19/04/2024 - Edição 540

Comportamento

‘Languishing’: o que é o transtorno de saúde mental causado pela pandemia

Publicado em 16/11/2021 12:00 -

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Sabe aquela preguiça de levantar de manhã, quando uma espiadinha no Instagram se transforma em horas e horas rolando a tela? Ou a vontade de assistir pela enésima vez à comédia romântica que você conhece de cor, só para não ter que escolher um novo filme? Tem tido dificuldade para se concentrar? Começa alguma atividade e, quando dá por si, esquece o que estava fazendo? Você pode estar languishing.

O termo em inglês significa “definhamento”, embora alguns especialistas brasileiros prefiram “à deriva” ou “apagamento”. Ficou popular a partir de abril, quando o psicólogo e escritor norte-americano Adam Grant resolveu usá-lo para descrever como se sentia: em vez de pular da cama às 6h como de costume, passou a preferir ficar deitado por mais uma hora, jogando Words with Friends no celular. Mesmo com a perspectiva da vacinação, não se animava com o novo ano. Não era burnout nem ansiedade, pois ele ainda tinha energia. Também não era depressão, porque se mantinha esperançoso. Era languishing.

A conclusão veio em um texto publicado no início de maio no jornal The New York Times e que viralizou. Cunhada pelo sociólogo e psicólogo Corey Keyes no início dos anos 2000, a palavra é perfeita para descrever o estado esquisito em que Grant estava. Languishing, descreveu o autor, é essa sensação de estagnação e vazio. É como se você estivesse levando os dias sem entusiasmo, olhando para a própria vida através de um vidro embaçado. “E essa pode ser a emoção dominante de 2021”, concluiu.

Como descobriu posteriormente, muitos de seus amigos compartilhavam do sentimento, assim como os leitores do jornal novaiorquino, que desde então não param de comentar sobre o quanto se identificaram com a descrição. “Muito útil. Não estou deprimido. Às vezes gostaria de estar, porque conheço isso [a depressão] bem e sei o que fazer. Esse tal de ‘languishing’ é um território desconhecido para mim”, comentou um leitor no início de junho. “Não estou ansioso, não estou alegre. Só ‘blah’.”

Desde o início da pandemia, especialistas esperavam um aumento nos transtornos de humor. Um ano depois, veio a confirmação: quase metade da população mundial considera que a saúde mental piorou no último ano. Segundo dados levantados pelo Ipsos no estudo One Year of Covid-19 (Um Ano de Covid-19), feito em 30 países e divulgado em abril, 53% dos brasileiros observaram mudanças negativas em seu emocional. O país não só ficou em quinto lugar entre os que mais sentiram as consequências, como foi o sétimo onde a população mais notou um agravo no mal-estar desde o começo de 2021.

E o índice de infelicidade, que é o resultado da soma das taxas de inflação e desemprego, atingiu no primeiro trimestre o pior patamar em cinco anos, conforme aponta um levantamento do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre-FGV).

Mas o languishing não entra em nenhuma dessas contas, e justamente por isso merece atenção. “A psicologia seguiu a tradição biomédica que presume que quem não tem uma psicopatologia é saudável”, observa o psicólogo Wagner Machado, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). “Mas existe um grupo que não se encaixa no transtorno mental nem se sente feliz. Esse é um perfi l preocupante e invisível, porque as pesquisas em geral são voltadas para a psicopatologia. Só que quem não fecha critérios, mas não consegue se realizar, também sofre.”

Embora estudos que meçam o chamado “languishing puro” não sejam comuns (até porque as pessoas podem apresentar estados mistos de humor), em 2005, o sociólogo Keyes estimou que cerca de 10% da população dos Estados Unidos se encaixava na descrição do problema. E dentre os quase 30% dos adultos que tinham algum dos quatro principais distúrbios de saúde mental — episódio depressivo maior, transtorno de ansiedade generalizado, pânico e dependência de álcool —, 7% também se sentiam “à deriva”. Keyes chegou a esses números extrapolando dados da pesquisa longitudinal Midlife in the United States (MIDUS), que desde 1995 acompanha pessoas de 25 a 74 anos para investigar a influência a longo prazo de fatores sociais e psicológicos na saúde como um todo.

A crise sanitária global pode estar agravando esse quadro. O professor da PUCRS estima que o número de pessoas com estados mistos de languishing e algum outro transtorno esteja entre 15% e 20%. “A pandemia está criando novas formas de sofrimento”, concorda o psicólogo Alexandre Coimbra, autor de Cartas de um terapeuta para seus momentos de crise, livro publicado em julho de 2020 pela editora Paidós. “Não poder planejar o futuro é muito perturbador, isso mexe com nossas ilusões de controle. A necessidade de se adaptar o tempo inteiro é exaustiva, coloca as pessoas em alerta contínuo, e a sensação de definhamento é herdeira dessa exaustão.”

