26/04/2024 - Edição 540

Especial

Morde e assopra

Publicado em 10/09/2021 12:00 -

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Depois de aproveitar o 7 de Setembro para proclamar que o Bolsonaristão havia se tornado independente do Brasil, Bolsonaro aderiu a uma nova modalidade de negacionismo: o negacionismo mental. O pandemônio autoritário era um "golpezinho", o "canalha" do Alexandre de Moraes era apenas uma cepa secundária do respeitado "jurista e professor", e a nova onda do imperador fortão não passava de "conversinha" para o gado dormir.

Percebendo que havia transformado o trono numa cadeira elétrica, Bolsonaro devolveu o Bolsonaristão ao Brasil e fundou uma nova monarquia. Nela, reina o Bolsotemer, um híbrido com o miolo mole do Jair Bolsonaro e a caligrafia do Michel Temer. Para fundar o novo reino, divulgou-se uma carta à nação. O texto é mais longo do que deveria. Mas traz nas entrelinhas apenas dois artigos.

Artigo 1º: Todo brasileiro sem vergonha na cara deve esquecer as barbaridades que Bolsonaro fez desde o início do seu mandato e as atrocidades que ele declarou nas últimas 48 horas.

Artigo 2º: Revogam-se as disposições em contrário.

Cerca de três horas depois da divulgação da carta, o imperador levou ao ar a sua live semanal das noites de quinta-feira. Em meio a muita desconversa, teve uma recaída. Em resposta ao presidente do TSE, Luís Roberto Barroso, que o chamara de "farsante", voltou a questionar a segurança das urnas eletrônicas. Disse que as "palavras bonitas" de Barroso não convencem ninguém, pois "as urnas são penetráveis".

Ficaram entendidas quatro coisas:

1) Michel Temer é um tranquilizante com prazo de validade vencido.

2) Jair Bolsonaro, personagem que defende a cloroquina e desrespeita as prescrições alheias, precisa do acompanhamento de um profissional da psiquiatria.

3) O Brasil é um país à deriva sem um presidente.

4) Faz papel de bobo quem acredita em variantes moderadas de Bolsonaro.

Bolsonaro confere suas chances de arruinar a democracia

Eram muitos os cartazes e as faixas espalhados na Esplanada dos Ministérios no Sete de Setembro para pedir que o presidente Jair Bolsonaro desse um golpe militar, que os bolsonaristas chamam falsamente de "intervenção", ou fechasse instituições como o STF.

Um grupo de bolsonaristas queria chegar ao prédio do Supremo. A coragem, porém, acabou no primeiro bloqueio sério feito pela Polícia Militar na principal via de acesso ao tribunal. Os manifestantes recuaram ao primeiro spray de pimenta e o prédio envidraçado no canto direito da Praça dos Três Poderes pôde dormir em paz, pelo menos por enquanto. Depois tentaram outras vezes, com menos intensidade, todas sem sucesso.

O script de Bolsonaro – que ele prontamente nega, agora inclusive em nota redigida em conjunto com o ex-presidente Michel Temer – já é bastante evidente: ele insufla seus seguidores para que promovam um ataque direto às instituições, em especial o STF, o que lhe daria uma desculpa para colocar na rua as Forças Armadas, sob a falsa alegação de garantir a lei e a ordem. É o que ele chama de "cumprir a Constituição", ou seja, colocar em prática a interpretação errada e facciosa do artigo 142 da Carta.

Se tivesse condições políticas, Bolsonaro rumaria para isso. Nesse sentido, seu plano naufragou no Sete de Setembro. Os manifestantes não atacaram fisicamente nenhum prédio e nenhuma autoridade em Brasília – pelo menos até o fechamento desta edição.

Não quer dizer que Bolsonaro não consiga atingir o seu objetivo até as eleições do ano que vem, mas o seu último movimento em Brasília foi uma derrota. Sem caos nas ruas, sem argumento para chamar os militares. Ele é impedido, nos seus delírios, pela força da realidade.

Um segundo campo de atrito permanece em dúvida, os bloqueios realizados por caminhoneiros em alguns pontos de rodovias no país. Se esse movimento crescer, é claro que Bolsonaro embarcará na onda, embora negue em público qualquer apoio. Porém, tudo indicava até a noite de quinta-feira (9) que a radicalização dos caminhoneiros e empresas do agronegócio enfrenta dificuldades de adesão. Um dos motivos é a pauta absolutamente estranha aos caminhoneiros brasileiros, a afronta ao STF.

