26/04/2024 - Edição 540

Especial

Mentira tem perna curta

Publicado em 12/11/2021 12:00 -

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Novos números do desmatamento publicados nesta sexta-feira desmentem a estratégia do governo brasileiro na Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas de vender uma ideia ao mundo de que está comprometido com uma política ambiental sólida.

Nesta sexta-feira (12), enquanto um pavilhão do governo brasileiro em Glasgow tentava construir uma imagem verde do país, um informe do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais revelava o pior mês de outubro desde que o banco de dados foi criado.

A área de alertas detectada pelo Deter no mês de outubro, portanto, foi de 877 km², uma alta de 5% em relação a 2020 e recorde da série histórica de cinco anos.

"O dado do Deter é um lembrete de que o Brasil que circula pelos corredores e pelas salas da COP26, em Glasgow, é o mesmo onde grileiros, madeireiros ilegais e garimpeiros têm licença do governo para destruir a floresta", diz o Observatório do Clima.

"O governo ainda não divulgou o Prodes neste ano — o dado oficial do desmatamento, também medido pelo Inpe, de agosto de um ano a julho do ano seguinte, costuma estar disponível no começo de novembro", destacou.

"Na conferência do clima, o regime de Jair Bolsonaro vem tentando apresentar uma imagem de país preocupado com a crise climática: sob pressão internacional, assinou acordos multilaterais contra o desmatamento e as emissões de metano, vem deixando seus diplomatas trabalharem de forma construtiva na negociação e montou um esquema gigantesco de propaganda com ajuda dos lobbies do agro e da indústria", afirmam.

"Em casa, porém, é que reside o tal "Brasil real" de que tanto fala o ministro Joaquim Leite (Meio Ambiente): um país que desmontou as políticas de combate ao desmatamento, maior causa de emissões de gases de efeito estufa, que gastou centenas de milhões de reais em operações militares inócuas e que tem ao menos cinco projetos de lei no Congresso que anistiam o roubo de terras, acabam com o licenciamento ambiental e ameaçam as terras indígenas, barreiras mais eficazes contra a devastação", diz a entidade

"As emissões acontecem no chão da floresta, não nas plenárias de Glasgow", afirma Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima. "E o chão da floresta está nos dizendo que este governo não tem a menor intenção de cumprir os compromissos que assinou na COP26."

Ane Alencar, diretora de Ciência do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, cobra do governo transparência sobre o destino dos recursos que estão sendo usados no Exército para as operações na região. "Por enquanto, esses investimentos não estão surtindo efeito", afirmou. "Estamos na mesma tendência de desmatamento do ano passado. Não houve queda", disse.

Constrangimento

Os números criam um constrangimento ao ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, que passou dias insistindo que o "futuro verde" do Brasil já era uma realidade. Em seus discursos, ele omitiu a alta no desmatamento e, ao ser questionado pela imprensa, insistia em dar respostas evasivas.

Um dos principais compromissos assinados por mais de cem países em Glasgow foi o de lutar contra o desmatamento das florestas até 2030. O Brasil aderiu à iniciativa, criando uma meta de acabar com o fenômeno ilegal até 2028. O tema era um dos maiores pontos de constrangimento internacional para o país e a adesão serviu, acima de tudo, para desmobilizar chantagens nas negociações.

Mas, sem credibilidade, o governo brasileiro não conseguiu convencer nem ambientalistas e nem cientistas de que o compromisso será cumprido. Além de não ser legalmente vinculante, o pacto não obriga o governo a agir imediatamente. Na prática, Bolsonaro usou a iniciativa para se blindar e, ao mesmo tempo, não ter de tomar medidas concretas.

Tanto o vice-presidente da Comissão Europeia, Franz Timmermans, como o enviado americano John Kerry fizeram declarações no mesmo sentido: sem medidas concretas, não há como trabalhar com o Brasil e promessas não serão suficientes.

Mas, para ambientalistas, o governo americano pecou em dar crédito ao Brasil. Para Diane Ruiz, do Greenpeace, "Kerry está legitimando a destruição florestal com seus acordos florestais na COP26" e "permitindo que Bolsonaro avance mais na destruição das florestas e no abuso dos direitos humanos".

"O Brasil está planejando atingir seu objetivo de reduzir o desmatamento ilegal, legalizando mais desmatamento", disse. "Quando a delegação brasileira retorna de sua turnê de relações públicas em Glasgow, seu Senado está apressando a votação de uma legislação que recompensaria e incentivaria a apropriação de terras, uma atividade criminosa responsável por pelo menos um terço de todo o desmatamento na Amazônia brasileira", alertou.

Agronegócio dita tom e a agenda

"Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça". Foi no embalo da bossa nova que a delegação brasileira na Conferência da ONU para Mudanças Climáticas tentou se apresentar ao mundo, nas últimas duas semanas, num pavilhão criado em Glasgow.

Mas em paredes que apenas imitam uma floresta e enfeites de árvores, a realidade revelava outro cenário: a presença consolidada do agronegócio, tanto na organização do espaço como na agenda de eventos e debates, assim como na postura do Brasil nas negociações.

Na entrada do local, não havia dúvida do envolvimento dos ruralistas. O emblema da CNA (Confederação Nacional da Agricultura) reinava soberano, inclusive acima dos nomes dos ministérios brasileiros. Outra presença clara era da CNI (Confederação Nacional da Indústria).

Foi ali que, nos últimos dias, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, recebeu delegações estrangeiras para reuniões. Sua agenda, porém, não foi divulgada e, segundo sua assessoria, o motivo do sigilo era "segurança".

