19/04/2024 - Edição 540

Entrevista

José Graziano: ‘O Brasil derrotou a fome uma vez, mas não é possível fazer tudo como antes’

Publicado em 08/11/2021 12:00 -

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O ciclo de redução da desigualdade experimentado pelo Brasil nos últimos anos deu lugar a uma agenda de desmonte dos programas sociais. A cruzada culminou no fim do Bolsa Família. Na última sexta-feira 29, após 18 anos, o governo fez o último pagamento do benefício.

O programa se encerra em meio a um aumento da fome. Quase 20 milhões de brasileiros passam fome, segundo recente pesquisa da Rede Penssan. E outros 74 milhões vivem ameaçados pela falta de alimentos. Cenas de pessoas revirando caminhões de lixo em busca de alimento voltaram a tomar o noticiário.

Na base dessa famigerada pirâmide, estão crianças e suas mães — quase sempre negras, pobres e únicas responsáveis pela criação dos filhos. Segundo dados da Fundação Abrinq, ao menos 9 milhões de crianças de até 14 anos estão vivendo em extrema-pobreza, e, portanto, sob a sombra da insegurança alimentar. Entre as menores de cinco anos, 1 em cada 3 já sofre com a desnutrição, segundo dados de uma outra pesquisa, da Universidade Federal de São Carlos, a UFSCar.

“Qualquer criança que passe fome vai ter seu desenvolvimento intelectual e motor comprometido no futuro. Estamos criando uma geração de incapazes”, afirma José Graziano, um dos criadores do programa Fome Zero, ex-diretor geral da da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, cargo que ocupou até 2019.

Atualmente à frente do Instituto Fome Zero, Graziano alerta: “Não dá pra esperar 2022. Quem tem fome tem pressa”.

 

Estudos apontam um aumento no número de crianças passando fome no Brasil. Por quê?

José Graziano: Posso dizer que há uma piora geral da fome no País nesse segundo semestre de 2021, que também se deve a falta do Auxílio Emergencial e uma série de trapalhadas do governo. Saímos de mais de 65 milhões de pessoas beneficiadas pelo primeiro auxílio em 2020 e estamos agora falando em dar um “Auxílio Brasil” a 17 milhões de beneficiários. Era muito mais fácil aumentar o Bolsa Família. Ele quer tirar a marca que atribuiu aos governos do PT. Nos últimos dias, a inflação acelerada dos combustíveis e alimentos acertam classes baixas. Cada vez é mais difícil sobreviver, e isso tem aumentado a insegurança alimentar.

JG: Qualquer criança que passe fome vai ter seu desenvolvimento intelectual e motor comprometido. Estamos criando uma geração de incapazes. Também tenho me preocupado muito com outro aspecto da fome que é o comer mal, que provoca a obesidade. Isso tem ocorrido durante a pandemia. E uma criança obesa é um conjunto de comorbidades. Uma pesquisa Unicef julho de 2021 mostrou que em metade dos domicílios com crianças houve redução no consumo de alimentos saudáveis em favor dos processados e ultraprocessados. Se somarmos a isso a perda da merenda escolar pelo fechamento das escolas, vamos ter um quadro mais assustador na saída da pandemia. O número de crianças obesas passou de 7%, praticamente recorde mundial. Uma situação similar existia no Chile, mas uma lei obrigando a rotulagem alimentos, colocando selo alimentos de alto teor sal, gordura, açúcar, proibindo propagandas reverteu a situação rapidamente. Tem solução. O que falta é ter um Estado que banque política para enfrentar isso. 

O que precisa ser feito para recuperar o pouco que o País avançou nas últimas décadas?

O Brasil derrotou a fome uma vez e sabe como fazer isso, mas não é possível fazer tudo como antes. Precisamos retomar a trajetória de um Estado forte, que se responsabilize pela vida dos cidadãos, pela segurança alimentar – são direitos fundamentais do ser humano. Precisamos de um governo que zele por isso. E o caminho é o da política. Ano que vem teremos eleições, mas não dá para esperar o final de 2022. Quem tem fome tem pressa. 

Há muito que se pode fazer já no nível municipal, por exemplo. Acabamos de eleger prefeitos que podem investir na merenda escolar comprando da agricultura familiar, garantindo alimentação saudável, comprando localmente. Eles recebem transferências como o PNAE. Também podem ser feitos sistemas curtos de produção e consumo, o que chamamos de “política quilômetro zero”, isentando produtos produzidos localmente.

O governo não parece disposto a contribuir. Como a sociedade poderia se organizar para remediar isso?

Existem as cozinhas comunitárias, bancos de alimentos e restaurantes populares. Consumir hoje é atitude política. Nessa hora em que não podemos contar com o governo federal, a solidariedade é ainda mais importante. Não vamos sair dessa crise sem a sociedade brasileira se mobilizar. Cada um deve buscar como cidadão consciente iniciativas que já existem e contribuir, fortalecer. No Instituto Fome Zero, por exemplo, procuramos dar voz a quem tem fome, pois eles não têm um sindicato, por exemplo, para lutar por eles. Lançamos agora a campanha “Crônicas da Fome” com o intuito de visibilizar a realidade das pessoas. A ideia é que as pessoas escrevam, deem voz aos que não podem fazê-lo. Além disso, há um espaço para doações que será revertido a entidades que lutam contra a carestia.

O senhor foi diretor da FAO. O que mais você viu piorar nos anos em que esteve lá?

Nos últimos anos de minha gestão frente à FAO, que foi até julho de 2019, vi o governo Trump arremeter duramente contra os princípios fundamentais da ONU e suas agências, inclusive contra a paz mundial. Eu estava na plateia da Assembleia Geral quando Trump fez seu discurso ameaçando atacar a Coreia do Norte. Nunca tinha imaginado ver isso de um presidente americano. E no Brasil, o governo Bolsonaro apoiou a desconstrução da governança mundial que já não era grande coisa, então tudo piorou muito. Nunca imaginei que não seríamos capazes de enfrentar uma pandemia, nem de liberar vacinas para todos os brasileiros. Enquanto tiver gente sem ser vacinada, todos nós corremos risco. Há uma atitude genocida por parte dos países ricos para evitar a quebra da patente [das vacinas], que garante os dólares às grandes farmacêuticas no mundo. Daí vem o Brasil e apoia essa atitude.


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