado, experiente e bem informado como Lula desconheça o contexto da prisão dos opositores de Ortega na Nicarágua. E foram sete candidatos presidenciais de oposição mandados para a cadeia. Quando admite que o presidente nicaraguense possa estar errado, caso tenha feito isso para ser eleito sem opositores competitivos, ele afirma o princípio, mas simula não saber do fato.

E ele sabe.

A referência à prisão injusta dele próprio, produzida pelo conluio lavajatista, distrai a atenção do problema que lhe havia sido posto pela jornalista. O fato evidente de sua prisão ter sido não somente abusiva, mas politicamente motivada (como o demonstraram cabalmente as revelações da Vaza Jato e da Spoofing), não elimina outro fato evidente: o de que Daniel Ortega prendeu opositores para poder ganhar as eleições sem correr quaisquer riscos de derrota.

A trapaça das eleições brasileiras de 2018, com a prisão de Lula, é gravíssima e fere a democracia. Contudo, ela não decorre de uma característica estrutural do regime político brasileiro. O Brasil, apesar do ocorrido (assim como apesar do impeachment fabricado de Dilma), manteve-se democrático – embora com uma democracia em nítido declínio.

Na Nicarágua, a prisão dos opositores é mais do que um gravíssimo fato que fere a democracia: ela decorre de características estruturais do regime político nicaraguense – autoritário –, tal qual forjado pela permanência prolongada de Ortega na presidência, possível apenas por seguidas alterações das regras eleitorais. Ou seja, Ortega não permaneceu no poder porque as regras do jogo lhe permitiam isso, mas porque ele e seus aliados (inclusive no Judiciário) adulteraram tais regras, de modo a transformar em ditadura um regime antes democrático.

O estapafúrdio da comparação com os casos europeus, feita por Lula na entrevista ao El País, não é apenas que nenhum dos líderes europeus mencionados pelo ex-presidente tenham mandado prender seus opositores. O absurdo desse paralelo está também no fato de que nenhum dos países cujas lideranças permaneceram por um longo período no governo tem um regime político que lhes permita tornar impossível a opositores vencer eleições. Essa incerteza estrutural quanto aos resultados da disputa política é uma característica das democracias, como já apontou o cientista político Adam Przeworski. Ademais, em regimes parlamentaristas a qualquer momento o parlamento pode aprovar um voto de desconfiança e, assim, remover o primeiro-ministro – mas isto nem é o mais importante aqui.

Mas por que Lula tergiversou em relação à Nicarágua – e, na mesma entrevista, também em relação a Cuba -, não reconhecendo o caráter autoritário dos regimes de ambos os países? Alguns, mais críticos a Lula e ao PT, rapidamente apontaram que isso desnudaria o caráter autoritário de ambos. Contudo, essa é uma afirmação insustentável diante de evidências. Veja-se o que foram os 13 anos em que o PT esteve no governo brasileiro. Nesse período, a democracia brasileira não regrediu; pelo contrário, como apontam os vários indicadores internacionais acerca do tema, como, por exemplo, o Democracy Index da The Economist Intelligence Unit. No ranking, a democracia brasileira manteve-se estável num patamar bastante bom entre 2006 e 2014, passando a declinar a partir de 2015, justamente quando se encerrava o ciclo petista no governo.

E, para não ficarmos apenas no índice da revista britânica, consideremos também o do projeto Varieties of Democracy (V-Dem), que mostra um cenário muito similar. Segundo essa outra apreciação, o Brasil melhora justamente após a posse de Lula e começa declinar após o impeachment de Dilma.

O cenário, portanto, está muito distante da “ameaça bolivariana” ou “comunista” apregoada por detratores do PT e de Lula. Isso apenas torna ainda mais intrigante a questão: por que, afinal, há tanta resistência em reconhecer o caráter explicitamente autoritário de regimes como os de Cuba, Nicarágua e Venezuela, reconhecido por esses mesmos índices que apontam a natureza democrática dos governos petistas?

A razão está numa dificuldade que não é exclusiva de Lula ou do PT, mas compartilhada por grande parte da esquerda democrática (ou socialdemocrata) mundo afora: os regimes autoritários de esquerda são fetiches. Isto é, como um membro querido da família, seus defeitos são minimizados e suas qualidades enaltecidas. As críticas feitas a eles são percebidas como ataques feitos a si próprios, ofensas. A solidariedade para com eles é percebida como uma obrigação política e moral.

Isso ganha ainda mais força diante do “imperialismo”, do “neoliberalismo”, do embargo americano ou dos inimigos – verdadeiros ou imaginários – que possam ser apontados ou, no mais das vezes, invocados como justificativas racionalizadoras do apoio a regimes que, se tivessem sinal ideológico invertido, ou vigorassem por aqui, seriam denunciados como ditaduras cruéis.

