26/04/2024 - Edição 540

Poder

Centrão explode Posto Ipiranga e invade o cofre

Publicado em 22/10/2021 12:00 -

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O governo Bolsonaro virou uma contagem regressiva. Faltam 435 dias para o fim do mandato do capitão. E o país foi condenado pelas circunstâncias a conviver com um presidente sem projeto, sem partido e sem ministro da Economia. O centrão explodiu o Posto Ipiranga e invadiu o cofre. O problema deixou de ser o fim do teto de gastos. A questão é que o país perdeu o chão. O fundo do poço passou a ser apenas mais um estágio rumo às profundezas.

A primeira vítima da explosão é o brasileiro que se divide entre a fila do osso e a fila do desemprego. O novo Bolsa Família de R$ 400 é mastigado pela inflação antes de chegar ao bolso. A segunda grande vítima é a semântica. As declarações mais recentes de Bolsonaro desobrigaram tudo mundo de fazer sentido. Quando um presidente se junta ao rebotalho político que o cerca para proporcionar a si mesmo um Bolsa Reeleição de mais de R$ 80 bilhões e afirma que nada mudou, você sabe que está no centro de uma crise de significado ou numa roda de cínicos.

Bolsonaro declarou numa entrevista e na sua live semanal de quinta-feira (21) que Paulo Guedes continua firme, que apoia as reformas liberais e que o teto de gastos permanece intacto. Disse tudo isso ao final de um dia em que uma comissão da Câmara aprovou a emenda sobre o calote nas dívidas judiciais, a equipe do Ministério da Economia debandou e as empresas listadas na Bolsa contabilizaram perdas em valor de mercado de R$ 284 bilhões no intervalo de apenas 72 horas.

Ao atear fogo na economia para tentar reacender a chama do seu projeto de reeleição, Bolsonaro força seus adversários políticos a ajustarem suas estratégias. Para não perder eleitores, Lula dobrou o populismo, pregando um Bolsa Família de R$ 600. Bolsonaro contra-atacou com o Bolsa Caminhoneiro de R$ 400. E os náufragos da chamada terceira via, que tentavam colocar em pé uma agenda para o pós-Bolsonaro foram como que intimados a se preparar para o pré-Dilma. Já não é negligenciável a hipótese de o Brasil viver uma recessão no ano eleitoral de 2022.

Rendido ao centrão, Bolsonaro entra na fase da barbaridade e da cambalhota

Na opinião de Bolsonaro, todo político em busca de reeleição é um ser perigoso. Numa em entrevista concedida à rádio Jovem Pan em abril de 2019, quando seu governo acabara de completar 100 dias, o capitão declarou que "a reeleição causou uma desgraça no Brasil", pois há prefeito, governador e até presidente que "se endivida, faz barbaridade, dá cambalhota, faz acordo com quem não interessa para conseguir apoio político." Soou categórico: "A reeleição é péssima no Brasil."

Decorridos dois anos e meio, Bolsonaro confirma sua profecia. Obcecado pela reeleição, o capitão entrou na fase da barbaridade e da cambalhota. Rendido aos caciques do centrão, o presidente utiliza a fome dos pobres como álibi para exterminar os últimos resquícios de responsabilidade fiscal. Paulo Guedes, cuja coluna vertebral já estava arqueada, acocorou-se. Os principais assessores do Ministério da Economia bateram em retirada.

Com o Tesouro em ruínas, Bolsonaro articulou com os coronéis do centrão uma megapedalada orçamentária que lhe permitirá gastar R$ 83 bilhões no ano eleitoral de 2022. Para chegar a essa cifra, despesas extraordinárias serão acomodados sobre uma laje acima do teto de gastos. E dívidas judiciais irrecorríveis serão enfiadas dentro do armário.

Alega-se que a pandemia tornou incontornável o reforço do Bolsa Família, que passará de R$ 189 para R$ 400. Verdade. O problema é que Bolsonaro prometia há mais de um ano colocar em pé um novo programa de renda mínima, para a fase pós-auxílio emergencial. O pagamento do vale Covid termina em 31 de outubro. E Bolsonaro oferece o Auxílio Brasil. Não é programa de renda mínima, mas uma empulhação eleitoral.

