24/04/2024 - Edição 540

Especial

O bobo da corte

Publicado em 05/11/2021 12:00 -

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Jair Bolsonaro é um homem isolado no mundo e com um status equivalente ao de um líder de uma republiqueta decadente e sanguinária.

Se essa era uma realidade que eu via e denunciava todos os dias nos últimos meses, a ficção que o bolsonarismo construiu nas redes sociais parecia conseguir sobreviver graças à impossibilidade de cúpulas presenciais e de viagens. O Zoom camuflava o desprezo que o mundo nutria pelo presidente brasileiro.

Mas isso tudo mudou com a decisão do G20 de organizar sua primeira cúpula presencial em dois anos, abrindo uma esperança para a reconstrução do mundo pós pandemia. A cúpula de Roma, assim, entra para a história como o momento em que líderes voltaram a se olhar, apertar mãos, ver a reação de desgosto ou simplesmente uma piscada de aprovação.

Para Bolsonaro, porém, foi reservado o mesmo tratamento que democracias dão para líderes constrangedores que, em certos momentos, passam por solo europeu. Muitos deles são ditadores ou personagens criticados por violações aos direitos humanos.

Em 2019 ocorreu a primeira viagem internacional de Bolsonaro. Ele foi ao encontro anual de Davos, poucas semanas depois de tomar posse. A fraude de seu governo, porém, já começava a ficar evidente para o mundo. Diplomatas do Itamaraty, de uma forma hábil, conseguiram reservar o palco principal do Fórum Econômico Mundial para o brasileiro, que teria um tempo de até 40 minutos para convencer a elite do planeta de que ele poderia ser um aliado do grande capital.

Mas sua fala foi decepcionante. Foram seis minutos de um discurso que mais parecia um pôster da Embratur. No dia seguinte, consegui entrar numa ala reservada onde o presidente estava com seus assessores para um café da manhã. Bolsonaro, que acabava de assumir uma das maiores economias do mundo, comentava com um entusiasmo infantil o fato de ter sentado ao lado de reis e empresários no jantar, na noite anterior.

Ele não tinha entendido que quem estava sentado ali era o presidente do Brasil, um mercado cobiçado pelas grandes multinacionais. Não o indivíduo Jair. Minutos depois de se gabar de estar na mesa dos grandes, seu filho Eduardo soltou um comentário aos demais assessores durante o café: "a palavra bilionário se escreve com ou sem (a letra) H?".

Dois anos e meio depois, o analfabetismo diplomático do governo ficou evidente em Roma e eternizou um homem sem aliados, sem amigos, que menosprezou outros líderes, que ofendeu parceiros comerciais e que jogou o Brasil na sarjeta da diplomacia.

As imagens falavam por si mesmas. O primeiro-ministro italiano Mario Draghi já deu o tom assim que Bolsonaro chegou. O brasileiro, sem vacina, não recebeu um aperto de mão por parte do italiano. Estava claro: ele era tóxico.

Minutos depois, num canto da sala, seu isolamento era total, enquanto Angela Merkel, Macron, Boris Johnson, Antonio Guterres, Morrison, Trudeau, Modi e tantos outros buscavam caminhos para lidar com a pandemia e clima. Mas, entre esses chefes de governo, não faltavam ironias com o Brasil.

Mas não era apenas na antessala do G20 que o isolamento ficou escancarado. Sua agenda em três dias por Roma previa apenas um encontro protocolar com o presidente da Itália, Sergio Mattarella – obrigado a receber todos os líderes na condição de anfitrião.

Ele ainda esteve com dois personagens menores na hierarquia da diplomacia: o secretário-geral da OCDE (grupo dos países mais ricos) e, num sofá numa ala de espera do local da cúpula, Bolsonaro manteve uma conversa de alguns poucos minutos com Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS (Organização Mundial da Saúde). Nenhum dos dois toma decisões. A realidade é que, enquanto o balé de carros blindados cruzava Roma por três dias, nenhum chefe de governo encontrou tempo para uma reunião com Bolsonaro.

Sem programação, ele saiu para caminhar e fazer turismo todos os dias em que passou pela capital italiana. Ironicamente, porém, não entrou no Vaticano e apenas conheceu o local por fora. Afinal, não havia sequer reunião marcada com o papa Francisco.

O único encontro marcado com um líder europeu, de fato, será nesta terça-feira. Trata-se do representante da extrema-direita italiana, Matteo Salvini. A ironia é de tamanha proporção que o brasileiro convidou seu aliado europeu e acusado de repetir políticas fascistas para estar na homenagem que Bolsonaro fará aos militares brasileiros que lutaram em 1944 contra… o fascismo.

