18/04/2024 - Edição 540

Brasil

O silêncio sobre o desmatamento

Publicado em 19/11/2021 12:00 -

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A divulgação do índice anual de desmatamento, calculado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) consolida o sucesso das duas prioridades de Bolsonaro para o setor do Meio Ambiente: a devastação consentida da Amazônia e a institucionalização da mentira como política ambiental. Entre agosto de 2020 e julho deste ano, foi devastada na região amazônica uma área equivalente a quase nove vezes a cidade de São Paulo: 13.235 quilômetros quadrados. É a maior área desmatada em 15 anos. Não se via coisa parecida desde 2006.

O governo soube da má notícia em 27 de outubro, quatro dias antes do início da COP26. Mas escondeu deliberadamente os números. Manuseando dados provisórios, autoridades brasileiras mentiram na cúpula climática da ONU, exibindo para o mundo um Brasil paralelo, zeloso com o Meio Ambiente e com índice declinante de desmatamento. Compreende-se melhor o porquê de Bolsonaro ter fugido da cúpula do clima, na Escócia. Na última segunda-feira, de passagem por Dubai, o presidente disse que a floresta amazônica está "exatamente igual quando [o Brasil] foi descoberto, no ano de 1500."

Segundo ministro do Meio Ambiente da Era Bolsonaro, Joaquim Leite disse, sem corar a face, que só agora tomou conhecimento dos números que estavam disponíveis há mais de 20 dias. Afirmou que a resposta do governo aos criminosos ambientais terá de ser mais "contundente". Do seu lado, o ministro da Justiça, Anderson Torres, anunciou que "o Estado brasileiro vai subir com força total para a Amazônia." O mundo observa o lero-lero oficial com olhos de São Tomé às avessas —quer ver para não crer.

O governo Bolsonaro existe há 34 meses. Durante quase metade desse período —16 meses— as Forças Armadas foram mobilizadas para combater o desmatamento. Sob o comando do vice-presidente Hamilton Mourão, a militarização ambiental custou ao contribuinte R$ 550 milhões. E o desmatamento não parou de crescer.

Nesse contexto, a resposta "contundente" que o governo dará quando estiver presente na Amazônia com "força total" é apenas uma versão seminova da mesma conversa fiada. Sob Bolsonaro, o único território livre de devastação é a cara de pau de um presidente que consolida no Brasil o regime da mentirocracia.

Documento indica que governo sabia da taxa do desmate desde antes da COP

Divulgada na quinta-feira (18), a taxa anual do desmatamento na Amazônia Legal é um desastre para o meio ambiente e para a imagem do governo de Jair Bolsonaro, pois indicou um aumento de 22% em relação à taxa do período anterior (2019-2020), que já representava um acréscimo de 9,5% em relação ao período 2018-2019.

A data da nota oficial produzida pelo Inpe sobre o assunto revela que o governo já sabia do número desde antes do início da COP26, a conferência dos líderes sobre a emergência climática, realizada neste ano em Glasgow, na Escócia, de 31 de outubro a 12 de novembro.

O documento do Inpe é datado de 27 de outubro último, portanto quatro dias antes do início da reunião (veja abaixo o fac-símile da parte final do documento; a íntegra pode ser vista aqui). Normalmente o governo brasileiro divulga o dado do desmatamento antes do início das COPs, num gesto de transparência. O documento técnico produzido pelo Inpe é enviado tradicionalmente ao MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações), hoje ocupado por um militar da reserva da Aeronáutica, Marcos Pontes. O Inpe está vinculado à pasta.

O sindicato dos servidores do Inpe, o SindCT (Sindicato Nacional dos Servidores Públicos Federais na Área de Ciência e Tecnologia do Setor Aeroespacial), denunciou, em carta aberta, que era "pura mentira" que o relatório anual do desmatamento ainda não tivesse sido aprontado pelo Inpe.

Os servidores revelaram ainda que o documento com a taxa havia sido encaminhado ao diretor do Inpe, que o repassou ao MCTI.

João Paulo Capobianco, que foi coordenador do Plano de Prevenção e Controle ao Desmatamento da Amazônia (2003-2008) e é membro da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, disse por nota nesta quinta-feira (18) que a divulgação "é um duplo escândalo".

"O primeiro é o fato de que a nota divulgada pelo Inpe é do dia 27 de outubro, ou seja, anterior à Conferência do Clima. Trata-se da primeira vez em que o Prodes [Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite] não foi divulgado antes ou durante a COP. O governo federal foi a Glasgow já ciente da taxa de desmatamento, mas, ainda assim, não a informou para as Nações Unidas. Preferiu falar sobre outra métrica, o Deter, que apontava uma leve redução no desmate."