Na visão de Coimbra, o tema saúde mental entrou definitivamente na preocupação das pessoas, com até mesmo empresas prestando mais atenção ao bem-estar psíquico dos funcionários. E temos motivos de sobra para nos preocupar com o languishing: a condição é tão ruim quanto um episódio depressivo maior, conforme observou Keyes em suas pesquisas. Os chamados languishers têm um risco 23 vezes maior de sofrer algum transtorno mental do que quem está psicologicamente saudável. Isso é especialmente preocupante levando em conta que a depressão é hoje uma das principais causas de incapacidade para o trabalho, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) — no Brasil, inclusive, é a terceira. Pessoas com problemas emocionais graves também podem morrer até duas décadas mais cedo por condições físicas que poderiam ter sido evitadas.

Psicologia positiva

Mas muito antes de a saúde mental entrar no radar da OMS, ou de um vírus se tornar uma ameaça global, um novo paradigma teórico começou a surgir entre pesquisadores da área. A psicologia positiva, movimento do qual Keyes participa e cujo principal expoente é o psicólogo norte-americano Martin Seligman, propõe uma mudança no foco de análise psicológica. “Curar ou erradicar os transtornos mentais não vai garantir uma população mentalmente saudável”, escreveu Keyes em um de seus artigos sobre languishing. “Porque a saúde mental pertence a um contínuo, e a ausência de saúde mental — uma condição descrita como ‘languishing’ — é tão ruim quanto um episódio depressivo; a estratégia nacional de focar somente nos transtornos pode, na melhor hipótese, reduzi-los, mas não promover saúde mental.”

Para entender a psicologia positiva, é preciso voltar um pouco no tempo e conhecer o desenvolvimento dessa área de estudos. “Enquanto ciência, a psicologia ganhou status se aproximando dos modelos da física e da matemática, em laboratórios de psicologia experimental”, explica a psicóloga Carolina Lisboa, editora associada da revista científica chilena Psykhe. Nesse processo, houve um rompimento com a filosofia, e o olhar se voltou para os estados psicopatológicos, muito inspirado pelo modelo biomédico. “Na década de 1970, houve um movimento importante para propor uma mudança de olhar. Não quer dizer que a psicologia positiva não acredite nas psicopatologias ou ache que não existe ansiedade e estresse. Quer dizer que propõe que a intervenção seja diferente”, resume Lisboa.

Mais do que tratar um paciente deprimido com técnicas focadas ou medicamentos, objetivando somente a remissão dos sintomas, a ideia aqui é reforçar as forças e virtudes para estimular reações diferentes às adversidades. No livro Como fazer com que coisas boas aconteçam, lançado em maio pela Editora Planeta, a psiquiatra espanhola Marian Rojas Estapé resgata o conceito para explicar que existem duas formas de responder aos eventos: com emoções positivas ou negativas. Dependendo da que dominar, a pessoa se sentirá de uma ou de outra maneira.

Conhece-te a ti mesmo

Cada emoção ativa a produção dos chamados neuropeptídeos, moléculas capazes de alterar a frequência e a bioquímica de nossas células. Na década de 1980, a descoberta da neurocientista Candace Pert, que foi diretora do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, representou um marco nos estudos sobre a conexão entre mente e corpo. Pert mostrou que as doenças estão associadas às emoções: quando um sentimento se expressa, o organismo responde.

Aprender a identificá-las e expressá-las, em vez de reprimi-las, é o primeiro passo para modular o tipo de resposta. Só que isso é mais difícil para quem se encontra no estado de "definhamento" mental. “Quem está languishing não tem a dimensão positiva da saúde mental, que é como um amortecedor. Apesar de sofrer com o desafio, quem está bem tem recursos para lidar com ele”, analisa Machado, que coordena na PUCRS Online o maior curso de formação em psicologia positiva do país.

Portanto, voltar às raízes filosóficas da psicologia — tal qual propõe o aforismo grego “Conhece-te a ti mesmo”, inscrito até hoje no Templo de Apolo — se faz necessário: o autoconhecimento é chave para superar o languishing. “A ideia de que o ser humano tem que se conhecer e descobrir a sua essência vem lá da Grécia Antiga”, explica o professor. “No languishing, a pessoa não apresenta nem a reação negativa nem conhece o que é estar mal, porque não sabe o que é estar bem. Se a pessoa sabe que está mal, é ótimo, é fácil engajar em um tratamento. Mas isso requer um nível de insight.”