O governo poderia ter socorrido os famintos cortando o auxílio centrão (R$ 17 bilhões). Poderia ter passado na lâmina as isenções tributárias (R$ 371 bilhões). Bolsonaro optou pela cambalhota fiscal. Antes de ser formalizado, o reajuste do novo Bolsa Família é mastigado pela inflação resultante da barbaridade orçamentária. De quebra, nacos dos R$ 83 bilhões servirão para satisfazer o apetite de parlamentares por emendas secretas e verbas eleitorais.

Confirma-se uma outra previsão que Bolsonaro fizera em março do ano passado, quando a pandemia da "gripezinha" chegou ao Brasil: "Se a economia afundar, afunda o Brasil. Se acabar a economia, acaba qualquer governo. Acaba o meu governo." Ao encostar nove crimes no prontuário de Bolsonaro, a CPI da Covid encurtou um pouco mais sua margem de manobra, estimulando o malabarismo.

Bolsonaro continua atribuindo a derrocada econômica à política do "fique em casa", que os governadores foram compelidos a adotar para combater a proliferação do coronavírus. A CPI reforçou a percepção de que, se tivesse combinado sua alegada preocupação econômica com uma noção qualquer de responsabilidade sanitária, Bolsonaro talvez tivesse mentido menos e comprado vacinas mais rapidamente.

Consolida-se também a migração de Paulo Guedes do posto de comandante da Economia para o de coordenador do comitê de campanha. Na fatídica reunião ministerial de 22 de abril de 2020, aquela em que os palavrões soaram mais alto do que as ideias, Guedes avisara: "Vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente."

Há cinco meses, numa entrevista à Folha, Guedes declarou que seu ministério jogou na defesa nos três primeiros anos do governo. Anunciou: "Agora, vamos para o ataque". Numa animação que não ornava com a ruína, o ministro lançou propostas ao vento: um Bolsa Família vitaminado, Bônus de Inclusão Produtiva, Bônus de Incentivo à Qualificação…

Nessa mesma entrevista, Guedes admitira que sua agenda liberal encolheu. Disse que "o grau de adesão do presidente à agenda econômica" caiu de 99% para 65%. O que espanta não é a dificuldade do ministro de reconhecer que o chefe nunca aderiu ao seu liberalismo. Bem mais indecorosa é a conversão do PhD de Chicago ao populismo autodidata de Bolsonaro e dos bacharéis do centrão. O capitão tem razão: A reeleição é mesmo "uma desgraça."

Autocrítica

É impagável presenciar Paulo Guedes passando por cima do discurso de austeridade fiscal e da regra do teto de gastos que sempre defendeu para tentar aumentar a popularidade de Jair Bolsonaro. Ver o ministro da Economia falando em "licença para gastar R$ 30 bilhões fora do teto" para dar ao chefe o poder de distribuir um vale-reeleição é uma cena de 9,55 milhões de dólares em paraíso fiscal.

Mudar a fórmula do cálculo do teto e bloquear o pagamento de precatórios (boa parte é de dívidas com aposentados) é marmotagem. Sejamos honestos: apesar da queda na Bolsa de Valores e da alta do dólar, sua santidade o mercado passa pano e precifica porque é o Guedes, não é o Guido Mantega. Se fosse o petista, teríamos uma multidão dizendo que isso é uma pedalada maior que a Volta da França e pedindo derramamento de sangue em sacrifício.

Não me entendam mal, por favor. Como estou cansado de dizer aqui, sou a favor da revisão do teto dos gastos, ainda mais se for para transferir grana para os muitos pobres em meio a essa lama que Jair nos meteu. Mas, daí, teria que surgir de uma discussão fundamentada e valer para a geral e não um cambalacho para ajudar o presidente no seu longo e esburacado calvário em direção à reeleição.

