29/03/2024 - Edição 540

Especial

Vergonha

Publicado em 24/09/2021 12:00 -

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De onde não se espera nada é que não vem nada mesmo. Contrariando os otimistas, que acreditavam que Jair Bolsonaro usaria seu discurso na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas para vender uma versão mais palatável de seu governo, ele fez uma live de luxo voltada ao seu público. A diferença é que esta custou muito mais ao contribuinte. E não teve xingamentos, como aquelas às quintas-feiras.

Bolsonaro não dialogou com o mundo, mas produziu mais um vídeo para os 15%, segundo o Datafolha, que acreditam em tudo o que ele diz. E aproveitou os holofotes da imprensa brasileira e das redes sociais para produzir uma peça para sua campanha eleitoral que, ilegalmente, já está em andamento. O discurso teve conteúdo semelhante aos dos comícios que ele tem realizado pelo país.

Logo no início, soltou uma metralhadora ideológica para excitar os seus seguidores e mostrar que o "mito está on". Apesar dos escândalos na compra de vacinas, disse que o Brasil não registra corrupção. Mandou um salve para os religiosos e os militares. Fantasiou que o país estava à beira do socialismo e que o país servia a governos comunistas antes dele. Afirmou que a família tradicional é o "fundamento da civilização", excluindo qualquer outro modelo que não seja pai, mãe e filhos. Disse que os refugiados afegãos "cristãos" são bem-vindos.

Mentiu que as suas micaretas golpistas de 7 de setembro foram as maiores manifestações de nossa história. Mentiu que pagou um auxílio emergencial de 800 dólares (mais de R$ 4200, em valores de hoje). Mentiu ao afirmar que a economia demonstra "um dos melhores desempenhos entre os emergentes". Mentiu ao dizer que seu governo "recuperou a credibilidade externa" do Brasil. Vale lembrar que o país, sob sua gestão, tornou-se irrelevante geopoliticamente e um pária do ponto de vista ambiental e sanitário, pelo aumento na destruição da Amazônia e quase 600 mil mortes por covid. E devido à instabilidade política que ele mesmo provoca, há insegurança para investidores.

No discurso, Bolsonaro terceirizou a sua responsabilidade pela alta da inflação a governadores e prefeitos, afirmando que ela é consequência do isolamento social, repetindo o mantra que usa no Brasil. Nada sobre o impacto do aumento da gasolina (consequência do aumento do dólar, diretamente relacionado à instabilidade que ele provoca) e da energia elétrica (causada pelos erros de sua gestão diante da crise hídrica) nesse processo.

Ao abraçar a cloroquina na ONU, Bolsonaro reforçou o Brasil como pária sanitário

Mas o auge foi o momento em que o presidente defendeu a farsa do "tratamento precoce" – a adoção de remédios sem eficácia para a covid-19, como cloroquina, ivermectina e azitromicina. E ainda teve a cara de pau de dizer que "a história e a ciência saberão responsabilizar a todos" os que não foram pelo mesmo caminho.

"Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso off-label. Não entendemos porque muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial", afirmou.

Bolsonaro também disse que, desde o início da pandemia, o seu governo apoiou "a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina".

Ao contrário do CFM, que ignorou a ciência para ajudar o presidente, a Sociedade Brasileira de Infectologia, a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Organização Mundial de Saúde (OMS), ou seja, quem representa o pessoal que está na linha de frente, afirmam que não há tratamento precoce contra a covid.

No Brasil, o presidente vê um novo escândalo estourar envolvendo um experimento do plano de saúde Prevent Senior, que usou pacientes como cobaias para testar a eficácia da cloroquina, sem que eles tivessem dado seu consentimento. Denúncias de médicos apontam que os resultados foram manipulado, omitindo mortos que usaram cloroquina. O presidente utilizou esses dados para justificar a distribuição em massa do medicamento.

E, em janeiro deste ano, enquanto pacientes de covid-9 sufocavam em Manaus por falta de oxigênio hospitalar, o governo tentou empurrar cloroquina. Uma das ferramentas para isso foi o lançamento do aplicativo TrateCov, que recomendava o uso do remédio até por bebês diante de qualquer sintoma de gripe. O presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM) afirmou que os manauaras se tornaram cobaias de um experimento do governo.