É como disse o Gato de Cheshire no clássico Alice no País das Maravilhas: se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve. Uma maior profundidade no conhecimento das próprias emoções é importante para conseguir administrá-las e escolher o caminho a seguir. “Dê um nome ao que sente. A raiva e o rancor ou a alegria e a emoção não são a mesma coisa”, escreve Estapé. “Ao fazê-lo, seja realista, não maximize emoções prejudiciais. Essa análise tem um impacto direto em seu corpo.”

Mas, se muitos adultos não têm o autoconhecimento necessário para atravessar uma pandemia, é difícil exigi-lo de crianças e adolescentes. Na visão da editora da Psykhe, esse grupo está especialmente vulnerável ao languishing. “Os adolescentes estão formando o ‘eu’ deles e, para isso, precisam de pares, de ambientes para trocar e se ver nos olhos dos outros”, explica Carolina Lisboa. “Eles estão de parabéns pela forma como usaram a tecnologia para isso neste período, mas alguns não têm celular ou simplesmente não querem usar chats e jogos.”

Ficar “à deriva” em uma fase tão crucial da vida pode ter consequências graves no futuro, mas que já começam a se refletir, por exemplo, na evasão escolar. A segunda edição da pesquisa Juventudes e a Pandemia do Coronavírus (Covid-19), divulgada no dia 11 de junho, trouxe o alerta: dos mais de 68 mil participantes de 15 a 29 anos, 43% disseram ter pensado em parar de estudar no último ano. No primeiro ano da pandemia, a porcentagem era bem menor, 28%, conforme apontou a primeira edição do estudo, em maio de 2020.

O curioso caso brasileiro

O Brasil vive uma situação peculiar na pandemia — e um paradoxo de languishing. Sem nunca ter feito um lockdown amplo ou decretado medidas nacionais de restrição para conter a disseminação do vírus, a continuação da vida como se nada estivesse acontecendo poderia parecer um esquisito antídoto para o sentimento de definhamento. Afinal, se nada mudou, não há angústias e incertezas com relação ao futuro.

Mas, na análise de Machado, o languishing pode ser só mais um ingrediente no caldo do comportamento de muitos brasileiros, seja ao negar a gravidade da Covid-19, seja ao simplesmente se recusar a adotar medidas de prevenção. É como se, antes mesmo da pandemia, já tivéssemos uma população com um grau de sofrimento psíquico que a tornou indiferente à crise. “A pessoa que tem languishing perde o mecanismo de conexão social. Como esperar que alguém com tamanha apatia acate medidas para proteger o outro?”, questiona o docente da PUCRS. “Ou ela até entende a situação, mas pensa ‘azar, isso me incomoda e não estou nem aí para as consequências’.”

Por outro lado, à medida que o país supera a marca de 500 mil mortos como um dos que pior lidaram com a crise, quem antes estava bem começa a definhar pela falta de perspectiva. “Quando a pandemia começou, ficamos em um estado de suspensão, de vida entre parênteses. Mas o daqui a pouco nunca mais se pronunciou, o futuro não chegou e não sabemos quando vai chegar”, diz Coimbra, que em agosto lança um novo livro relacionado ao assunto, Exaustão no topo da montanha. O desafio, explica o autor, é buscar maneiras para transformar a própria vida. “Quando entramos em um estado de importância com o macro, temos que trazer a ação para a vida privada. Mas quando sinto que a vida precisa de movimento e não consigo fazê-lo sozinho, preciso buscar ajuda”, destaca.

O início desse movimento pode ser impulsionado por outras pessoas, até por quem talvez não esteja totalmente bem. Coletivizar o sofrimento, deixando que outros saibam como você se sente, seria uma das maneiras de lidar com a crise. “Não vejo saída para nenhum sofrimento da pandemia que não seja coletiva”, atesta Coimbra. “As pessoas precisam construir uma rede de indivíduos com quem possam conversar sobre o que estão vivendo para não minimizar, não negar e não deslegitimar o que estão sentindo.”

Recentemente, o psicólogo fez um experimento no Instagram: criou uma caixa com a pergunta “como você está se sentindo na pandemia?” aos seus quase 80 mil seguidores. As aproximadamente 400 respostas o surpreenderam — não tanto pelo teor das mensagens, e sim por nunca ter tido tamanha interação da comunidade. “Quando converso com mais gente, vejo que tem mais gente vivendo isso. Saúde mental é liberdade para falar sobre sofrimento, porque quando falo, me aproprio dele”, considera.

Para o autor, é importante perguntar a amigos e familiares como eles estão se sentindo, dizer a eles como você se sente e trocar experiências sobre como lidar com o sofrimento. Às vezes, a simples leitura de um texto em uma revista ou site pode ser o suficiente para iniciar a conversa. Não custa tentar, então a gente começa: como você está se sentindo?


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