No último dia 7, em Brasília, a absoluta maioria dos bolsonaristas não quis entrar para valer em uma aventura cujo resultado ninguém é capaz de prever. Pelo jeito não estavam dispostos a ser processados e quem sabe presos, para não dizer coisa pior, em nome do seu "mito". Processos judiciais podem levar ao bloqueio de bens e dinheiro, muito dinheiro (gente do agronegócio apareceu em peso em Brasília, e de dinheiro o agronegócio entende). A reticência dessa massa enfraquece o discurso inflamatório do seu líder.

O problema é que, por outro lado, Bolsonaro novamente ganhou. Ganhou porque mobilizou e sugou energias e preocupações de milhões de brasileiros democratas, porque deu mais um passo na escalada autoritária, porque demonstrou mais uma vez que é capaz de afrontar as instituições e as leis à luz do dia, sem qualquer vergonha – disse que não cumprirá mais ordens de um ministro do STF. É tudo cansativo, estressante e grave, ainda mais no meio do luto nacional de mais de 585 mil mortos pela pandemia.

Bolsonaro conseguiu impor à sociedade brasileira o desgaste de mais um teste para a sua democracia. Bolsonaro coage, constrange e provoca, a fim de cansar o oponente.

Uma derrocada do regime democrático ajudaria Bolsonaro de diferentes maneiras. Primeiro, tiraria do foco ou mesmo paralisaria as investigações judiciais e policiais contra seus filhos e contra ele próprio pelo seu papel no alastramento da pandemia, hoje amplamente documentado pela CPI da Covid, no Senado. De quebra, deveria "melar" as eleições de 2022, providência para ele importante, já que suas chances estão minguando.

O Sete de Setembro não foi o dia dos sonhos de Bolsonaro, mas também não foi o fim. Nesse ritmo de perde e ganha, ele vai corroendo a institucionalidade.

Muitas pessoas de boa-fé dizem que Bolsonaro não tem motivos para dar o golpe porque já está no poder. Porém, dizem outras, o golpe seria exatamente para não sair do poder. Ele e os militares que o apoiam, alguns ganhando salários muitíssimo altos. Se a eleição for perdida em 2022, todas essas pessoas têm data para esvaziar suas gavetas e reduzir seus contracheques.

Às pessoas que acreditam que a cartinha de Bolsonaro-Temer divulgada ontem (9) fez de fato algum estrago nas hostes bolsonaristas, recomenda-se uma segunda olhada. A marca desse grupo político é o apoio muitas vezes completamente cego ao seu líder. Na noite de ontem (9), por exemplo, o jornalista Rubens Valente (UOL) encontrou na frente do Congresso um bolsonarista que disse ser agricultor em Mato Grosso. Estava desde o dia 6 hospedado num hotel para participar do protesto em Brasília. Duas horas depois da divulgação, ele ainda não sabia da nota de Bolsonaro. Valente abriu no telefone e leu. Deu-se o diálogo:

-O que o sr. achou, ele recuou, não?

-O Bolsonaro é muito inteligente. Ele fez isso aí para tapear esse pessoal, é só para dizer que está tudo bem. Não tem nada [na nota]. Na hora certa ele vai agir.

-E quando seria?

-Quando os caminhoneiros pararem esse país. Eles vão parar tudo.

-Mas quando isso vai acontecer?

-Agora, agora, eles vão parar tudo.

-O que vocês querem com esse protesto?

-Trocar todo o Congresso Nacional, todo mundo embora, limpar.

-Todo mundo, os 500 deputados? Mas nesse caso iria embora também o pessoal que apoia o Bolsonaro?

-O Congresso, não [se corrige]. O tribunal! Os onze, os dez do tribunal. Todo mundo embora.

Bolsonaro sabe que a sua base eleitoral raciocina por caminhos que desafiam a lógica e o bom senso. A poucos metros da conversa de Valente com o agricultor, três senhoras com camisetas amarelas rezavam o Pai Nosso segurando terços e uma imagem de Nossa Senhora. Elas disseram que estavam rezando "para salvar o Brasil".

Recuo fajuto encobre avanço de sua inflação sobre os pobres

Enquanto Jair Bolsonaro mantinha, nos últimos dias, o foco do país em suas micaretas golpistas, nos bloqueios chantagistas de seus caminhoneiros e em seu manjado e cansativo recuo tático, os índices de inflação eram divulgados confirmando que o Brasil tá lascado, como sempre avalia o economista Gil do Vigor.

