26/04/2024 - Edição 540

Especial

Mais fome

Publicado em 22/10/2021 12:00 -

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A partir de novembro, pelo menos 20 milhões de pessoas que hoje recebem o auxílio emergencial ficarão sem benefício nenhum. O auxílio emergencial acaba em outubro e não será prorrogado. O governo diz que começará em novembro os pagamentos do Auxílio Brasil, que substituirá o Bolsa Família, mas só uma parte dos beneficiários do auxílio emergencial participará do novo programa.

Sem deixar claro de onde virá o dinheiro, o ministro da Cidadania, João Roma, afirmou nesta quarta-feira (20) que o Auxílio Brasil irá ampliar a cobertura do antigo Bolsa Família dos atuais 14,7 milhões de famílias para 16,9 milhões de famílias até o final do ano, com o objetivo de zerar a atual fila de espera do programa.

A fila é formada por famílias que estão no CadÚnico (cadastro do governo federal para programas sociais) e preenchem os requisitos, mas não recebem o benefício por falta de verba no programa.

Dados atualizados em agosto informam que o auxílio emergencial de 2021 foi pago a 39,4 milhões de pessoas. Segundo o Ministério da Cidadania, esse número caiu para 35 milhões após reavaliações de cadastros.

Dentre essas pessoas, aproximadamente 20 milhões (57%) não estão no CadÚnico. Oficialmente, esse público não está na fila do Bolsa Família e, portanto, não deve entrar no Auxílio Brasil até dezembro.

Cerca de cinco milhões de beneficiários do auxílio emergencial estão no CadÚnico, mas não no Bolsa Família. Se o governo cumprir a promessa de zerar a fila, parte dessas pessoas receberá o Auxílio Brasil até o final de 2021. Outra parte não receberá porque não cumpre os requisitos do programa.

Governo promete R$ 400, mas não diz como vai pagar

O Auxílio Brasil ainda não tem calendário de pagamento, valores dos benefícios, critérios de renda nem fonte de recurso definidos. Essas informações dependem de regulamentação por parte do governo —um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

O Bolsa Família tem um benefício médio próximo de R$ 189 por mês. Roma afirmou que o governo quer ampliar essa média em 20%, o que significa algo em torno de R$ 227. Disse também que trabalha com a equipe econômica para que as famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza recebam pelo menos R$ 400 até o final de 2022.

O ministro disse que, como o benefício varia conforme a composição familiar e a situação financeira, haverá famílias recebendo menos de R$ 100 enquanto outras receberão mais de R$ 500 por mês —uma situação que já acontece dentro do Bolsa Família.

João Roma não informou de onde virá o dinheiro para que o Auxílio Brasil atenda mais famílias e com benefícios maiores. Declarou, porém, que haverá responsabilidade fiscal, sem o uso de créditos extraordinários (dívida emitida fora do teto de gastos).

Fim do auxílio é visto como vitória de Paulo Guedes

Durante as negociações com a equipe econômica, o fim do auxílio foi uma vitória do ministro da Economia, Paulo Guedes. Alguns integrantes do governo defendiam a prorrogação.

O argumento da área econômica é que parte dos beneficiários é empregada informal e já voltou a trabalhar. Além disso, Guedes e seus assessores apontam o avanço da vacinação e o arrefecimento da pandemia como justificativa para só pagar benefícios a quem for de fato extremamente vulnerável.

Fontes ligadas a Roma, porém, dizem que o ministro ainda manterá estudos para aprimorar o CadÚnico e verificar se o governo não está "abandonando" pessoas que ainda necessitam de ajuda.

A incerteza sobre a fonte de recursos para o Auxílio Brasil tem gerado reações no mercado financeiro, que teme a quebra do teto de gastos e um endividamento público descontrolado.

Paulo Guedes defende que os recursos para ampliar a distribuição de renda via Auxílio Brasil venham da reforma do Imposto de Renda, que enfrenta dificuldades para ser aprovada no Senado. Em um evento nesta quarta-feira, o ministro afirmou que o governo poderá precisar de R$ 30 bilhões fora do teto de gastos para amparar a população mais pobre.

Nesta semana, o relator da medida provisória que criou o Auxílio Brasil, deputado Marcelo Aro (PP-MG), disse que o governo tem "fins eleitoreiros" ao propor um benefício de R$ 400.

