29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

O Consultório na Rua efetivamente produziu acesso

Publicado em 19/10/2021 12:00 -

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De cara, o psicólogo Marcelo Pedra tem uma observação a fazer quando o assunto é Consultório na Rua: não se trata de um programa, mas de uma equipe que integra a Política Nacional de Atenção Básica e que desde 2011 vêm garantindo o acesso ao cuidado e à cidadania a pessoas em situação de rua. Feito o alerta, uma entrevista com o coordenador do Núcleo de Pesquisa Pop Rua (Nupop), da Fiocruz Brasília, segue como um convite para debater a trajetória dessa estratégia de saúde pública. Diferentemente do que costumam pensar os desavisados, não deve ser vista como uma equipe de busca ativa que vai até essa população apenas para encaminhá-la a uma unidade de saúde. “É uma equipe de saúde da família como a que atende a mim e a você”, faz questão de ressaltar Marcelo.

Como uma equipe de atenção integral, atua promovendo saúde, numa dinâmica que vai desde a vigilância até a vacinação, cuidando da criança ao idoso. Está tanto no território, construindo vínculos, pensando diagnósticos e desenvolvendo todo o processo de cuidado — em muitos casos, até mesmo os exames preventivos acontecem a céu aberto — quanto na unidade básica de saúde realizando os atendimentos que chegam por demanda espontânea ou a partir do trabalho na rua. Também cabe a ela pensar estratégias de melhoria na qualidade de vida dos usuários, o que implica em construir uma articulação intersetorial, seja com outras clínicas e serviços — como os que são ofertados pela rede do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) — seja com atores diversos que agem no território.

Para Marcelo, o Consultório na Rua efetivamente produziu acesso. “Mesmo onde esse acesso é difícil, ainda assim ele produziu visibilidade para a população em situação de rua. As pautas ficaram mais visíveis, ganharam mais luz, ganharam mais foco”, diz. O pesquisador pode ficar horas falando sobre o tema que o mobiliza desde que começou a atuar como psicólogo na primeira equipe de Consultório na Rua do Rio de Janeiro. Depois disso, em 2012, aceitou um convite do Departamento de Atenção Básica (Dab) do Ministério da Saúde, onde passou a fazer a coordenação nacional das equipes de Consultório na Rua. Recentemente, em elogiada tese de doutorado defendida em abril, Marcelo visitou a literatura científica, analisou cerca de 100 mil prontuários eletrônicos e entrevistou trabalhadores, gestores e usuários a fim de discutir objetivos, resolutividade e critérios de monitoramento e avaliação das equipes em todo o país.

Nesta entrevista por telefone concedida à Radis, ele fala dos achados de sua pesquisa, faz um balanço de uma década de Consultório na Rua, discute os desafios das equipes e deixa claro por que elas são consideradas “produtoras de cidadania” para uma população ainda invisibilizada e em geral excluída das políticas públicas.

 

Quem são os brasileiros em situação de rua hoje? Qual o perfil dessa população?

Primeiro, acho importante a gente falar em perfis, no plural. Mas, de verdade, não acho que “perfil” seja o melhor termo, sobretudo agora com a pandemia. Porque nós estamos falando de pessoas que estão em condições de vulnerabilidade, de pessoas cuja situação econômica e a fragilidade dos vínculos da vida em sociedade se radicalizaram muito. Cada vez mais a gente se afasta de uma leitura inocente e pouco informada, que acabava criando um perfil muito caricato, de que quem está em situação de rua tem problema com droga ou problema familiar ou somente de falta de grana. É preciso ampliar essa ideia. Acho que a vulnerabilidade se dá pelo território, porque nós vamos ter o egresso do sistema prisional, a população LGBTQIA+, o trabalhador precário e suas famílias — agora, cada vez mais, por conta da covid. Essas são vulnerabilidades distintas, mas que acabam ocupando a rua. Ou seja, a rua vai agregando uma população que já é vulnerabilizada por sua condição econômica, por sua condição educacional, por ser mulher, por ser negro. Então, é um fenômeno bastante complexo para a gente seguir pensando em perfis. Mas, em que pese que isso venha mudando muito com a pandemia, a gente ainda está falando da população predominantemente negra, de baixa escolaridade, com cada vez mais mulheres.

E como atua uma equipe de Consultório na Rua junto a essa população?