Um recente estudo da ONU apontou que as emissões de carbono na agropecuária subiram 17% nos últimos 30 anos e que, hoje, apenas China e Índia contam com volumes superiores aos do Brasil.

Mas, no pavilhão com o logo da CNA, um amplo programa de seminários foi organizado para mostrar uma agricultura sustentável, sempre com o setor privado, bancos, produtores rurais, secretários do governo e ministros. "A agricultura brasileira com certeza será parte da solução", declarou Leite, em um dos eventos acompanhados em grande parte apenas por brasileiros.

No estande, ninguém oficialmente sabia — ou queria — dizer como havia sido o acordo para compartilhar o espaço entre governo e ruralistas. Um dos representantes da CNA pediu que a pergunta fosse encaminhada para Brasília. Na capital, depois de horas de uma solicitação pelo UOL, não houve uma resposta. Tampouco houve uma explicação por parte da CNI, outra patrocinadora do pavilhão.

No governo, o Ministério do Meio Ambiente não respondeu ao email da reportagem solicitando a mesma informação.

Junto com o espaço veio o credenciamento. Representantes do agronegócio e da indústria receberam o mesmo passe para circular que aqueles recebidos pelos negociadores do governo, enquanto a sociedade civil, indígenas, movimento negro e tantos outros grupos ficaram de fora.

Risco de perder exportação foi determinante

O envolvimento dos ruralistas não se limita a pagar por um espaço. Conforme o UOL revelou no início da semana, foi o argumento econômico que convenceu a ala mais extrema do bolsonarismo a adotar um novo discurso na ONU sobre meio ambiente.

O Itamaraty sabia da necessidade de buscar uma nova posição para o Brasil no debate climático, sob o risco de aprofundar seu isolamento. Mas foi buscar um aliado exatamente no setor exportador para convencer o governo a modificar seu discurso.

A lógica era simples: uma imagem ruim do Brasil no mundo levaria a embargos contra produtos nacionais responsáveis pelo desmatamento e até a outros que possam acabar tendo sua imagem contaminada por uma percepção mais ampla sobre o país.

Os exportadores pressionaram por uma mudança de tom sobre o clima e, em setembro, o posicionamento do setor agrícola foi consolidado para o governo. O resultado foi a busca de um novo discurso, capaz de neutralizar parte da pressão no mundo e, assim, evitar barreiras comerciais.

Não existem metas que significam ações imediatas do governo e o Planalto foi convencido que mudar de tom sairia barato, em termos políticos. Já a recusa em agir teria um custo elevado, com o risco de uma ruptura entre setores exportadores e o governo, justamente num ano eleitoral.

Delegação oficial, mas sem movimentos sociais

Se o mundo rural determinou a postura do Brasil em clima, movimentos sociais e ambientalistas destacaram como o pavilhão brasileiro não envolvia a sociedade civil. De fato, apesar de o Brasil ter a maior delegação da COP26 com quase 500 pessoas credenciadas, nenhuma delas vinha de movimentos sociais, entidades ambientalistas ou de indígenas.

Neste ano, de fato, existem dois pavilhões para o Brasil: um deles é oficial, bancado pela CNA e pela CNI, e outro, liderado pelos movimentos sociais.

"Não houve nenhum debate com a sociedade civil sobre qual seria a pauta que o Brasil traria para Glasgow", disse Ana Toni, diretora-executiva do Instituto Sociedade e Clima. Segundo ela, a relação com o Itamaraty não tem sido um problema. Mas houve apenas um encontro rápido no qual o Ministério do Meio Ambiente indicou que teria o seu pavilhão, sem qualquer convite para aderir.

Ana Toni, que é uma das responsáveis pelo espaço alternativo do Brasil na COP26, deixou claro que não ve qualquer problema a presença da indústria no financiamento de um espaço. Mas ela alerta que, junto com a união no pavilhão, o governo distribuiu credenciais apenas para o setor privado, e não para entidades da sociedade civil.

"O governo brasileiro escolheu a dedo quem que eles dariam uma credencial e quem não daria", disse. "Não foi processo democrático ou inclusivo. Por qual motivo dar passes para a CNA e não para a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil)?", questiona.

"O governo abraçou algumas causas e não outras. O que queremos é ter direitos iguais. É importante a indústria ter voz forte. Mas o que ocorreu em Glasgow mostrou que o governo dialoga com uns e não outros", completou.

Ruptura consolidada

Para os movimentos sociais, Glasgow serviu ainda para confirmar que existe uma ruptura entre o governo e a sociedade civil. Em conferências passadas, havia apenas um "espaço Brasil", montado pelo governo e onde debates e o movimento social participavam. Antes de cada evento, o governo realizava consultas para debater a postura do Brasil e ongs nunca tiveram a necessidade de ter outro pavilhão.

Mas o racha começou em Madri, na COP25 em 2019, quando o governo polarizou o debate e decidiu não dar credenciais para sociedade civil.

Para Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente e chefe da delegação do Brasil na COP em 2015, o pavilhão neste ano sequer pode ser considerado como um "espaço oficial do Brasil". "Trata-se do espaço de parte do setor privado", disse.

Para ela, o espaço "mostra uma imagem deformada do Brasil" e não traz sequer a diversidade do setor empresarial.

O discurso do governo, porém, se misturava ao posicionamento do setor privado. Orgulhoso, Leite usou o pavilhão para anunciar: "a COP26 serviu para trazer o Brasil real". E longe de um enorme segmento da sociedade, o governo insistia com seu slogan em Glasgow: "o ambientalismo de resultado".

Mas, neste caso, só para alguns.


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