Ainda lembro, como se fosse ontem, um rosário de gente bonita e crescida no leite de pera dizendo que Guedes iria domar Bolsonaro. E que, por isso, não estava votando em Jair, mas em Paulo. É o típico exemplo do Manual do Autoengano.

O então deputado federal, Fidalgo do Baixo Clero, Zé Ninguém do Centrão, Lorde das Rachadinhas, Agrupador de Milícias, o Primeiro de seu Nome, sempre deixou claro quem era, o que pensava e que faria de tudo para alcançar e manter o poder. Naquele momento, estava claro que o mais provável era que Jair libertasse o pequeno Bolsonaro que existe dentro de Guedes do que Guedes colocar Bolsonaro no cabresto.

E isso veio a acontecer. Paulo 'Caco Antibes' Guedes demonstrou mais de uma vez que é um camarada destacado da ala radical do governo, ao contrário do que pregam os Faria Limers. Ele não atua para impedir que crianças estupradas possam fazer o aborto previsto em lei, como alguns colegas, mas a insensibilidade com a situação econômica dos mais vulneráveis sempre foi gigante.

Lembram quando ele perguntou "qual o problema agora que a energia vai ficar um pouco mais cara porque choveu menos"? Ou quando desaprovou empregadas domésticas viajando à Disney, criticou o aumento na expectativa de vida da população, afirmou que a classe média exagera no tamanho do prato e que as sobras poderiam alimentar os mais pobres, reclamou que o governo ampliou demais o acesso ao Fies, bancando universitário que "não sabiam ler nem escrever", insinuou um novo AI-5 diante de protestos de rua contra o governo, rotulou servidores públicos de parasitas, repreendeu pobres por não pouparem e os associou à destruição do meio ambiente?

Não é à toa que Bolsonaro gosta de verdade do ministro da Economia, o que evitou sua demissão mais de uma vez, e a metáfora do casamento entre eles é real. O presidente fala que seu governo vai gerar emprego através de programas que trazem "Verde e Amarelo" no nome. Dai, Guedes propõe que proteções e garantias desses trabalhadores sejam limadas em troca desses empregos. Olha só, que perfeito. O ministro e Bolsonaro são um só animal político, com duas cabeças.

Uma das características dos ministros da fictícia "ala técnica do governo Bolsonaro" é que eles têm demonstrado que amam mais os cargos que ocupam do que suas supostas convicções técnicas. E já demonstraram que fazem de tudo para garantir o carro oficial, o café sempre quente e não precisar girar uma maçaneta sequer.

Guedes é um exemplo de quem baixou a cabeça não só para Jair mas para o centrão, que hoje é o chefe do seu chefe. Temos também Marcelo "Dedo do Meio" Queiroga, que em nome da manutenção de um cargo que não teria em um governo democrático racional, apoia os crimes do patrão no combate à pandemia de covid-19, passando pano para cloroquina, criticando o uso de máscaras, sabotando vacinação de adolescentes, ou seja, colocando a vida dos brasileiros em risco.

Cobra-se com frequência autocrítica da esquerda. E acho que ela tem que se explicar por muita coisa. Mais do que a questão da corrupção, ela precisa contar a razão de não ter demarcado terras indígenas o suficiente, não ter realizado as reformas agrária e urbana de forma ampla e real, não ter garantido recursos para o salto do ensino básico, não ter reduzido as emissões de carbono na velocidade que precisamos, não ter taxado super-rico (atenção, não é com você, que comprou o Renegade parcelado, ok?). E antes que digam que a correlação de forças não deixou, uma dica: ela nunca deixa.

Mas uma autocrítica da direita liberal, que votou em Bolsonaro achando que ele seria o poodle de Paulo Guedes faz-se necessária e urgente.

Se Guedes não rodar pelas mãos de Jair, que pode colocar alguém mais disposto ainda a cumprir ordens, a galera do autoengano vai ter coragem de dizer no ano que vem de novo que vota no capitão porque Paulo o segura? Ou vai assumir que vota porque, na verdade, queria mesmo é uma Damares Alves, um Ernesto Araújo, um Ricardo Salles…


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