O presidente prefere ser visto como golpista do que como alguém incapaz de estabilizar a economia, gerar empregos de qualidade, garantir comida na mesa dos brasileiros e controlar a inflação. Até porque um golpista é amado pelo naco antidemocrático de seu rebanho, enquanto um incompetente é odiado por todos. Salvo os casos patológicos, claro.

Em 12 meses, o preço da cesta básica subiu 34,1% em Brasília, 25,8% em Campo Grande, 25,7% em Porto Alegre, 24,2% em Florianópolis, 21,5% em Vitória, 21,1% em Natal, 20,8% em São Paulo, 20,1% em Belém, 19,7% no Rio, 19,5% em Fortaleza. Só neste ano, a cesta já saltou 11,1% em Curitiba. Os dados são de levantamento mensal do Dieese, divulgado nesta quarta (8).

Enquanto isso, o piso do auxílio emergencial pago por Jair Bolsonaro, aquela merreca sem vergonha de R$ 150 que é uma sombra do piso do benefício original aprovado pelo Congresso (R$ 600), compra – segundo o Dieese – apenas 22,6% da cesta básica em Porto Alegre, 22,8% em Florianópolis, 23% em São Paulo e 23,7% no Rio.

Na quinta (9), foi a vez do IPCA, a inflação oficial, vir a público, registrando a maior alta para um mês de agosto em 21 anos, 0,87%.

Para deixar claro: da última vez que agosto registrou uma subida tão expressiva nos preços, as Torres Gêmeas ainda estavam de pé, Fernando Henrique era presidente e "Se eu não te amasse tanto assim", com a Ivete Sangalo, estava na lista das mais tocadas nas rádios. De acordo com o IBGE, a taxa para os últimos 12 meses se aproxima dos 10%.

Esse total não inclui apenas alimentação, claro. Por exemplo, os combustíveis subiram quase 3%. Em 2021, a gasolina acumula alta de 31,1%, o etanol, de 40,8% e o diesel, de 29%. Em agosto, a batata inglesa subiu quase 20%, o café em pó, 7,5%, o frango, substituto da carne que está pela hora da morte, 4,5%, frutas 3,9%.

Sem contar a energia, que aumentou 1,1%, após saltar 7,9% em julho. A tendência é mais subida com os reajustes para tentar retardar os apagões na rede elétrica. Sim, mesmo pagando mais o país pode ficar no escuro devido à crise hídrica derivada da incompetência de gestão do governo federal diante das mudanças climáticas.

Considerando que as sabotagens de Jair Bolsonaro estenderam demasiadamente a pandemia, vivemos uma crise mais dura que outros países que administraram melhor a covid-19.

Com um desemprego de 14,4 milhões, de acordo com o IBGE, um auxílio emergencial menor e uma inflação galopante, há menos comida na casa dos pobres.

No final do ano passado, quando o auxílio emergencial era maior, o país somava 19,1 milhões de famintos, de acordo com a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, ou 9% da população. Em 2018, eram 10,3 milhões de brasileiros nessa situação. Pesquisadores avaliam que esses 19,1 mi já ficaram para trás.

Mas para uma parcela dos políticos e analistas, com o recuo fajuto de Bolsonaro, "tudo voltou ao normal" – até que ele volte à carga. O problema é que o "normal", além de uma farsa do ponto de vista político, vem se revelando uma sala de tortura para os mais vulneráveis.

Com sua nota de arrego, Bolsonaro segue a tática de aproximações sucessivas: ataca e recua. Lembrando que cada novo ataque é mais violento que o anterior. Agora, entra a turma do "pronto, tudo voltou ao normal". Não, nada voltou ao normal. Primeiro, porque, daqui a pouco, ele ataca a democracia de novo. E não é normal um país à deriva, sem projeto nacional, com uma equipe econômica sem rumo e uma Câmara do Deputados aprovando projetos para o desmonte de regras ambientais e trabalhistas para atender a poderosos grupos lobistas ou interesses particulares dos congressistas.

Em outubro de 2018, durante a campanha eleitoral, Bolsonaro afirmou em entrevista à Rádio Jornal, de Barretos, que seu objetivo era fazer "o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás". Com inflação alta e o risco de estagnação econômica no ano que vem, ele tem tudo para cumprir suas palavras. Bem-vindos à década de 80.


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