27/04/2024 - Edição 540

Especial

Um ENEM com a cara do bolsonarismo

Publicado em 19/11/2021 12:00 -

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Suspeitas de interferência e censura na produção da prova, denúncias de assédio moral contra servidores e evidências de que o número de pobres inscritos caiu drasticamente marcam a edição de 2021 do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), a principal porta de entrada no ensino superior brasileiro e cuja primeira prova será realizada no domingo (21/11).

As polêmicas foram ativamente alimentadas pelo presidente Jair Bolsonaro ao longo da última semana, em particular quando disse que "o Enem começa a ter a cara do governo" — forçando o ministro da Educação a ter que se explicar perante o Congresso.

A preocupação com uma possível interferência do Poder Executivo no Enem foi denunciada ao programa da TV Globo Fantástico, no último domingo (15), por um grupo de servidores do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão encarregado da execução do Enem.

Sob anonimato, os servidores ouvidos pelo Fantástico se queixaram de intimidação e censura na preparação da prova, o que foi negado pelo governo.

Na segunda-feira, Jair Bolsonaro afirmou que as provas do Enem vão ocorrer "na mais absoluta tranquilidade" e acrescentou: "o que eu considero muito também (é que) começam agora a ter a cara do governo as questões da prova do Enem, ninguém precisa ficar preocupado com as questões absurdas do passado".

Mais tarde, questionado pelos jornalistas, o presidente afirmou que não viu as questões do Enem: "Não vi, não vejo, não tenho conhecimento".

Por normas do próprio Inep, as provas do Enem são feitas sob sigilo e não podem ser vistas por pessoas de fora do comitê que as elabora.

Na quarta-feira, à Comissão de Educação da Câmara, o ministro da Educação, Milton Ribeiro, afirmou que o Enem "tem a cara do governo, sim, (mas) no sentido de competência, honestidade e seriedade".

No mesmo dia, perante o Senado, o presidente do Inep, Danilo Dupas, afirmou que nem ele nem o ministro Ribeiro tiveram acesso às provas, declarou que estas mantêm seu crivo técnico e que "não há qualquer risco" ao Enem 2021.

Observadores veem com preocupação que as circunstâncias acabem fazendo jovens carentes a desanimarem de prestar as provas, aumentando a "elitização" do ensino superior no país.

Enem com 'a cara do governo' Bolsonaro

A declaração inicial de Jair Bolsonaro, de que as questões do Enem "começam a ter a cara do governo", despertou preocupações quanto a possíveis interferências do Poder Executivo no conteúdo da prova.

Desde 2018, ainda como presidente eleito, Bolsonaro se queixa do Enem. "Podem ter certeza e ficar tranquilos. Não vai ter questão desta forma ano que vem (2019), porque nós vamos tomar conhecimento da prova antes. Não vai ter isso daí", disse o presidente naquele ano, em referência a uma questão da prova que abordava expressões relacionadas a gays e travestis.

Na sua atual viagem ao Catar, nesta semana, o presidente disse que o Enem faz "ativismo político e comportamental".

No último domingo, o Fantástico revelou que, segundo servidores do Inep, durante a etapa final da elaboração da prova do Enem, em setembro, um policial federal teria burlado o forte esquema de segurança do local onde a prova é preparada, o que foi interpretado como uma tentativa de "intimidar servidores".

Além disso, um "dirigente designado" pelo presidente do Inep, Danilo Dupas, também teria entrado no ambiente seguro do Enem, lido as provas e exigido a exclusão de "mais de duas dezenas de questões" — questões essas que tratavam da história recente do Brasil e, portanto, poderiam desagradar Jair Bolsonaro.

Isso gerou a suspeita de censura e a preocupação com a qualidade da prova, que precisa ter um equilíbrio entre questões de diferentes graus de dificuldade para poder avaliar os alunos com eficiência e permitir que universidades usem o exame como meio de admissão em seus vestibulares.

Os denunciantes disseram ao Fantástico que, apesar de tudo isso, conseguiu-se manter a eficácia e o equilíbrio do Enem 2021, "à custa da saúde mental de vários colegas servidores".