Bolsonaro agravou a fome e agora vende o Auxílio Brasil como solução

Após ser um dos responsáveis pela fome que faz com que brasileiros lutem por ossos e disputem sobras no caminhão de lixo, Jair Bolsonaro lança o Auxílio Brasil (pagando R$ 300 e R$ 400 no lugar do Bolsa Família) e quer a renovação do auxílio emergencial para manter suas chances na eleição de 2022. Ou seja, ajudou a piorar o problema e, agora, quer lucrar oferecendo soluções incompletas.

Ele insiste em afirmar que a fome foi gerada pelas quarentenas baixadas para evitar mortes. Mentira. Caso ele não tivesse sabotado sistematicamente as medidas de isolamento social e, ao mesmo tempo, combatido o uso de máscaras e comprado vacinas da Pfizer e da CoronaVac ainda no ano passado, a pandemia seria mais curta e a economia teria voltado a um (quase) normal antes, com menos fome, menos pobreza, menos desemprego, menos mortos.

Pelo contrário, quando a fome apertou (os tais 19,1 milhões de famintos, no final do ano passado, calculados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), ele cancelou o auxílio emergencial em 31 de dezembro e só retomou em abril, com valores mixurucas de R$ 150, R$ 250 e R$ 375. Jogou lenha no fogo – gasolina não, porque já está custando mais do que R$ 7 o litro.

Mesmo o piso do auxílio, hoje, não compra 25% da cesta básica em São Paulo, Rio, Porto Alegre e Florianópolis, segundo o Dieese. O povo quer feijões? Que compre fuzis.

Diante da fome que apertava, Jair Bolsonaro disse, no dia 1º de junho, que "quem quer mais [auxílio emergencial], é só ir no banco e fazer empréstimo". O que os trabalhadores informais pobres que perderam o emprego por conta da pandemia dariam como garantia de um empréstimo? Os próprios rins?

Isso sem contar que parte da culpa da inflação é dele e de suas micaretas golpistas, que elevaram a insegurança e ajudaram na subida do dólar. Dólar mais alto impacta no preço do gás de cozinha e dos combustíveis e, por conseguinte, na inflação dos alimentos. Sem contar sua incompetência na gestão hídrica, que nos levou à atual situação nos reservatórios e a um preço escorchante da eletricidade.

Diante de seu terraplanismo biológico, parte da classe média o abandonou. Durante um tempo, isso foi mais do que compensado pela parcela dos que se beneficiaram direta ou indiretamente do auxílio emergencial de R$ 600/R$ 1.200. Mas a popularidade de Bolsonaro começou a desabar quando o benefício foi suspenso em dezembro. E sua retomada em abril, com valores pífios, não foi suficiente para melhorar significativamente sua aprovação.

Sem o auxílio emergencial, contudo, o governo Bolsonaro rolaria ladeira abaixo hoje. E é isso o que ele quer evitar com a prorrogação e com o anúncio imediato da mudança no Bolsa Família.

Há bons projetos no Congresso Nacional que aproveitam o auxílio emergencial para criar um programa de renda básica decente. Que, sim, custaria caro, mas reduziria a desigualdade social no Brasil e, com ela, coisas como a mortalidade infantil e a evasão escolar. No momento de pós-pandemia, isso também evitaria uma convulsão social devido à fragilidade da economia.

Em qualquer democracia que faz jus a esse nome, recursos para um programa como esse viriam de uma Reforma Tributária que aumentasse a progressividade na cobrança de impostos, tirando dos super-ricos, através de taxação de grandes heranças e altíssimas rendas.

Mas essa discussão está a passos lentos. Além da dificuldade do que isso representa em um Congresso Nacional cuja elite econômica está pornograficamente super-representada, há o fato de que isso também demandaria revisão da emenda constitucional do teto de gastos. Coisa que não tem simpatia do ministro da Economia, aquele que vem levando passa-moleque do presidente da República e está na corda bamba após descobrirmos que levou 9,55 milhões de dólares para tirar férias em um paraíso fiscal.

O governo vai dar um gato e contornar o teto "excepcionalmente" para fazer caber o Auxílio Brasil temporariamente em 2022. O suficiente para uma eleição.