O trabalho de uma equipe de Consultório na Rua se divide em três grandes campos: na rua, na unidade básica de saúde e nas instituições — públicas ou não — da rede. Ela é uma equipe de saúde da família como a que atende a mim e a você; uma equipe de atenção integral cuja atuação vai desde a promoção de saúde, passando pela vigilância e vacinação, até o cuidado da pessoa que tem problemas com álcool e outras drogas. Mas a gente confunde o funcionamento de uma equipe de Consultório na Rua como se fosse uma equipe de busca ativa, que deveria apenas ir até as pessoas em situação de rua para acessar essas pessoas e encaminhá-las para uma unidade de saúde. Essa definitivamente não é a função do Consultório na Rua. Ela é uma equipe que vai para rua fazer o vínculo, como eu faço quando entro numa unidade básica de saúde. Ela é uma equipe de atenção integral, que vai cuidar da criança ao idoso com todos os tipos de problemas e agravos de saúde. Ela vai fazer todo o processo de cuidado: pensar no diagnóstico, pensar uma terapêutica e cuidar na rua, se assim for necessário. Tem um conjunto de ações que acontecem na rua e também existem as limitações, portanto, precisam de algum grau de tecnologia ou de algum tipo de amparo da unidade básica de saúde para os atendimentos que vão acontecer nas unidades. Então, é fundamental construir esse vínculo da rua com a unidade. Um outro elemento importante para as equipes de Consultório na Rua é o trabalho de aproximação com as instituições da rede SUAS [Sistema Único de Assistência Social], em especial, sobretudo pra gente fazer o que a gente chama de saúde de trabalho colaborativo ou matriciamento, que é a ideia de um trabalho compartilhado entre a equipe SUS e a equipe SUAS.

Por que ainda é comum associar o Consultório na Rua a uma política de saúde mental ou de mero combate às drogas, quando se trata de uma equipe de cuidado integral?

Acho que é um conjunto de coisas. Uma das questões é moral. O Brasil ainda é um país muito moralizado e essa moral está inclusive nos trabalhadores, infelizmente. Para muitos, a rua ainda é sinônimo de droga. Mas tem também outro fator que pesa para responder à sua pergunta: os cursos de medicina, enfermagem, psicologia, serviço social, odontologia não entregam o trabalhador preparado para trabalhar no SUS. E para trabalhar no SUS e com uma população vulnerável, menos ainda. Então, é esse somatório de coisas: tem o fator moral e tem o fato de a universidade entregar pessoas muito frágeis na clínica. Em minha pesquisa, olhei quase 100 mil prontuários e, pelo que encontrei nesses prontuários eletrônicos formais, parece que na rua só tem problema com álcool e droga, no máximo, problema de saúde mental. Se a pessoa responde “sim” à pergunta “Você é usuário de droga?”, pronto, acabou a escuta, nenhum enfermeiro vai perguntar mais se ela é diabética, não vai mais querer aferir a pressão, imediatamente ele é capturado moralmente por essa palavra. O que estou querendo demarcar aqui é algo que, para mim, é muito importante. A função clínica de uma equipe de Consultório na Rua quando encontra alguém que é usuário de crack, por exemplo, é cuidar dele no Consultório na Rua; não é meramente encaminhar para o Caps [Centro de Atenção Psicossocial]. O Consultório na Rua é política de atenção primária, não é política de saúde mental.

Dez anos depois, que balanço podemos fazer da implementação das equipes de Consultório na Rua?

Acho que são muitos os ganhos. Até então nós tínhamos os Consultórios “de” Rua na Saúde Mental. A criação das equipes de Consultórios “na” Rua é fruto da luta dos movimentos sociais. Foi sobretudo a provocação do Movimento Nacional de População em Situação de Rua o grande motor para dizer que a saúde da população em situação de rua não é só saúde mental, é saúde integral. Naquela altura, em 2011, já é um grande ganho isso ser incorporado na atenção básica, não como um programa, mas como uma equipe que está dentro da Política Nacional de Atenção Básica. Depois, tem um segundo movimento importante, quando a gente dobra o financiamento com a portaria de 2014. De um ano para o outro, praticamente dobrou o número de equipes criadas. Acho que o fortalecimento financeiro também é um reconhecimento do diferencial e do lugar de prestígio de uma política pública. Sem dúvida nenhuma, essa relação política pública e sociedade civil vem se fortalecendo e os Consultórios na Rua são um vetor muito forte nesse sentido. Outro avanço importante foi a relação com os serviços da rede SUAS. Então, o balanço no sentido do que se produziu de positivo foram muitas coisas. Agora, a palavra que a gente mais pode citar como ganho a partir dessa política é “acesso”. O Consultório na Rua efetivamente produziu acesso. Mesmo onde esse acesso é difícil, ainda assim ele produziu visibilidade para a população em situação de rua. As pautas ficaram mais visíveis, ganharam mais luz, ganharam mais foco. E isso se fez ainda mais claro nesses últimos tempos de pandemia, quando o acesso da população em situação de rua à vacinação é praticamente 100% feito pelas equipes de Consultório na Rua. Porque são elas que têm o vínculo, a continuidade no cuidado e o respeito dessa população.

E quais os maiores desafios?

Dar solidez a isso, seguir com a garantia de mais acesso, uma maior relação com a rede SUAS, uma maior relação com a sociedade civil, no sentido de escutar e conseguir viabilizar políticas públicas para o que a sociedade civil demanda. E principalmente tornar a equipe de consultório na rua cada vez mais resolutiva. Resolutividade e estratégia de monitoramento e avaliação são os grandes desafios.