Tanto Milton Ribeiro quanto Danilo Dupas negaram na última quarta-feira ter havido interferência na elaboração das provas.

"As provas foram montadas pela equipe técnica seguindo a metodologia que vem sendo adotada, a Teoria de Resposta ao Item (TRI). A prova possui um conjunto de questões de diversos níveis de dificuldade que são calibradas para garantir um certo nível de prova. É comum, portanto, que durante a montagem da prova tenha itens que são colocados e itens que são retirados justamente para garantir o nivelamento das provas", disse Dupas, segundo a Agência Senado.

Ribeiro disse que o policial federal que visitou o Inep em setembro o fez para vistoriar a segurança da sala reservada à produção do Enem.

Naa quinta-feira (18/11), ao mesmo tempo, a revista Piauí publicou reportagem sobre um documento interno do Inep de 2019, indicando que 66 questões foram censuradas do Enem daquele ano, por aparentes motivos ideológicos.

A segurança e o sigilo das provas do Enem são regidos por portarias do próprio Inep, determinando que apenas uma pequena parte da equipe do órgão e de uma gráfica contratada tenham acesso ao exame, dentro de ambientes restritos e sob alta segurança, para evitar o vazamento de questões. "Todos os servidores e colaboradores com acesso aos itens (da prova) assinam termos de sigilo e confidencialidade", segundo o Inep.

O ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro explica à BBC News Brasil que tradicionalmente zelava-se pela "zero intromissão" do Poder Executivo no Enem, "porque o fundamental é preservar sua pureza" – ou seja, impedir que haja interferências no conteúdo e que terceiros potencialmente se beneficiem de saber o teor das provas com antecedência.

Debandada e denúncias de assédio moral no Inep

A crise no Inep é de conhecimento público desde o início de novembro, quando mais de 30 servidores do órgão pediram exoneração coletiva, alegando "fragilidade técnica e administrativa" da atual gestão do órgão e acusando-a de assédio moral e institucional.

Sob anonimato, com medo de represálias, servidores têm se queixado de" intimidação" por parte da cúpula do Inep e de um "clima de desconfiança" instaurado no órgão.

Alexandre Retamal, dirigente da Associação de Servidores do Inep (Assinep), afirmou à BBC News Brasil que as denúncias de assédio moral envolvem todas as áreas do Inep (não apenas a do Enem) e estão sendo reunidas para serem entregues até esta sexta-feira (19/11) ao Congresso, Tribunal de Contas da União e Controladoria-Geral da União.

Retamal diz que essas denúncias não incluem a apresentada ao Fantástico.

O servidor afirma ainda que não se trata de um "movimento sindical ou ideológico" – rebatendo a fala de Milton Ribeiro e Danilo Dupas, que disseram que a exoneração em massa se devia a questões trabalhistas ou administrativas-, mas sim de uma insatisfação "generalizada" com a gestão do Inep.

Em nota de esclarecimento publicada em 8 de novembro, o Ministério da Educação afirmou que os pedidos de exoneração não afetam o Enem.

"As provas do exame já estão prontas, armazenadas em sigilo e o Inep está monitorando a situação para garantir a normalidade de sua execução", disse a nota. "Cabe esclarecer que os servidores colocaram à disposição os cargos em comissão ou funções comissionadas das quais são titulares, mas que continuam à disposição para exercer as atribuições dos cargos até o momento da publicação do ato no Diário Oficial da União (DOU)."

O problema, explica o ex-ministro Janine Ribeiro, é que o desmonte do órgão pode afetar a complexa execução do Enem, uma vez que cabe à equipe técnica do Inep "resolver problemas de última hora" – por exemplo, se as provas eventualmente não chegarem a tempo a uma determinada localidade.

Ou seja, a ausência de um corpo técnico especializado deixa a "situação mais precária", em particular nos dias de realização das provas.

"O exame requer uma logística apurada, que está agora danificada", diz. Dito isso, ele conclama os estudantes inscritos a não perderem o ânimo (veja mais abaixo).