Joe Biden, que veio logo depois e fez um discurso voltado ao mundo, não aos Estados Unidos, deve ter agradecido a Bolsonaro no seu íntimo.

O tamanho pequeno do garoto Jair, que pensa só no seu quintal porque sabe que não é maior do que isso, ajudou a dar ainda mais envergadura ao discurso do norte-americano, que vinha sendo alvo de críticas por sua desastrosa saída do Afeganistão.

“Vergonhosa", fala de Bolsonaro é recebida na ONU com indignação e chacotas

Delegações estrangeiras receberam o discurso do presidente Jair Bolsonaro com uma mistura de indignação, decepção e ironias. Representantes de seis países diferentes foram unânimes em alertar que, diante do descrédito completo do brasileiro no cenário internacional, o presidente "afundou" o país num isolamento ainda maior.

Existia uma esperança por parte de algumas delegações de que houvesse uma mudança de tom adotada pelo Brasil, diante da fragilidade internacional de Bolsonaro.

Mas, para a surpresa de muitos, o que se viu foi um discurso ainda mais radical e repleto de desinformação. "Fakenews speech [discurso]", escreveu um negociador alemão, assim que terminou sua fala. "Vergonhoso", disse outro representante europeu. Jornais como o Washington Post descreveram a fala como "embaraçosa", enquanto o Guardian destacou como o brasileiro atacou a exigência de um passe sanitário, uma realidade nos EUA e na Europa.

Já o New York Times apontou como Bolsonaro defendeu remédios sem comprovação científica, enquanto dezenas de comentaristas americanos ironizaram quando o serviço de conferências da ONU entrou em cena para desinfetar o pódio após sua fala. Joe Biden seria o próximo. Os dois líderes não se cruzaram nos bastidores.

"O Brasil transformou a tribuna mais sagrada da diplomacia em um disseminador de mentiras e vergonhas", acusou outro delegado.

Indignados ainda ficaram representantes da OMS, quando Bolsonaro falou sobre tratamento precoce contra a covid-19 sem qualquer tipo de comprovação científica. "O negacionismo na abertura de uma Assembleia-Geral é um dos pontos inesquecíveis dessa pandemia", ironizou um dos funcionários da agência.

Mesmo dentro do Itamaraty, à medida que o discurso era lido, embaixadores experientes e diplomatas não conseguiam esconder a revolta. "Vergonha alheia", escreveu por mensagem à coluna um deles.

Para delegações estrangeiras, a desconfiança internacional será ainda maior em relação ao Brasil depois da fala. "Como é que o governo quer que os demais parceiros o levem a sério", questionou um governo europeu. Na avaliação de membros do bloco, as mentiras contadas pelos governos ao longo de mais de dois anos de governo Bolsonaro pareciam que não conseguiriam mais ser superadas. Até que chegou a vez de o presidente subir ao púlpito da ONU nesta terça-feira.

Para um delegado de um país vizinho do Brasil na região, o tom do presidente foi revelador de um líder que está isolado no mundo e opta por ampliar essa marginalização.

Indígenas e Clima

Mas foram as supostas garantias de que o Brasil protege seus indígenas e sua floresta que criou uma reação mais indignada.

Para diplomatas estrangeiros, as palavras não apenas caíram num vazio, mas ampliaram o descrédito do presidente. "O Brasil apenas será levado a sério quando provar cada passo que der", disse um deles. Isso significa, segundo eles, mostrar a redução do desmatamento a cada mês, o compromisso com indígenas e ativistas de direitos humanos e o respeito pela democracia.

"Todas as informações que temos vão no sentido contrário da fala do presidente", afirmou outro delegado, apontando para o desmonte da FUNAI e de instituições de controle da floresta.

A garantia de democracia também contrasta com os alertas emitidos pela ONU, que apontou na semana passada estar preocupada com a crise entre os poderes e que fez um apelo para que o Estado de Direito fosse preservado.

Entidades como Human Rights Watch e a Transparency International também contestaram o discurso de Bolsonaro.

