20/04/2024 - Edição 540

Poder

Brasil se cala em reunião na ONU sobre justiça para vítimas da ditadura

Publicado em 17/09/2021 12:00 -

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O governo de Jair Bolsonaro se calou diante de um debate na ONU, destinado a avaliar formas para garantir justiça para vítimas de regimes autoritários, como o que ocorreu no Brasil entre 1964 e 1985.

O gesto ocorre às vésperas da viagem do presidente para a Assembleia Geral das Nações Unidas, na próxima semana.

No último dia 16, um relator da ONU apresentou seu informe diante do Conselho de Direitos Humanos e concluiu que leis de anistia perpetuam uma "cultura da impunidade" e violam direitos humanos fundamentais. A avaliação faz parte de um informe preparado pelo relator da ONU para a promoção da verdade, justiça e reparação, Fabián Salvioli, que cita no documento especificamente o caso brasileiro como um exemplo de um pacto que prejudicou a busca pelo fim da impunidade.

O informe propõe o fim das leis de anistia e a recomendação aos estados para que investiguem e punam a todos aqueles que cometeram crimes, duramente um período de exceção.

O governo brasileiro tinha solicitado a palavra para participar do debate. Mas, quando foi chamado, a delegação indicou que se retirava da lista de oradores. Momentos antes, o governo da Argentina tomou a palavra para apoiar o debate e falou em nome de países como Paraguai, Peru, México. Mais de 30 governos fizeram intervenções, muitos deles reconhecendo crimes do passado.

Há dois dias, foi a vez do governo brasileiro rejeitar admitir que o Comitê da ONU sobre Desaparecimentos Forçados tenha o mandato para debater ou mesmo colocar questões sobre o impacto da lei da Anistia sobre crimes. Os peritos do organismo cobraram respostas do Brasil sobre a questão e alertaram que, enquanto uma pessoa está desaparecida, o crime continua.

Mas a delegação liderada pelo Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos e pelo Itamaraty simplesmente afirmou que não considerava que o tema estava dentro do mandato do tratado, ratificado pelo Brasil em 2016, e que, portanto, sequer iriam dar respostas sobre temas como Perús e casos de desaparecidos.

A participação do Brasil no debate também gerou a indignação de entidades da sociedade civil, no que se refere aos casos atuais de desaparecimentos.

"A passagem do Brasil pela revisão no Comitê sobre Desaparecimento Forçado demonstra como o governo é descolado da realidade e apresenta a ONU um cenário que não condiz com a situação real", disse Gabriel Sampaio, coordenador do programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas Direitos Humanos.

"Ao ser confrontado com a preocupação dos membros do Comitê, o governo adota um tom arrogante que mostra o seu despreparo e a falta de políticas para lidar com questões de desaparecimento forçado no país. A consequência disso é sentida, mais uma vez, pela população mais vulnerável à violência institucional, jovens, negros e periféricos, a exemplo das vítimas dos crimes de maio, entre outros casos", completou Sampaio.

Estabelecida no governo de João Figueiredo, em 1979, a lei de anistia no Brasil foi considerada como um marco para a transição democrática. Condenado em duas instâncias pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por crimes cometidos durante o regime militar (1964-1985), o estado brasileiro continua a aplicar a lei de 1979.

Em 2010, o Supremo Tribunal Federal optou por não rever a lei, indicando que ela tinha sido um "acordo histórico" para sair do regime militar. Já a Comissão Nacional da Verdade, em 2014, recomendou o fim do benefício para agentes do estado que praticaram tortura ou assassinatos.

Sob o governo de Jair Bolsonaro, o Brasil foi alvo de questionamentos por parte de relatores da ONU sobre seu comportamento de apologia a torturadores e de uma tentativa de rescrever a história. O presidente chegou a receber torturadores e elogiar atos dos generais que comandaram o país durante os anos de chumbo.

Milícias e agentes do Estado

Membros da Comitê da ONU para Desaparecimentos Forçados cobraram do governo de Jair Bolsonaro esclarecimentos sobre a relação entre a milícia e agentes do Estado, apontando que receberam dados de envolvimento de ambos em crimes no país. Mas os mesmos peritos internacionais ficaram indignados diante da declaração de um dos membros da delegação brasileira de que o número de desaparecimentos no país não justificava a criação de um mecanismo para reunir dados e investigações.

