29/03/2024 - Edição 540

Poder

Há limites para a esculhambação?

Publicado em 15/10/2021 12:00 -

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O que tem a ganhar o país com a indicação de André Mendonça para ministro do Supremo Tribunal Federal, na vaga aberta por Marco Aurélio Mello, que se aposentou?

Nada, simplesmente nada. A indicação se deve unicamente à dívida contraída pelo presidente Jair Bolsonaro com um grupo de pastores de várias denominações evangélicas que o apoiam.

Mendonça é “terrivelmente evangélico”, como atestam os pastores, e Bolsonaro está convencido. Seu currículo como jurista é pobre, pouco ou nada acrescentando ao tribunal.

Mas sua subserviência a Bolsonaro, exemplar. Demonstrou-a quando substituiu no Ministério da Justiça o ex-juiz Sergio Moro, que resistiu à intervenção de Bolsonaro na Polícia Federal.

Ali, Mendonça comportou-se não como ministro da Justiça do Brasil, mas como ministro da Justiça do presidente da República, acatando sem discussão todas as suas ordens.

Fechou os olhos à produção de um dossiê sobre policiais antifascistas, como se crime fosse ser antifascista e não fascista. Abusou da Lei de Segurança Nacional contra desafetos do governo.

Se Mendonça virar ministro do Supremo, rezará na abertura das sessões, almoçará com Bolsonaro uma vez por semana e votará contra pautas progressistas. Quem o disse? Bolsonaro, ora.

Nem o ministro Kássio Nunes Marques, que deve o emprego ao presidente, submeteu-se até aqui a tais provas de vassalagem. Afinal, Igreja e Estado são coisas que não se misturam no Brasil.

Gilmar Mendes não é ministro porque é católico a ponto de gostar de ouvir a missa em latim. Luís Roberto Barroso não é ministro porque é judeu, apesar de acreditar em curas do ex-João de Deus.

Se o presidente da Câmara engaveta 130 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, o presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado pode engavetar a indicação de Mendonça.

Os dois talvez não o façam pelos melhores motivos, mas têm esse poder. E, enquanto tiverem e o exercerem sob o peso de todo tipo de pressão, não há muito que fazer.

No caso de David Alcolumbre (DEM-AP), presidente da Comissão, bem o sabe Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, que sem poder tentou barrar a instalação da CPI da Covid-19.

CPI é direito da minoria parlamentar consagrado na Constituição. Satisfeitas as exigências de praxe, deve ser instalada. A da Covid só foi porque o Supremo mandou e Pacheco, contrariado, obedeceu.

O Supremo não pode ser usado pelo presidente da República como balcão de negócios políticos. Há limites para a esculhambação.

Guerra de anões

A indicação do substituto de Marco Aurélio Mello converteu-se no mais avacalhado processo de seleção de um ministro do STF da história republicana. Inaugurou-se uma guerra de anões.

De um lado, Davi Alcolumbre, sem dimensão política para presidir a Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Do outro, Bolsonaro, sem estatura para presidir a República. No meio, André Mendonça, um candidato à toga que encolhe para escapar do tiroteio.

Bolsonaro acusou o ex-aliado Alcolumbre de torturar um chefe de família ao postergar a sabatina de Mendonça. A pretexto de defender seu escolhido, o capitão transformou um sujeito "terrivelmente evangélico" num personagem incrivelmente vassalo.

Bolsonaro antecipou os votos que seu ex-ministro da Justiça e ex-advogado-geral da União dará no Supremo se sua nomeação for confirmada. Votará "contra o marco temporal" na demarcação de terras indígenas, contra as "pautas progressistas". "Nas pautas econômicas ele estará perfeitamente alinhado conosco", avisou.

Outros presidentes já vestiram a toga em auxiliares diretos. Mas nenhum foi tão explícito quanto Bolsonaro. A exemplo de Mendonça, Gilmar Mendes e Dias Toffoli também ocupavam o posto de advogado-geral da União quando foram indicados para a Suprema Corte por FHC e Lula. Quando foi escolhido por Michel Temer, Alexandre de Moraes era ministro da Justiça.

Os patronos sempre esperam algum tipo de fidelidade a posteriori. Bolsonaro exige o compromisso prévio de lealdade. E expõe os acertos sob refletores. São muitos os processos judiciais e as investigações que encostam em Bolsonaro, na sua família e nos seus aliados. Se prevalecer sobre a tortura de Alcolumbre, Mendonça integrará a Segunda Turma do Supremo.

Tramita nessa turma, por exemplo, recurso do primogênito Flávio Bolsonaro para assegurar foro privilegiado no caso da rachadinha. Presidente da turma, Nunes Marques, toga de estimação de Bolsonaro, adiou o julgamento. É como se o primeiro indicado de Bolsonaro para o Supremo esperasse pela chegada do futuro colega terrivelmente vassalo. Atingiu-se um grau inédito de degradação.

Briga entre Alcolumbre e Bolsonaro pede nocaute

A desavença entre Davi Alcolumbre e Bolsonaro em torno da indicação de André Mendonça para o STF atingiu um estágio crítico. Tornou-se um desses conflitos que precisam ser levados às últimas consequências. Até ontem, Alcolumbre e Bolsonaro eram aliados. Agora, trocam sopapos retóricos. A essa altura, todo brasileiro de bem deveria exigir que a briga seja levada às últimas consequências.

Armou-se o ringue na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. No comando, Alcolumbre mantém no freezer há três meses a sabatina de André Mendonça, o "terrivelmente evangélico" que Bolsonaro deseja enviar ao Supremo. O senador prefere o nome de Augusto Aras. O presidente insinuou que está sendo chantageado para desistir da indicação de Mendonça em troca da resolução dos seus problemas na CPI da Covid. Disse que Alcolumbre teve do seu governo "tudo o que foi possível".

Ao responder, o senador declarou em privado que também "fez muito" por Bolsonaro quando presidiu o Senado. Em nota, Alcolumbre declarou que o chantageado é ele. "Não aceitarei ser ameaçado, intimidado, perseguido ou chantageado com o aval ou a participação de quem quer que seja", escreveu o senador.

Nesse roteiro de intrigas e perfídias, o brasileiro em dia com suas obrigações tributárias tem o direito de conhecer o "tudo" que Bolsonaro fez por Alcolumbre e o "muito" que o senador entregou em troca. Chantagem é uma palavra forte. Significa pressão exercida por alguém para obter dinheiro ou favores mediante ameaça de revelação de fatos criminosos ou escandalosos. Não é razoável que o presidente da República e o chefe da principal comissão do Senado utilizem esse tipo de linguajar e fique tudo por isso mesmo. Flávio Bolsonaro organiza um encontro pacificador entre Alcolumbre e o presidente. Essa briga não pede conciliação, e sim um nocaute.


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