Já a ONG Conectas Direitos Humanos alertou que Bolsonaro "usou a tribuna da ONU para emitir um atestado de culpa de sua desastrosa gestão da pandemia ao defender o comprovadamente ineficaz tratamento precoce e atacar medidas de distanciamento social".

"Cabe agora à comunidade internacional dar uma resposta à altura", disse Camila Asano, diretora de programas da Conectas.

"Boa parte do discurso foi dedicada a tentar convencer investidores externos de que o Brasil teria tudo o que buscam. Mais uma vez o presidente parece ignorar que os investidores se afastam cada vez mais de países com governos que não respeitam os direitos socioambientais", afirmou.

"Os investidores não serão ludibriados por afirmações do discurso de que o Brasil teria uma forte legislação ambiental, quando é sabido que o governo Bolsonaro vem enfraquecendo órgãos de fiscalização como IBAMA e ICMBio e tentando aprovar no Congresso leis para dificultar a demarcação de terras indígenas e enfraquecer as regras de licenciamento ambiental", destacou Camila.

"Até quando tentou mostrar algum avanço em direitos humanos no Brasil, Bolsonaro mostrou o quanto essa agenda é fragilizada e distorcida por seu governo. De forma solta, o presidente citou a ratificação da Convenção Interamericana contra o Racismo. É sintomático que não tenha apresentado nenhuma política pública de combate ao racismo, dado que essa pauta nunca foi prioridade de sua gestão", completou a representante da entidade.

Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2020 a população negra foi alvo preferencial da letalidade policial, respondendo por 78,9% das 6.416 mortes por intervenção das forças de segurança.

Itamaraty foi atropelado por filhos de Bolsonaro e ala radical na ONU

O grupo do Itamaraty que tentou emplacar um tom moderado no discurso do presidente Jair Bolsonaro na ONU foi atropelado por aliados mais próximos do Palácio do Planalto, pelos filhos do presidente e pela ala mais radical.

Diplomatas envolvidos no processo de elaboração do discurso apontaram que, nas primeiras versões do texto desenhado pelo Itamaraty, o tom era diferente. A ênfase estava no multilateralismo, gestos de solidariedade, doação de vacinas e até recuperação de alianças.

Sem a presença do aliado Donald Trump, com a Europa resistente a uma aproximação com Bolsonaro, com denúncias sistemáticas feitas por relatores da ONU contra o Brasil, o Itamaraty buscava reduzir a pressão internacional.

Há duas semanas, os diplomatas tinham conseguido emplacar uma mudança de atitude de Bolsonaro na reunião dos Brics, com o presidente distribuindo afagos até mesmo para o presidente da China, Xi Jinping, um dos alvos de suas críticas nos últimos meses. Mas os elogios aos chineses não foram recebidos de forma positiva pela ala mais radical, ávida para que seus princípios fossem refletidos na política externa.

Durante a gestão de Ernesto Araújo no Itamaraty, essa linha ideológica estava garantida. Mas sua queda levou à interpretação de que a ala bolsonarista dentro da chancelaria teria perdido força. Em seu lugar, o embaixador Carlos França adotou uma postura mais próxima das linhas tradicionais do Itamaraty.

Mas o novo chanceler não foi suficiente para frear a pressão da ala mais radical. Apesar de um texto inicial mais moderado, mudanças acabaram ocorrendo nas últimas 24 horas para incluir elementos que repetem a postura do Brasil sob Araújo.

Assim, quando o presidente subiu ao púlpito mais importante da diplomacia internacional, o texto continha referências à família tradicional, combate ao socialismo e defesa do cristianismo. Ou seja, a constatação de que a política externa continua a manter uma clara linha ideológica.

Para 2022, o apoio evangélico é considerado como fundamental para que o presidente mantenha alguma esperança nas eleições. Usar termos e referências que façam acenos aos grupos era considerado estratégico.

Uma delas foi as referências ao cristianismo, causando apreensão entre entidades de direitos humanos. "O Brasil tem um presidente que acredita em Deus", disse Bolsonaro, que emendou em outro trecho indicando que defende a liberdade de culto.