Para quem está no campo da esquerda, denunciar a natureza autoritária desses regimes é custoso: sua honestidade é posta em dúvida, suas intenções se tornam suspeitas e seus argumentos são desqualificados com base em sofismas. Exemplo até ameno desse tipo de sofisma foi aquele ao qual recorreu Lula, invocando a injustiça de sua prisão como forma de relativizar a injustiça da prisão dos opositores de Ortega. Ora, o abuso da prisão de Lula numa democracia em deterioração como a brasileira de forma alguma torna aceitável o abuso da prisão de opositores num autoritarismo em pleno funcionamento como o nicaraguense – ou o cubano, ou o venezuelano.

Portanto, a defesa persistente que Lula e outros da esquerda fazem dos autoritarismos de seu lado do espectro ideológico não é indicador de um perigo autoritário que eles próprios representem, mas de uma brutal incoerência, decorrente menos de equívocos racionais do que de motivações afetivas e identitárias e, em decorrência disso, dos custos políticos e morais de posicionar-se de outra maneira, como aponta Claudia Hilb em relação a Cuba. E, claro, todos os que desejam apontar o “perigo vermelho” do PT como uma ameaça ditatorial, aproveitam a oportunidade – ainda mais durante a disputa eleitoral.

Lula tem a obrigação de expressar seu ódio e nojo a ditaduras

Se não outras, há pelo menos duas pedras a serem removidas ou polidas no discurso que Lula tem feito como aspirante a candidato à presidência da República pela sexta vez. Uma: o combate à corrupção. A outra: o combate às ditaduras, não importa a cor.

Não dá para dizer, e com razão, que Bolsonaro ameaça a democracia entre nós e fechar os olhos às ditaduras de direita ou de esquerda que empestam o mundo. Não basta dizer que o PT jamais pretendeu implantar uma ditadura no Brasil.

Aos 76 anos, Lula já provou do bom e do pior da vida para se sentir prisioneiro de ideias que defendeu por conveniência para só assim alcançar e manter-se no poder. Ou apenas para pagar favores que recebeu em momentos delicados de sua trajetória.

Kadafi, ditador da Líbia, ajudou-o a certa altura– mas Kadafi morreu linchado por seu povo. Hugo Chávez, presidente da Venezuela, ajudou-o – mas Chávez morreu. Fidel Castro, ditador de Cuba, ajudou-o – mas Castro está morto.

Ensina um ditado popular, execrado em tempos politicamente corretos, que só doido tem ideia fixa, quem não é doido muda de opinião. Lula nunca foi de esquerda como reconhece a direita civilizada. Não tem porque não atualizar o que pensa e diz.

Em uma de suas primeiras reuniões de governo como presidente eleito em 2002, ele falou aos seus ministros no Palácio do Planalto, e não brincava: “Toda vez que fui pela esquerda me dei mal”. Cito a frase de memória. Ela foi reproduzida por Gilberto Carvalho.

Antes mesmo de assumir o cargo, em um hotel na cidade de São Paulo, na presença de José Dirceu e de membros do estado maior de sua campanha, Lula havia advertido: “Aqui, somente eu e José de Alencar [o vice-presidente] fomos votados. Mais ninguém”.

Por sinal, Chávez meteu-o numa arapuca quando em 2009 quis reintroduzir na presidência de Honduras Manuel Zelaya, deposto ao tentar dar um golpe. Zelaya apareceu de surpresa na embaixada do Brasil. E Lula, apesar de contrariado, abrigou-o.

Na entrevista ao jornal El País Lula pregou a não intervenção em assuntos internos de outros países ao ser perguntado sobre a Nicarágua do ditador Daniel Ortega. No seu governo, o Brasil interveio em assuntos internos de Honduras.

A propósito de Ortega, é fato que Lula censurou-o por ter sido reeleito pela quarta vez com sete dos seus adversários atrás das grades. Ocorre que em seguida vacilou ao observar que Angela Merkel governa a Alemanha há 16 anos e ninguém reclama.

Ora, ora, ora… Merkel nunca mandou prender quem se lhe opôs. O parlamentarismo prevê sucessivas reeleições e a troca de primeiros ministros a qualquer momento. Ortega é um ditador, Merkel não. A comparação não tem pé nem cabeça.

Cuba é uma ditadura, goste-se disso ou não, e os cubanos não parecem gostar. Provocado a respeito, Lula preferiu condenar o bloqueio americano a Cuba. Poderia tê-lo feito, ao mesmo tempo em que criticasse a mais antiga ditadura que há no mundo.

A eleição presidencial de 2022 será antes de tudo sobre o destino da democracia no Brasil. Ou Lula se credencia como o candidato mais capaz de restaurá-la plenamente depois do que Bolsonaro tem feito para enfraquecê-la, ou simplesmente ficará para trás.

Está faltando dizer também como se dará o combate à corrupção, uma das chagas de todos os governos da história do país desde o período colonial. A decisão do Supremo Tribunal Federal de devolver-lhe a elegibilidade não lhe dá passe livre para calar-se.


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