Na noite desta quarta-feira, o Senado aprovou um pedido por uma auditoria do Tribunal de Contas da União no Inep. A autora do requerimento, senadora Leila Barros (Cidadania-DF), citou no pedido a "provável deterioração da capacidade operacional" do órgão, diante de "crises sucessivas que motivaram trocas de gestores e reduções no seu orçamento".

O Senado também criou um grupo de trabalho para apurar a crise interna do Inep.

Enem mais 'branco' e elitizado

Mesmo antes da crise atual no Inep, o Enem 2021 já era visto com preocupação por observadores da educação, pelo baixo número de participantes.

Foram incialmente apenas 3,1 milhões de estudantes inscritos no Enem 2021, o número mais baixo desde 2005. A prova já chegou a ter 8,7 milhões de participantes.

Em agosto, o ministro Milton Ribeiro defendeu que o ensino superior brasileiro "seja para poucos, no sentido de ser útil à sociedade".

Mas quem está deixando de participar desta edição do Enem em maior volume são justamente os estudantes mais pobres, explica à BBC News Brasil Rodrigo Capelato, diretor-executivo do Semesp, entidade que representa as mantenedoras do ensino superior no Brasil.

A equipe estatística do Semesp analisou, em agosto, os dados do Enem 2021 e identificou que houve uma redução de 77,4% no número de inscritos com renda familiar de até três salários mínimos. O número de pretos e pardos caiu para níveis de 2010, gerando o temor de um Enem muito "mais branco" e menos diversificado etnicamente.

"Inicialmente se falou que era a pandemia que estava afastando os jovens do Enem, mas estamos falando de 3 milhões de estudantes que deixaram de se inscrever" se levada em conta a média de 6 milhões de inscritos em anos recentes, pondera Capelato.

Para entender melhor essa ausência, é preciso lembrar que, por norma do próprio Ministério da Educação, os estudantes de baixa renda e de escolas públicas têm direito a isenção na taxa de R$ 85 de inscrição no Enem. Mas essa isenção só é dada a candidatos que não tenham faltado à edição anterior do exame (ou que tenham apresentado justificativa para a falta).

O problema é que, no Enem 2020, por conta da pandemia, muitos participantes faltaram à prova, com medo da covid-19. A abstenção do Enem 2020 foi de 55,5%, a maior da história — cerca de 3 milhões de participantes não compareceram. E, por consequência, esses 3 milhões de pessoas perderam o direito à isenção na inscrição do Enem 2021.

O Ministério da Educação inicialmente não abriu exceção por causa da pandemia, mantendo o veto à isenção desses participantes. Mas, em setembro, foi forçado a reabrir as inscrições a esse grupo, por determinação do Supremo Tribunal Federal.

Só que isso não foi suficiente: segundo dados levantados pelo Semesp, a decisão do STF levou a um incremento de 280,1 mil novos isentos inscritos no Enem — na prática, nem 10% dos 3 milhões de faltantes em 2020 que haviam perdido inicialmente o direito à isenção na taxa.

Na avaliação de Capelato, o Inep reabriu as inscrições por um período muito curto e não deu suficiente publicidade a essa reabertura, o que pode ter feito com que muitos estudantes carentes sequer tenham tido conhecimento sobre a decisão do STF ou tempo hábil para tentar a inscrição com isenção.

"Estamos perdendo essa conquista de (aumento na) participação dos grupos minoritários no Enem", avalia Capelato. "Deveria ser um processo de democratização do acesso ao ensino superior, (mas) quem mais precisa da prova para conseguir se candidatar a universidades públicas está sendo tirado (fora). É a elitização total do ensino superior."

A popularização do acesso ao ensino superior não é uma bandeira do atual governo. Em agosto, o ministro Milton Ribeiro afirmou que "a universidade deveria, na verdade, ser para poucos, nesse sentido de ser útil à sociedade" e fez uma defesa dos cursos técnicos como "vedetes" do futuro.

Nesse contexto, o ex-ministro Janine Ribeiro ressalta à reportagem que qualquer estudante que cursou o ensino médio em escolas públicas continua a ter direito, por lei, a 50% das vagas em universidades públicas oferecidas pelo Sistema de Seleção Unificada federal, o Sisu.