Afegãos cristãos?

Bolsonaro também anunciou que a decisão do Brasil de dar vistos humanitários para afegãos beneficiaria cristãos.

Há duas semanas, a coluna revelou com exclusividade que o governo pensava na possibilidade de estabelecer tais vistos como forma de ajudar a população local diante da chegada do Talibã. Dias depois, a decisão foi confirmada. Mas, nesta terça-feira, pela primeira vez, Bolsonaro explicou a quem tais vistos seriam destinados.

"O futuro do Afeganistão também nos causa profunda apreensão. Concederemos visto humanitário para cristãos, mulheres, crianças e juízes afegãos", afirmou.

Procuradas, altas fontes do Itamaraty explicaram que não haverá o critério com base na religião e que a referência, uma vez mais, é um aceno à base mais dura do bolsonarismo.

Oficialmente, a chancelaria explicou:

"O visto humanitário pode ser concedido por embaixadas e consulados do Brasil no exterior e representa um gesto de solidariedade e de compromisso com os direitos humanos, a cooperação internacional e a defesa da paz, princípios consagrados em nossa constituição.

Serão beneficiados os cidadãos afegãos e outros afetados pela situação no Afeganistão que preencham os requisitos legais e que busquem proteção, liberdade e novas oportunidades em nosso País.

Ao abordar o tema em discurso proferido na abertura do Debate Geral da LXXVI Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas, o Senhor Presidente da República elencou hipóteses que poderão ser enquadradas nos vistos a serem concedidos. No caso do Afeganistão, a minoria cristã constitui grupo em particular situação de risco".

Poucos na ONU, inclusive, se atrevem a calcular quantos cristãos ainda existem no Afeganistão. Grupos de ajuda humanitária indicariam que eles não passariam de 10 mil pessoas, uma fração dos mais de 2,6 milhões de refugiados afegãos, 3,5 milhões de deslocados internos no país e 18 milhões de vítimas da crise humanitária.

Mas a referência explícita aos cristãos despertou a preocupação de ativistas. "Ao falar de refugiados afegãos, fez questão de destacar que acolherá cristãos, reforçando o caráter discriminatório contra as demais religiões e que em nada combina com acolhimento humanitário", diz Camila Asano, diretora de programas da Conectas.

No último dia 6 de setembro, o Itamaraty se reuniu com a Associação Nacional dos Juristas Evangélicos, entidade ligada à ministra e pastora Damares Alves.

No encontro, a presidente interina da Anajure, Edna Zilli, esteve com o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), e o Itamaraty para "dar detalhes de solicitações de assistência em andamento no ANAJURE Refugees, além de tratar sobre demandas específicas de violações aos direitos humanos no Afeganistão".

"Nesse sentido, a Anajure já vinha se mobilizando no Brasil e no exterior, desde a tomada de poder pelo Talibã em agosto, no intuito de colaborar com várias entidades internacionais para que pessoas em situação de risco pudessem ser ajudadas", explicou a entidade num comunicado.

Essa não é a primeira vez que a ajuda a cristãos aparece na agenda do Itamaraty. Ainda sobre a gestão de Ernesto Araújo, o governo iniciou conversas com as autoridades da Hungria para ajudar em projetos que também tinham como objetivo ajudar as famílias cristãs no Oriente Médio.

Comandada por ultraconservadores, Budapeste explicou que chegou a entregar um dossiê ao Brasil sobre os projetos de cunho religioso que poderiam ser apoiados por Bolsonaro.

Família tradicional

Outro trecho que revelou a sobrevivência de uma ideologia na política foi quando Bolsonaro afirmou que a "família tradicional é o fundamento da civilização".

Nos últimos dois anos, tanto Damares como o Itamaraty traçaram alianças com governos ultraconservadores para promover nos organismos internacionais a ideia da família, um conceito manipulado para minar o movimento LGBT.

Para a Human Rights Watch, o discurso "defendeu uma ideia de família que exclui milhões de brasileiros". "Bolsonaro diminui o papel do Brasil no mundo, o colocando como defensor de ideias retrógradas que violam os direitos humanos", concluiu.


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