Bolsonaro sabe que seu futuro político depende mais de um programa de transferência de renda parrudo do que do respeito às balizas fiscais e da preocupação com o endividamento.

Para o mercado e os liberais que o apoiam, o presidente tenta se mostrar como alguém que prega austeridade fiscal. Para o povão e sua base social, quer aparecer como aquele que garante dinheiro para os pobres. As duas contas não fecham. Mas o mercado não tem voto, enquanto os que recebem até dois salários mínimos são a maioria do país. No final, as parcelas bolsonaristas do mercado financeiro vão entender essa concessão, lembrando que, para eles, vale mais a sobrevivência de Bolsonaro do que a volta do PT.

Ao longo do ano passado, alertei aqui que o presidente aprendeu com a experiência do auxílio emergencial e iria usá-la para se cacifar às eleições no momento certo. O macabro (para usar um termo adotado pelo senador Flávio Bolsonaro ao se referir às histórias dos mortos pela covid na CPI) é que Jair deixou milhões passando fome antes que isso acontecesse.

Auxílio Brasil não é Bolsa Família turbinado, mas ação para compra de votos

O Auxílio Brasil, da forma como foi apresentado ao Congresso Nacional, não é um Bolsa Família turbinado, mas seu primo macabro, proposto de forma atabalhoada e incompleta visando a fins eleitoreiros. Mesmo o aumento perseguido por Jair Bolsonaro de R$ 190 para R$ 400, bancado parcialmente com dinheiro que pode vir de calotes em dívidas com aposentados, deve durar o tempo de uma reeleição, ou seja, até o final de 2022.

No afã de passar o trator sobre uma das principais bandeiras da administração de Lula, seu concorrente direto, o presidente está mudando a natureza do programa, o que vai influenciar em sua capacidade de ajudar pessoas a permanecerem fora da miséria. Seria o equivalente ao PT implodir os resultados do Plano Real só para não ver os tucanos na presidência novamente.

Primeiro, é um absurdo que a criação do Auxílio Brasil no lugar do Bolsa Família tenha chegado ao Congresso Nacional na forma de Medida Provisória, reservada a ações urgentes, castrando o debate com a sociedade. Bolsonaro teve uma pandemia inteira para bolar um projeto e, agora, propõe algo a toque de caixa, o que só reforça seu caráter eleitoreiro. O governo justifica que a fome da pandemia deixou tudo mais urgente. Se o presidente se preocupasse realmente com isso, não teria suspendido o auxílio emergencial de janeiro a abril.

Segundo, a pressa de Bolsonaro em melhorar seus índices de popularidade fez com que a MP 1061/2021 tivesse mais buracos que uma esponja. Não há referências ao valor das linhas de extrema pobreza e pobreza, o que significa que você não identifica nem seu público-alvo. Não diz de onde virão os recursos – a equipe econômica estuda formas de pedaladas. Para 2022, ano de eleição, ele quer entregar um Auxílio Emergencial de R$ 300, mais um complemento de R$ 100 de forma temporária. Considerando que parlamentares não abrirão mão de emendas, isso só será possível com cambalachos para contornar a regra do teto de gastos públicos.

O teto não é elogiável. Mas ele não pode ser ignorado por conveniência: ou vale para todo mundo ou para ninguém. Permitir que ele pedale nas contas públicas para poder ganhar a eleição, é ilegal e imoral. Bolsonaro quer dar um cambau no pagamento de dívidas do governo para poder financiar o Auxílio Brasil. Como metade dos precatórios vêm de erros no cálculo de aposentadorias e salários, muito cidadão vai ficar a ver navios. Ou seja, ele vai tirar de pobres para dar a paupérrimos, o que prometeu não fazer.

Proposta de aplicativo para inclusão de famílias vai repetir problemas do auxílio emergencial

Terceiro, as entrevistas com famílias candidatas ao Bolsa são feitas por entrevistadores do Cadastro Único (a gigantesca base de dados que é usada por dezenas de programas sociais para famílias em vulnerabilidade) no município, ou seja, na ponta. O governo quer, contudo, privilegiar a entrada dos mais necessitados no CadÚnico através de um aplicativo, o que dificultaria o acesso a milhões e geraria fraudes – problema que também aconteceu com a entrada no auxílio emergencial.