"Essas denúncias recentes sobre o Inep têm sido importantes, mas infelizmente contribuem para que alunos do ensino público desistam do Enem, desanimem da prova", avalia o ex-ministro. "Este pode ser o pior Enem da história, mas, apesar dos inúmeros erros (do governo), o Sisu ainda garante metade das vagas para escolas públicas. Então, não desistam de prestar a prova."

Inep quis driblar regra e dar acesso ao Enem a professores fora do edital

A cúpula do Ministério da Educação tentou incluir profissionais na montagem do Enem deste ano que não haviam sido aprovados em processo seletivo para colaboradores da prova. A lista com 22 nomes, obtida pelo Estadão, incluía defensores da gestão Jair Bolsonaro, uma professora de Biologia criacionista e quatro docentes ligados à Universidade Mackenzie, de onde veio o ministro Milton Ribeiro.

Segundo o Estadão apurou, a lista teria sido feita pelo presidente do Inep, Danilo Dupas, com a anuência do MEC. Essas pessoas receberiam a permissão para entrar na sala segura do Enem, um ambiente com detectores de metal e senhas nas portas, e escolher as questões da prova a partir do banco de itens. Poderiam também acompanhar a impressão da prova na gráfica.

A relação de nomes foi descoberta por servidores do Inep em abril e levou a um pedido de demissão do coordenador da área, que discordava da medida. A lista circulou entre funcionários e muitos manifestaram seu descontentamento. O conflito fez Dupas recuar e retirar os nomes da relação.

Além dos servidores, a montagem da prova tem sempre colaboradores externos – professores escolhidos por meio de um edital de seleção que leva em conta o currículo e a formação acadêmica. Este grupo não passou por essa seleção.

Um dos requisitos obrigatórios que mais contam pontos, segundo o edital de 2020, é a experiência em “elaboração e/ou revisão de itens do ensino médio”, ou seja, as questões da prova. Depois de selecionados, eles ainda participam de 40 horas de capacitação sobre “as normas e os procedimentos técnicos exigidos para desenvolver o trabalho”, de acordo com texto do Inep sobre os aprovados deste ano.

A lista que chegou a integrantes da diretoria da Avaliação da Educação Básica do Inep tinha 15 nomes que incluíam professores já aprovados e servidores, além dos 22 professores que não passaram pelo processo de seleção. Todos faziam parte de um grupo que seria vacinado prioritariamente pelo governo, já que sairiam do trabalho remoto para atuar juntos em salas fechadas e cercadas de segurança.

O pedido de vacinação para nomes estranhos chamou a atenção dos servidores. Segundo relatos, muito do descontentamento que levou aos 37 pedidos de exoneração da semana passada começou nesse episódio. Eles acusam Dupas de assédio moral e desconsideração de critérios técnicos. Procurado, o Inep não se manifestou até as 20h50 de quinta-feira.

O Enem é realizado por cerca de 3,1 milhões de candidatos ao ingresso no ensino superior. É o principal meio de acesso às universidades do Brasil. As provas são realizadas anualmente.

Docentes pela Liberdade

Dois dos integrantes da lista são membros do grupo Docentes pela Liberdade (DPL), que se intitula “um grupo apartidário” cujo objetivo é “romper com a hegemonia da esquerda e combater a perseguição ideológica”. A primeira página do site tem uma foto de Bolsonaro segurando uma camiseta do DPL. O perfil do Twitter do grupo ainda repassou mensagens que criticam o Supremo Tribunal Federal (STF) e do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub pedindo a prisão do youtuber Felipe Neto, crítico do governo.

Aline Loretto Garcia, mulher do diretor do DPL Marcelo Hermes Lima, está na lista do Inep como especialista de História. Em uma postagem aparece ao lado do influenciador bolsonarista Allan dos Santos, investigado no inquérito das milícias digitais no STF. Procurada, ela afirmou que “nunca elaborou” a prova do Enem nem recebeu convocação para participar de atividades. O secretário executivo do DPL, Pedro Lucena, está na relação como professor de Geografia. “Eu não desempenhei tarefa nenhuma”, respondeu ao ser questionado.

