08/05/2024 - Edição 540

Judiciário

Roubou miojo por fome? Ladra. Permitiu 600 mil mortes por covid-19? Mito

Publicado em 12/10/2021 12:00 -

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Após ter sido presa por furtar dois miojos, dois refrigerantes e um refresco em pó, no dia 29 de setembro, em um supermercado de São Paulo, e ter seu pedido de liberdade negado duas vezes pela Justiça, uma mulher teve finalmente sua prisão revogada pelo ministro Joel Paciornik, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no último dia 13.

Para manter uma mãe de cinco filhos, desempregada, em situação de rua e que roubou por estar com fome no xilindró afirmou-se que ela não era ré primária. O que faz sentido para o naco da população que acredita que a proteção aos dois miojos é um princípio acima da garantia da dignidade humana na escala de valores da civilização.

O caso dessa mãe não é o primeiro, nem será o último. No dia 26 de abril deste ano, Yan e Bruno foram mortos após terem furtado pacotes de carne no supermercado Atakadão Atakarejo, no bairro de Amaralina, em Salvador. Eles teriam sido entregues a traficantes pelos seguranças da empresa, sendo torturados e executados a tiros.

Em julho de 2019, um jovem negro foi despido, amordaçado e chicoteado por dois capatazes após tentar furtar barras de chocolate em uma unidade do supermercado Ricoy, na periferia de São Paulo. O caso ganhou as redes sociais após as imagens gravadas pelos próprios algozes serem divulgadas. Tipo um Abu Ghraib tupiniquim.

Sueli foi condenada pelo roubo de dois pacotes de bolacha e um queijo minas em uma loja. Ademir, no desespero, furtou coxinhas, pães de queijo e um creme para cabelo em um supermercado. Foi levado a um banheiro e espancado até a morte. Valdete foi condenada a dois anos de prisão em regime fechado por ter roubado caixas de chiclete. Maria Aparecida foi mandada para a cadeia por ter furtado um xampu e um condicionador em um supermercado – perdeu um olho enquanto estava presa.

O princípio da insignificância pode ser aplicado quando o caso não representa riscos à sociedade e não tenha causado lesão ou ofensa grave. Por exemplo, roubar miojo para aplacar a fome. Tipo de coisa que não deveria levar à cadeia. Seja pela inutilidade da punição, pelo seu custo ou mesmo pelo déficit de humanidade que isso representa.

O Supremo Tribunal Federal vem desconsiderando furtos de pequeno valor como crime. Essa conduta não gera uma obrigação para todos os juízes e desembargadores de instâncias inferiores, mas sinaliza o que pode acontecer com o caso se ele subir às cortes superiores. Até lá, a mulher de 41 anos, mãe de cinco, ficou detida por produtos no valor de R$ 21,69.

Não creio que prender alguém por conta de dois miojos vai ajudar em sua reinserção social ou mesmo evitar novos furtos, o que mostra uma sanha mais punitiva do que educativa. Mesmo a abertura de um processo é, a meu ver, acintoso, pois força o Estado a gastar tempo, recursos humanos e dinheiro em algo cuja solução passaria pela geração de empregos e criação de estruturas de assistência social.

Ninguém está defendendo quem erra ou comete crimes. O que está em jogo aqui é que tipo de sociedade nos tornamos ao acreditarmos que punições severas para coisas ridículas (mesmo reincidentes) têm função pedagógica. Até porque se uma família passava fome é porque o Estado falhou retumbantemente em sua responsabilidade de garantir um mínimo de dignidade a ela.

Tendo como base nossa tradição e legislação, o caso serve para nos lembrar que a integridade do patrimônio segue acima da dignidade da vida. E que não gostamos de Justiça, mas de uma boa vingança mesmo.

O fascinante é que nosso sistema é estruturado de forma a afastar do convívio social quem rouba dois pacotes de miojo. Mas manter no poder o responsável por milhares de mortes em uma pandemia que ainda não terminou.

O epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, estima que mais de 400 mil das 600 mil mortes poderiam ter sido evitadas caso Jair Bolsonaro não tivesse promovido tratamentos e remédios ineficazes, atacado o isolamento social e o uso de máscaras, divulgado que vacinas transformariam pessoas em jacarés e matam adolescentes.