O segundo "fator chocante", segundo Capobianco, "é o aumento em si do desmatamento, que ocorreu apesar de anos de investimento maciço na presença das Forças Armadas na Amazônia".

"Só comprova aquilo que era sabido por todos que acompanham a pauta ambiental: desmate se combate com planejamento e intervenções em áreas definidas de forma estratégica e não pelo mero deslocamento de milhares de soldados, sem planejamento interno, para uma área de dimensões continentais. Se não houver uma mudança radical na abordagem, este avanço do desmatamento pode se tornar exponencial."

A coluna procurou na noite desta quinta-feira as assessorias do MCTI e do Inpe para que os órgãos expliquem o motivo pelo qual a taxa de desmatamento não foi divulgada a partir de 27 de outubro. Caso haja resposta, o texto será atualizado.

Governo silenciou

Ex-diretor do Inpe, o professor e membro da Academia Brasileira de Ciências Ricardo Galvão foi demitido do cargo em meados de 2019 após reagir a declarações do presidente Jair Bolsonaro, que o acusou falsamente de divulgar "dados mentirosos" sobre o desmatamento na Amazônia (os dados depois foram amplamente confirmados, tanto pelo governo brasileiro quanto por ONGs e cientistas da Nasa).

No último dia 17, Galvão disse que o instituto "certamente concluiu o relatório preliminar" sobre o desmatamento anual da Amazônia, que cobre o período de 1º de agosto de 2020 a 31 de julho de 2021, e que o documento "já deve ter sido mandado ao ministro" de Ciência e Tecnologia, o militar Marcos Pontes.

"Se o governo segurar esses dados, vai se colocar em muitos maus lençóis. Vai ser absolutamente ridículo. Outras instituições que trabalham com imagens de satélite, dentro e fora do Brasil, como o Imazon, por exemplo, podem consultar as mesmas bases de dados do Inpe e chegar ao número final. Esconder atingirá muito a imagem do governo [não do Inpe]. O trabalho do Inpe sempre foi excepcional", disse Galvão.

A apresentação do número foi cobrada por ambientalistas e especialistas em desmatamento porque o Brasil normalmente divulga o dado antes de cada COP, a conferência de lideranças mundiais sobre a emergência climática. Contudo, a última COP acabou sem que os números do Brasil tivessem vindo a público. Apenas dados sobre alertas de desmatamento no mês de outubro, que são uma fotografia da devastação, foram divulgados durante a COP. Na ocasião, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, disse que desconhecia esses números.

Embora veículos de comunicação e organizações não governamentais acompanhem e divulguem regularmente os alertas de desmatamento medidos pelo sistema Deter – uma importante ferramenta também do Inpe para orientar ações de repressão a crimes ambientais, considerada um termômetro da situação -, é outro o dado consolidado anual sobre o desmatamento na Amazônia Legal. Chama-se Prodes (Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite), sob comando do Inpe. Era esse o dado aguardado pelos cientistas e ambientalistas.

O Prodes monitora o desmatamento na Amazônia Legal desde 1988. O número Prodes é calculado anualmente a partir dos desmatamentos ocorridos no "ano fiscal" que vai de agosto a julho. De outubro a novembro, quase sempre antes das reuniões da COP, o relatório preliminar é divulgado como a manifestação oficial do governo federal. Suas conclusões dão base aos debates públicos e científicos dentro e fora do país, inclusive para avaliação das políticas públicas brasileiras no enfrentamento do desmatamento.

No ano passado, por exemplo, soube-se que o desmatamento atingiu 11.088 km² de corte raso na Amazônia no período de 1º de agosto de 2019 a 31 de julho de 2020. O número representou um aumento de 9,5% em relação à taxa de desmatamento apurada pelo Prodes no período 2018-2019, que foi de 10.129 km² para os nove estados da Amazônia Legal.

O número no ano passado foi divulgado em 30 de novembro. Porém, no ano passado não ocorreu a COP, adiada em razão da pandemia do coronavírus. O número Prodes do período de 2018-2019 foi divulgado pelo governo em 18 de novembro de 2019. A COP daquele ano ocorreu em Madri, na Espanha, no início de dezembro. Portanto o número Prodes já era conhecido antes do início da conferência, situação muito diferente da atual.

O relatório que costuma ser divulgado em novembro é chamado de preliminar porque ainda passa a ser checado nos cinco meses seguintes. Em março de cada ano normalmente sai o relatório final e consolidado. A diferença entre os dois relatórios, contudo, é considerada mínima. O número de 11.088 km² apresentado no relatório em novembro do ano passado, por exemplo, foi corrigido depois para 10.851 km², uma diferença de apenas 2,2%.


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