A professora do Mackenzie Vera Lucia Azevedo, que aparece como especialista em Matemática, disse ao Estadão que foi convidada, por um telefonema, para uma reunião no Inep em Brasília, mas rejeitou. “Não participei, não cheguei a ir em nada. Realmente, alguém colocou meu nome, mas recusei porque tinha compromissos aqui (em São Paulo)”, disse ela, que destacou não ter participado de edital relacionado ao Enem. 

O professor da Universidade Federal do Tocantins Antonio Egno do Carmo Gomes, na lista na área de Literatura, é do Núcleo de Estudos Bíblia e Literatura, financiado pelo Fundo Mackpesquisa. O presidente do Inep foi, de 2014 a 2020, gerente administrativo do MackPesquisa, do Mackenzie.

“Com todo respeito, não importa o que você amigo evolucionista venha me dizer e nem qual argumento você venha me trazer, eu não vou mudar meu posicionamento, e isso não faz de mim menos bióloga que você. Sou criacionista e isto não está em discussão”, escreveu nas redes sociais Mayara Cordeiro, na lista como especialista em Biologia. Ela dá aulas numa escola religiosa em Blumenau. Procurada na quinta-feira, ela confirmou o contato do MEC, mas disse que não “está fazendo parte da equipe”.

Outra da área de Biologia na lista é Joselena Mendonça Ferreira, professora substituta na Universidade Federal Rural do Semi-Árido, que nas redes sociais já questionou dados sobre mortes de covid. Em Artes, Thérèse Hofmann Gatti Rodrigues da Costa, da Universidade de Brasília, tem pesquisa sobre “melhoria na qualidade da educação básica” no programa das escolas cívico-militares, criado por Bolsonaro em 2019. O Estadão tentou contato com ela, Gomes e Joselena, mas não obteve resposta.

Ex-presidente do Inep, Chico Soares explica que as equipes que atuam nas questões do teste devem passar por processo “formal e transparente” de seleção. “O Inep não faz tudo sozinho, sempre faz em parcerias. Mas é a instituição pública, só pode fazer quando apoiado por formas públicas.” Para ele, convocatórias fora de editais ferem a transparência, “um dos princípios básicos da gestão.”

Bagunça do Enem é ‘a cara do governo’

Depois que o presidente Jair Bolsonaro voltou a criticar o Enem, na viagem ao Oriente Médio, afirmando desta vez que o teste não mede conhecimento e é utilizado apenas para “ativismo político e comportamental”, as provas marcadas para os próximos dois domingos serão realizadas sob a sombra das lambanças do governo em área tão sensível, que afeta milhões de estudantes e suas famílias. 

Diante das suspeitas de que os bolsonaristas tiveram alguma influência na elaboração do exame, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) e a Educafro entraram na Justiça para demandar o imediato afastamento de Danilo Dupas da presidência do Inep, que é o órgão responsável pela aplicação do Enem. A justificativa é que ele não tem mais condições morais e administrativas para continuar no cargo. Além disso, a Defensoria Pública da União (DPU) impetrou uma ação civil pública questionando a competência de Dupas para evitar que as provas sejam afetadas por vazamentos, fraudes e patrulhamento ideológico promovido pelo Palácio do Planalto. Por fim, a educadora Maria Inês Fini, que foi a criadora do Enem, em 1998, endossou a denúncia feita pelo corpo técnico do Inep de que teriam sido excluídas, sem qualquer justificativa técnica, pelo menos 20 questões das provas. 

Todas essas ocorrências obviamente deixam inseguros os 3,1 milhões de alunos que prestarão as provas, maculando a imagem do Enem, que é a principal porta de entrada nas universidades públicas. O presidente Bolsonaro disse, orgulhoso, que o Enem agora tem a “cara do governo”, e infelizmente tem mesmo: tudo o que o bolsonarismo toca é desvirtuado, e mesmo uma instituição como esse respeitado exame ganha a aparência de bagunça.

Com indicações desastrosas para os cargos mais importantes da Educação, determinadas exclusivamente por critérios ideológicos, o governo Bolsonaro encontra-se hoje paralisado por causa de um confronto generalizado entre o Ministério da Educação, autarquias e agências de fomento à pesquisa. 