O encontro com o político italiano com que o resto da Europa se recusa a se reunir ainda ocorre no mesmo momento em que o mundo estava em Glasgow para negociar o futuro do planeta. Ciente que seria alvo de protestos, Bolsonaro optou por ficar longe do epicentro hoje das decisões globais.

Realidade paralela na diplomacia não funciona

Enquanto o vexame internacional era claro, o bolsonarismo sequestrou o estado para promover para a sua base mais radical que ficou no Brasil uma viagem que simplesmente não existiu. Com a ajuda da porta dos fundos da embaixada do Brasil em Roma, o presidente escapou da imprensa e de perguntas incômodas. Caminhou com apoiadores que tinham sido orientados a ficar em determinadas áreas, enquanto equipes de seu gabinete faziam imagens "limpas" do suposto sucesso da viagem.

A seleção de quem entre os jornalistas recebia informação era evidente. Duas redes de TV próxima ao presidente foram as únicas que tiveram acesso a um jantar que ele teve na embaixada, na noite da sexta-feira.

A agenda oficial do presidente enviada para a imprensa tampouco era baseada em fatos reais, enquanto a assessoria de imprensa apenas repetia uma frase constrangedora ao ser questionada sobre diferentes pontos: "não temos informação".

Mas a Itália já nos ensinou com Pinóquio que mentira não prospera. Ao deixar sua bolha de segurança em Roma, Bolsonaro descobriu que era persona non grata em Pádua, que religiosos e a diocese local não querem recebê-lo e que, por onde passar, haverá uma resistência contrária por parte da população estrangeira.

Os jatos de água contra manifestantes apenas são vistos quando o convidado é um ser que viola os valores da sociedade democrática.

Assim, a turnê de Bolsonaro pela Itália é o retrato de um país sem lugar hoje na parcela do mundo onde a civilização é ainda um objetivo. É a imagem da falência de um governo em sua missão de construir uma relação com o mundo. Diplomacia é política pública, é um instrumento de combate à fome, de desenvolvimento industrial, de atração de investimentos e de melhorias sociais.

O G20 foi, portanto, um encontro fundamental. A cúpula revelou que o mundo desdenha Bolsonaro e que as polêmicas geradas por sua turnê são comparadas apenas a de líderes decadentes de republiquetas que inspiram Borat.

Um resumo do vexame

O presidente Jair Bolsonaro foi a Roma a pretexto de participar da cúpula do G-20, grupo formado pelas 20 maiores economias do mundo. A viagem pode ter sido boa para ele e para os membros de sua comitiva. Para o Brasil e para os brasileiros, no entanto, foi péssima. Jamais um chefe de Estado havia envergonhado tão profundamente o País em uma agenda internacional. Mais uma vez, restou evidente que Bolsonaro não está à altura da Presidência da República.

O roteiro da viagem de Bolsonaro pela Itália retratou com exatidão o deserto programático de seu governo, a total ausência de uma agenda do presidente para o País e sua incompreensão do lugar do Brasil no mundo. Como não sabe o que fazer e tampouco separa interesses de Estado e de governo de seus objetivos particulares, Bolsonaro passou longe de reuniões bilaterais produtivas, alinhamento de acordos diplomáticos e comerciais ou simplesmente conversas de alto nível com outros dignitários que pudessem ao menos estreitar laços entre o Brasil e os outros países do G-20. Enquanto chefes de Estado e de governo conversavam entre si sobre temas de interesse comum como vacinação, mudanças climáticas e taxação global para grandes empresas, Bolsonaro se entretinha entabulando conversas sobre futebol com alguns garçons.

O presidente brasileiro se reuniu apenas com o anfitrião da cúpula do G-20, o presidente italiano Sergio Mattarella, encontro meramente protocolar, e com o secretário-geral da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Mathias Cormann. Como foi noticiado, o encontro entre Bolsonaro e Cormann foi “rápido e inconclusivo”. Bolsonaro reafirmou a pretensão do Brasil de ingressar na OCDE, mas ouviu do secretário-geral da organização que, embora o País seja “grandioso”, “há um processo e o Brasil é um dos seis países candidatos (a ingressar na OCDE)”.

Em resumo, Bolsonaro cruzou o Atlântico para fazer campanha eleitoral antecipada em solo estrangeiro e, como ninguém é de ferro, algum turismo afetivo. Além das andanças por Roma, nas quais provocou aglomerações e ensejou ataques violentos contra jornalistas no exercício da profissão, Bolsonaro visitou a cidade de seus antepassados e foi ao santuário de Pádua. Em Pistoia, ao lado de Matteo Salvini, líder da extrema direita italiana, Bolsonaro homenageou os 467 soldados brasileiros que morreram em solo italiano durante a 2.ª Guerra, justamente combatendo o populismo autoritário que tanto Bolsonaro como Salvini hoje representam.