No último dia 13, pela primeira vez, a ONU iniciou um exame sobre a situação do desaparecimento no Brasil, colocando pressão sobre o país em temas como a violência policial, milícias e mesmo sobre a forma pela qual o governo lida com as vítimas da ditadura (1964-1985).

Coube à relatora do Comitê, Milica Kolakovic-Bojovic, apresentar perguntas durante a sabatina que irá durar dois dias. "Temos informações sobre desaparecimentos que ocorrem hoje, incluindo por parte da polícia militar, assim como por grupos paramilitares formados por agentes do Estado", disse.

Segundo ela, as vítimas mais frequentes são indígenas, afrobrasileiros, pobres e população das periferias. A relatora ainda destaca como famílias têm hesitado em denunciar desaparecimentos, alegando o risco de represália, e como a falta de progresso nas investigações tem levado à impunidade.

Ela ainda apontou que o Comitê recebeu "alegações de omissão para investigar e processar casos de desaparecimento" e cobrou explicações sobre a existência de mecanismo independentes para apurar casos quando há uma suspeita de agentes do Estado.

O mesmo tema foi tratado por Matar Diop, outro membro do Comitê responsável pela sabatina do Brasil. Segundo ele, o governo explicou por escrito que não existem provas de que grupos paramilitares ou paralelos possam ter qualquer apoio do Estado.

Diop, portanto, questionou se o Estado admite a existência dessas milícias e perguntou o que o governo tem feito para impedir essas operações.

Outro que destacou a questão dos agentes do Estado foi Horacio Ravenna, membro do Comitê. Segundo ele, ainda que os casos de desaparecimento forçado sejam menores numa democracia, o importante é saber se existe um compromisso de investigar e punir os responsáveis.

Delegação grande e poucas respostas

Para apresentar o que tem sido feito no país, o Brasil destacou uma delegação de 20 pessoas, incluindo o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, Ministério da Justiça e Itamaraty.

Para o governo, existem garantias de que as investigações sobre casos de desaparecimentos são independentes, mesmo se existem agentes públicos envolvidos. Mesmo assim, Brasília deixou claro que não iria responder a algumas das perguntas, consideradas como "fora da realidade". O governo brasileiro questionou a "qualidade das informações" que o Comitê havia recebido e alegou que, portanto, não seria possível responder às indagações.

O país ainda terá uma reunião na terça-feira para responder, antes que o Comitê redija suas conclusões sobre a situação no Brasil.

A reunião ainda foi marcada por problemas técnicos na comunicação entre Genebra e Brasília, onde estava a delegação brasileira. Mas o governo fez questão de rejeitar denúncias de que haveria base para falar em extermínio de povos indígenas.

"Rejeitamos qualquer afirmação nesse sentido", disse a delegação. "Não é a realidade. O Brasil cuida e cuida muito bem de seus indígenas", afirmou o governo, alertando que as denúncias seriam "ilações". Para a delegação, o governo hoje tem "talvez o maior programa de assistência emergencial do mundo".

Sem números, nem orçamento

Mas o governo tampouco respondeu a outras perguntas. Questionado sobre o orçamento para lidar com esses crimes, o governo não apresentou dados, alegando a "dimensão" do país, a existência de diferentes estados e múltiplos órgãos.

O governo não conseguiu responder à ONU quando foi questionado sobre o número de pessoas desaparecidas no país.

Diop insistiu em saber também quantas pessoas estariam sendo investigadas por tais crimes. Segundo ele, ainda que o governo insista que o desaparecimento é hoje "extremamente raro", ele cobrou informações.

Uma vez mais, o governo não respondeu. Segundo a delegação, não haveria como ter um mecanismo centralizado de investigação ou recolhimento de dados, já que o problema não seria de uma escala que "justifique isso".

Alban Alencastro, outro perito do Comitê, reagiu e questionou o desprezo do governo. Citando o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), ele indicou que foram 62.857 registros no ano de 2020, acompanhados de um número de 31.996 de pessoas localizadas. "Os dados são alarmantes», apontou.

Na reunião, o governo se concentrou em apresentar informações sobre a estrutura das instituições brasileiros, projetos de criar aplicativos e promessas de defesa dos direitos humanos. Brasília também garantiu que a democracia vivia seu "plenitude" e que os direitos humanos estão na base da atuação do Estado.


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