Sem experiência em administração pública, o titular da Educação, um obscuro pastor presbiteriano, chegou a afirmar que “a Universidade deveria ser para poucos”. Também disse que é importante “evitar a inclusão, nas avaliações escolares, de questões que sejam peculiares a determinados guetos ideológicos”, uma vez que elas “dão primazia para um grupo já acostumado a determinada linguagem em detrimento da grande maioria do povo”. E ainda tomou uma série de medidas insensatas, que desorganizam programas educacionais já consolidados, como a exclusão de questões de gênero nos livros didáticos distribuídos aos estudantes, e se omitiu na coordenação nacional do retorno às aulas presenciais nas escolas públicas de ensino básico.

Mais grave ainda é a tentativa do MEC de esvaziar o Inep, o que pode acabar comprometendo a realização do próximo Censo da Educação Básica, com base no qual são calculadas as verbas repassadas ao ensino público para distribuir a merenda escolar e pagar os salários de professores. Deflagrado originariamente por razões ideológicas, o problema ganhou corpo quando, sem nenhum propósito público, o ministro Milton Ribeiro passou a esvaziar a autonomia desse órgão, que já está no seu quinto presidente em quase três anos. Entre outras atribuições, o Inep avalia o nível de aprendizagem dos alunos e a eficiência dos programas de ensino adotados pelo Executivo. O problema é que Bolsonaro e Ribeiro insistem em tentar subordinar os avaliadores a quem formula e implementa políticas educacionais, o que é uma aberração em matéria de administração pública.

Em momento algum o presidente e o ministro da Educação demonstraram estar preocupados com os estudantes que farão o Enem. Prejudicados por essa sucessão de confusões às vésperas de uma prova que pode decidir seu futuro, esses jovens estão vendo seu direito à aprendizagem ser negado por um governo que vem arruinando o patrimônio educacional que o Brasil, bem ou mal, conseguiu construir nas últimas décadas.

Bolsonaro leva a bagunça ao Enem com método

O brasileiro vive espremido entre a escassez e o excesso. Faltam dinheiro, emprego, chuva, luz e gasolina barata. Sobram dólar caro, juros ascendentes e inflação. Excetuando-se a falta de chuva, Bolsonaro é parcialmente responsável por tudo isso. Em vez de apresentar soluções para os problemas reais que o cercam, o presidente fabrica uma encrenca seminova. Às vésperas do Enem, Bolsonaro dedica-se a avacalhar o exame. Há método na bagunça.

Incapaz de colocar ordem num governo caótico, o capitão mobiliza seus devotos na internet para cultuá-lo como solução para problemas que o Brasil não sabia que tinha antes de sua chegada ao Planalto. O Enem consolidou-se como instrumento confiável de aferição dos conhecimentos de milhões de candidatos a vagas em universidades públicas no Brasil e no exterior. Sob Bolsonaro, o Planalto e o MEC passaram a implicar com a prova, acenando com a censura de perguntas.

A Folha informa que, no primeiro semestre, Bolsonaro determinou que questões sobre 1964 deveriam tratar o golpe militar como revolução. Em março, quando o golpe fez aniversário de 57 anos, o ministro da Defesa, general Braga Netto, chamou-o numa nota de "movimento de 1964". São eufemismos oficiais para a deposição do presidente João Goulart.

Nasci em 1961. Não passava de uma criança quando os militares tomaram o poder. Já era um adulto de 23 anos quando o Congresso, numa eleição indireta, escolheu Tancredo Neves para colocar fim a uma ditadura falida que durou mais de duas décadas. Impossível suavizar a história com eufemismos de um governo mequetrefe comandado por um político que repete no Planalto conceitos que recitava como deputado do baixo clero.

O que o país precisa saber é se o diversionismo de Bolsonaro desvirtuou a prova do Enem. Alega-se que não. Logo saberemos, pois a primeira rodada do exame ocorre no domingo. Mas o Inep, órgão que cuida do Enem, já tomou providências para prolongar a atmosfera de suspeição. Tornou secreto o processo interno sobre a entrada de um policial federal na sala de segurança onde os exames são elaborados. A balbúrdia, não há dúvida, tem método.


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