Dos 20.573 soldados brasileiros enviados à Itália para lutar contra o fascismo, 467 morreram em combate. Em Pistoia, uma vez por ano, realiza-se uma cerimônia religiosa em memória deles no cemitério San Rocco. No fim do seu discurso, Salvini disse em português: “A cobra fumou”. Referiu-se ao lema da Força Expedicionária Brasileira (FEB): “A cobra vai fumar”. Após o discurso de Salvini, o ministro da Defesa do Brasil, o general Walter Souza Braga Netto, afirmou: “A cobra fumou e, se necessário, fumará novamente”.

Não se sabe se o general antevê a possibilidade de um novo conflito mundial ou se quis apenas mandar um recado aos seus colegas de farda. Braga Netto é tão ou mais bolsonarista do que Bolsonaro. Está citado no relatório final da CPI da Covid-19.

Salvini pediu desculpas a Bolsonaro “devido à confusão” que marcou sua visita à Itália. Que é isso, Salvini! Nós é que pedimos desculpas pelo presidente que temos.

Em mais um ato de campanha, durante conversa de corredor arranjada com o presidente da Turquia, Recep Erdogan, Bolsonaro mentiu descaradamente sobre a situação econômica do País, vituperou contra a Petrobras, reclamou de obstáculos imaginários para sua governança e se jactou de um apoio popular que, na realidade, ele não tem. Foi um ensaio do que dirá no decorrer da campanha eleitoral oficial no ano que vem. A um constrangido diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, Bolsonaro houve por bem tripudiar do fato de ser o único chefe de Estado no mundo acusado de ter cometido crimes contra a humanidade durante a pandemia de covid-19, o que provocou risos no ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, em um misto de bazófia e subserviência. 

Ficou claro que Bolsonaro usou a cúpula do G-20 para reforçar entre seus apoiadores no Brasil a imagem de um presidente que é pária por ser “antissistema”, alguém que luta praticamente sozinho contra forças muito poderosas de um mundo em degeneração, forças estas que só ele, qual um super-herói, é capaz de impedir que prejudiquem o Brasil. Acredite quem quiser.

No mundo real, aquele que deveria preocupar um presidente digno do cargo, milhões de brasileiros em insegurança alimentar não sabem se serão contemplados pelo programa social que substituirá o Bolsa Família. Hoje, 5,3 milhões de famílias que não atendiam aos critérios para receber o Bolsa Família deixaram de receber o auxílio emergencial e até ontem ainda não sabiam se seriam elegíveis ao Auxílio Brasil.

No exterior, Bolsonaro é motivo de zombaria, descaso e vergonha. No Brasil, o presidente é ainda uma constante fonte de incerteza e angústia.

A agenda do Bufão

Balanço da viagem do presidente Jair Bolsonaro à Itália para participar de mais uma reunião dos chefes de Estado das 20 maiores economias do mundo:

1 – Não pôde apertar a mão do primeiro-ministro italiano porque não se vacinou nem usava máscara;

2 – Por distração, pisou no pé da primeira-ministra alemã, Angela Merkel, e ouviu dela: “Só podia ser você”;

3 – Queixou-se da Petrobras e da imprensa numa conversa de menos de dois minutos com o presidente da Turquia, que se limitou a escutá-lo;

4 – Isolado, puxou conversa com garçons sobre futebol;

5 – Ficou de fora da foto oficial do encontro porque preferiu sair a passeio;

6 – Nas vizinhanças da embaixada do Brasil em Roma, caminhou durante 10 minutos enquanto jornalistas que cobriam sua viagem eram agredidos por milicianos, doublés de agentes de segurança;

7 – Disse a jornalistas italianos que falou “alguma coisa reservada” com Jim Carrey, enviado especial americano para questões climáticas. Jim Carrey é um humorista. Bolsonaro falou com John Kerry;

8 – Gritou “Ihuuul” ao microfone de um artista de rua na Praça da Basílica de São Pedro, no Vaticano, sem nem tentar ser recebido em audiência pelo papa Francisco, que mandara dizer que não o receberia;

9 – Foi alvo de protestos nas cidades de Anguillara Veneta, Pádua e na comuna de Pistoia. Em Pádua, manifestantes foram dispersados pela polícia italiana, que usou canhões de água. Em Pistoia, dom Fausto Tardelli, o bispo local, recusou-se a celebrar missa na presença de Bolsonaro e do seu anfitrião, Matteo Salvini, líder do partido italiano de ultradireita Liga Norte.


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