O que significa, na prática, uma equipe mais resolutiva?

Significa que, se a pessoa é cardíaca, ela vai ouvir: “Nós somos a sua equipe e vamos te apresentar uma enfermeira, uma assistente social, uma médica e essa equipe vai cuidar da sua cardiopatia, esteja você onde estiver”. Se a outra pessoa está grávida, a sua equipe vai fazer o pré-natal da melhor maneira e, se não conseguir fazer as sete consultas de pré-natal, vai fazer tudo de melhor para que ela saia já encaminhada, conhecendo a maternidade onde vai poder ter o seu filho e fazer todo o planejamento familiar. Se você é hipertenso, nós vamos cuidar da sua hipertensão arterial. Você tem problema com álcool e quer, de alguma maneira, melhorar a sua relação com o álcool, mesmo que não queira parar, mas você quer ter mais qualidade de vida, estamos aqui para dar mais qualidade de vida para você. Então, nós vamos pensar estratégias de melhoria de qualidade de vida e, se melhoria de qualidade de vida tiver a ver, por exemplo, com trabalho e renda, nós vamos estar articulados com o Centro de Atendimento ao Trabalhador (Cat) ou com o Centro de Referência da Assistência Social (Cras) e com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), com o Centro Pop. A gente vai seguir cuidando de você e vamos apresentar você para os colegas da assistência social, da economia solidária. A sua escolaridade é muito baixa e para conseguir um emprego melhor precisa de uma escolaridade maior, nós vamos estar articulados para ver alguma possibilidade de você fazer o EJA [Educação de Jovens e Adultos]. Então, essa grande rede de conexão eu acho que é nosso maior desafio. Tudo isso é o que estou chamando de resolutividade.

Esse nível de resolutividade ainda está distante de ocorrer?

Ainda estamos longe, não porque falte uma agenda política, mas porque é uma agenda complexa. O entorno do Sistema Único de Saúde é frágil e as equipes de Consultório na Rua não são diferentes das outras equipes de atenção primária. Ainda é preciso construir uma agenda de fortalecimento da atenção primária.

Eu quero poder fazer essa pergunta diretamente para as pessoas em situação de rua, mas na sua opinião, como pesquisador, o que significa o Consultório na Rua para essa população?

Em duas palavras, acesso e vínculo. Acho que isso é o que mais fica: a possibilidade de acesso ao SUS e o vínculo. As equipes são consideradas por essa população como produtores de cidadania. E isso é muito importante. Por exemplo, quando as equipes de Consultório na Rua fazem o cartão SUS de uma pessoa em situação de rua, isso tem um sentido, para alguns, muito maior do que ter um CPF ou um documento de identidade. Porque, a depender do tempo que se está na rua, o cpf perde todo o sentido. Então você ter um documento que liga você a uma equipe que você encontra na rua, que cuida de você, que pergunta por você, é muito importante. Como já fui gestor por muitos anos, fica aqui o vício da gestão: eu vou querer sempre que as equipes melhorem, então, às vezes, eu posso até ser mais duro do que as equipes merecem. Mas o fato é que esses trabalhadores são uma grande possibilidade de pertencimento para essa população.

Para concluir, queria falar um pouco da sua tese defendida este ano no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj). Que resultados principais nós podemos destacar?

Eu fiz três movimentos para ver como a ideia de objetivo, resolutividade e critérios de monitoramento e avaliação aparecem na literatura e na fala dos trabalhadores e no e-Sus. Como resultados, a primeira grande coisa que eu queria destacar é a agenda da mulher. Precisa criar uma agenda para a mulher em situação de rua, em todas as formas, enquanto narrativa, enquanto campo de visibilidade e enquanto agenda clínica mesmo. Um outro movimento que é muito importante é o fortalecimento de uma agenda de atenção primária, porque a agenda da saúde mental ainda ocupa um espaço muito grande. Nesses dois aspectos, eu também estou querendo destacar essa agenda da resolutividade. É fundamental que a gente saia de um discurso de sensibilizar o trabalhador para a ideia de responsabilidade e de instrumentalização. Os trabalhadores da atenção primária, dos Caps, os das outras equipes, além do Consultório na Rua, precisam estar instrumentalizados no sentido de receber orientações, amparo e uma qualidade técnica para poder lidar com as situações específicas da situação de rua. A pesquisa vem trazendo muitas coisas, mas acho que valorizar essas agendas — agenda da mulher e a agenda da ampliação das questões de saúde mental, sobretudo de saúde mental na atenção primária como um todo — aumentar a resolutividade, fazer o deslocamento de uma agenda de sensibilizar para uma agenda de responsabilizar pessoas, esses são os grandes marcos trazidos pela tese. Ou seja: deslocar lugares. Para mim, esse é o grande ponto.


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