Os mais conectados conseguiram acesso, mas a população em situação de rua, por exemplo, passou dificuldades e muitos ficaram a ver navios.

Substituindo entrevistadores capacitados por um formulário em um aplicativo, você reduz a capacidade de atender de verdade às famílias, abandonando a capilaridade que garante o sucesso do programa e desumanizando-o.

Quarto, o Auxílio Brasil funcionará como um conjunto de programas, cada um contribuindo com uma parte dos recursos. Um deles, prevê o pagamento de creches particulares pelo governo em nome da família beneficiada quando não houver vagas no sistema público para suas crianças. O sistema é semelhante ao de "voucher", tendo que a família comprovar ampliação de renda ou vínculo formal de emprego para se manter no programa. Mais racional seria o governo federal repassar os recursos às prefeituras, que são responsáveis por garantir as creches, ao invés de gerar um sistema confuso, que pode acabar custando mais caro ao país só para ganhar pontos com o eleitor.

Outra ação, a Inclusão Produtiva Rural, prevê que agricultores pobres doem alimentos a pessoas em situação de vulnerabilidade. Considerando que, não raro, a produção não dá nem para o sustento, fica como? O governo promete que o programa vai garantir inclusão produtiva, mas nada no programa aponta isso. Tirar de quem já produz para a sobrevivência?

Prioridades seriam zerar a fila, reajustar o benefício, simplificar regras

Caso Bolsonaro quisesse colher frutos eleitorais sem desmontar as boas coisas do programa, ele poderia simplificar as regras, zerar a fila de espera (o Consórcio Nordeste estima em 2,2 milhões de famílias no aguardo pelo benefício) e aumentar o seu valor médio, desatualizado, hoje em R$ 190. Poderia até rebatizá-lo de "Talkey Brasil", não importa o nome, desde que continuasse sendo um programa eficaz por retirar milhões da miséria. Atualizá-lo é uma coisa, enfraquecê-lo é outra.

Bolsonaro nunca entendeu o Bolsa Família. Acha que é distribuição de dinheiro pura e simples. Não compreende que a transferência condicionada à frequência escolar e à vacinação dos filhos e um atendimento humanizado por meio da assistência social eleva a qualidade de vida, permitindo uma porta de saída do programa. Não vê que esmagadora maioria dos beneficiários do Bolsa trabalham sim e não querem ficar na miséria a vida toda, mas precisam de uma ajuda para sobreviver enquanto isso não é possível

Pelo contrário, Jair sempre xingou o programa. Por exemplo, quando deputado federal disse, em entrevista ao jornalista Carlos Juliano Barros, em 2015, que quem recebe o Bolsa Família não faz nada da vida, só produz filhos para o Estado custear.

"Uma política de planejamento familiar, acho que só eu falo aqui nessa casa [Câmara dos Deputados]. O cara tem três, quatro, cinco, dez filhos e é problema do Estado, cara. Ele já vai viver de Bolsa Família, não vai fazer nada. Não produz bem, nem serviço. Não produz nada. Não colabora com o PIB, não faz nada. Fez oito filhos, aqueles oito filhos vão ter que creche, escola, depois cota lá na frente. Para ser o que na sociedade? Para não ser nada", afirmou.

Hoje presidente, Bolsonaro percebeu que não podia simplesmente acabar com o auxílio emergencial, por mais que os valores de R$ 150, R$ 250 e R$ 375 pagos atualmente sejam apenas uma sombra dos R$ 600/R$ 1.200 do primeiro semestre do ano passado, se quiser ter chances de reeleição. Decidiu colocar algo no lugar do Bolsa. E, aproveitando, destruir o que ele tem de melhor, por raiva, ignorância, por ideologia.

Dessa forma, transforma o programa naquilo que ele sempre criticou: distribuição de dinheiro com fins eleitorais.

Mas por que passar por cima do que estava funcionando ao invés de aprimorar?

Parte da resposta foi dada pelo próprio Bolsonaro em um jantar com lideranças conservadoras, em Washington DC, nos Estados Unidos, em 17 de março de 2019: "o Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer". O povo, nesse processo, é apenas um detalhe.


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