A gravidade das evidências reunidas contra o presidente da República é sólida o suficiente para levá-lo ao banco dos réus por crimes contra a humanidade, enquanto o que foi cometido por todos os citados neste texto demanda, no máximo, uma repreensão. Contudo, muitos como eles são presos diariamente e Bolsonaro segue no cargo, livre para continuar sua política de morte.

Pois não é todo mundo que tem um procurador-geral da República como fiel escudeiro e um presidente da Câmara dos Deputados como sócio.

Construímos um país no qual um rico pode deixar de pagar milhões em impostos mandando para paraísos fiscais que o Estado e parte da sociedade vai passar a mão na cabeça dele, afirmando que está agindo dentro da lei para evitar a pesada carga tributária. Esse mesmo Estado acha que o lugar de quem roubou miojo para matar a fome é a cadeia e que o lugar de quem permitiu mais de 600 mil mortes é o Palácio do Planalto.

Precisamos urgentemente refundar o Brasil.

A fome e o salário de rei

“Reincidência” foi a palavra que o desembargador Julio Caio Farto Salles mais utilizou em voto como relator, especificamente sete vezes, para negar o pedido de liberdade provisória. O caso foi revelado pelo site Ponte em 1 de outubro e a prisão aconteceu em 29 de setembro.

Foi a segunda vez que o Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou o pedido da Defensoria Pública, que requisitou que a mulher respondesse ao processo em prisão domiciliar, já que é uma alternativa prevista no artigo 318 Código de Processo Penal e ratificada em determinação do STF para gestantes ou mães com filhos de até 12 anos, para crimes sem violência ou grave ameaça. A 6ª Câmara de Direito Criminal ratificou, em 7 de outubro, os argumentos dados pelo promotor Paulo Henrique Castex e pela juíza Luciana Menezes Scorza, que enfatizaram que a mulher praticou furtos outras vezes, que a prisão preventiva (sem tempo determinado) se faz necessária para garantir a ordem pública e por ela representar um “risco à sociedade”, além de ter informado que os filhos estavam sob os cuidados da avó.

No voto do acórdão (decisão de um grupo de magistrados), acompanhado pelos desembargadores Eduardo Abdalla e Ricardo Tucunduva, Farto Salles escreveu que a mulher “se encontrava em cumprimento de pena em regime aberto quando do cometimento do delito em questão, tudo a desvendar índole indiscutivelmente voltada à delinquência ou persistência na senda do crime, revelando-se a segregação imprescindível para se obstaculizar risco real de novas recidivas, considerado o caráter nocivo próprio daqueles que fazem dos delitos seu modo de vida”.

Na sua decisão, o desembargador ainda justificou que “fosse a dificuldade financeira, por si só, suficiente para delinear o estado de necessidade, a maior parte da população receberia um bill de indenidade [garantia de impunidade] voltado à prática dos mais diversos delitos, algo temerário”. E que a mulher não poderia se beneficiar da prisão domiciliar por causa da reincidência e que ela mesma seria a culpada de permanecer longe dos filhos pelo crime que cometeu. “Ainda a respeito, não se demonstrou a imprescindibilidade da soltura para cuidar das crianças, tarefa igualmente possível aos avós ou outros familiares (cuja inexistência não se cogitou, indicando-se, ao contrário, estar a prole sob os cuidados de sua genitora fls. 39), cabendo salientar haver a própria ré provocado seu afastamento dos menores ao se envolver, em tese, com a prática de novo ilícito”.

Segundo o site do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Salles recebe salário bruto de R$ 78.309,32. Com os descontos, o salário que cai na sua conta é de R$ 59.001,52.

À Ponte, na primeira matéria sobre o caso, o defensor público Diego Polachini argumentou que “o artigo [sobre a prisão domiciliar para mães] não exige a demonstração dos cuidados da criança”. Na petição, ele destacou reportagem do jornal Extra que mostrou pessoas garimpando restos de ossos e carne rejeitados em supermercados do Rio de Janeiro.


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