27/04/2024 - Edição 540

Brasil

Crise hídrica: as raízes da (nova) escassez de água no Brasil

Publicado em 09/09/2021 12:00 -

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Se São Pedro colaborar, as chuvas de verão poderão aplacar a pior seca em 91 anos no Brasil. Essa é, ao menos, a expectativa. O período entre novembro e abril do ano seguinte é marcado pelo grande volume de chuvas, mas não é o que tem acontecido. Na última estação chuvosa, entre 2020 e 2021, as precipitações frustraram os operadores de hidrelétricas com os piores números desde 1930, quando a análise começou a ser feita.

A água é essencial para a geração de energia elétrica no país: 63,2% da energia utilizada por aqui é obtida em hidrelétricas, segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Com menos chuvas chegando aos reservatórios, cresceu a dependência das termelétricas, usinas movidas a combustível fóssil que representam 13,2% da nossa matriz energética. “Acontece que elas não apenas são mais poluentes como também mais caras na geração de energia, o que é repassado ao consumidor final”, afirma André Felipe Simões, professor do curso de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade São Paulo (USP).

O resultado já é percebido no bolso. Em julho, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) elevou em 52% a bandeira vermelha 2, taxa inserida na conta de luz quando cresce o custo da geração de energia no país. Com isso, o valor de 100 quilowatts-hora (kwh) saltou de R$ 6,24 para R$ 9,49. No último dia 31 de agosto, o governo anunciou novo reajuste: em setembro, a tarifa passou a ser de R$ 14,20 para cada 100 kwh consumidos.

De acordo com o ONS, o aumento do consumo em agosto no Sistema Interligado Nacional (SIN) é o que está deixando o Ministério de Minas e Energia mais alerta. O ONS havia emitido em julho um alerta sobre o baixo volume dos reservatórios de água das hidrelétricas do Sudeste e Centro-Oeste e o perigo de entrarem em colapso já em novembro. Segundo o órgão, não há risco de desabastecimento para a população, mas as “sobras” de potência, utilizadas especialmente em momentos de seca como o atual, podem se esgotar.

O Sistema Cantareira, maior reservatório de água da região metropolitana de São Paulo, passou o oitavo mês de 2021 em estado de alerta. Até o dia 30 de agosto, estava em 37,3% de sua capacidade. Para ser considerado normal, o volume tem que estar com pelo menos 60% do total. A situação é monitorada de perto para que a crise de sete anos atrás não se repita. Em 13 de agosto de 2013, quando os especialistas já apontavam para um provável cenário de escassez hídrica, o Cantareira estava em 51,1% de sua capacidade; no primeiro dia do ano seguinte, chegou 37 a 27,2%.

O cenário foi se deteriorando rapidamente e, em maio de 2014, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) começou a explorar a primeira cota da reserva técnica — popularmente conhecida como volume morto. Em novembro, a empresa iniciou a captação da segunda cota.

“O que eu vejo hoje é um remake do que aconteceu na última crise hídrica de 2014”, analisa Pedro Côrtes, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da USP. “Lembro que o governo [de Geraldo] Alckmin acreditava que a chuva que viria no verão seria suficiente, e não foi. Quando se deram conta, já não havia muito mais a ser feito.”

A Sabesp assegura que, por enquanto, não há risco de desabastecimento na região metropolitana da capital paulista, mas destaca a necessidade do uso consciente da água. “Neste momento de estiagem, a queda no nível das represas é esperada e a projeção da Sabesp aponta níveis satisfatórios para os próximos meses, até 2022”, diz a entidade, em nota enviada à reportagem. Ainda assim, é provável que episódios como esse sejam cada vez mais recorrentes — e por razões que vão muito além do uso indevido da água.

A raiz da crise

Um extraterrestre talvez achasse bizarro falar em escassez hídrica no Brasil. Por aqui estão 12% das reservas de água doce do planeta e 53% dos recursos hídricos da América do Sul, de acordo com o Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil (MapBiomas). Ao todo, existem 83 rios fronteiriços e transfronteiriços no país, e as bacias hidrográficas transfronteiriças ocupam 60% do território nacional. A Amazônia é o bioma brasileiro com a maior área coberta por água, com mais de 10,6 milhões de hectares, seguido por Mata Atlântica (mais de 2,1 milhões de hectares) e Pampa (1,8 milhão de hectares). Depois vêm Cerrado (1,4 milhão de hectares) e Pantanal, com pouco mais de 1 milhão de hectares.

Contudo, a atual crise se explica, em partes, pelos danos sofridos nesses ecossistemas nas últimas décadas, sobretudo na Floresta Amazônica. Isso porque o desmatamento no bioma afeta diretamente a formação e a dinâmica dos chamados rios voadores. Na prática, a massa de ar úmido exalada pela Amazônia é empurrada para a direção oeste do continente até chegar à Cordilheira dos Andes, onde é “rebatida” e segue rumo ao sul. Esse fenômeno é essencial para a formação de chuvas nas regiões Centro-Oeste, Sul e Sudeste.

No entanto, a derrubada de árvores segue a todo vapor. Com uma área de 8.712 quilômetros quadrados, o acumulado de alertas de desmatamento na Amazônia entre agosto de 2020 e julho deste ano é o segundo maior desde 2016, conforme levantamento feito pelo sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). O número está atrás apenas dos 9.216 quilômetros quadrados destruídos entre agosto de 2019 e julho do ano passado. “Quando falamos que temos que mudar a forma como consumimos, produzimos e vivemos significa muitas mudanças”, comenta Pedro Jacobi, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP. “O ponto principal é a necessidade de controlar a maneira desenfreada de uso e ocupação do solo, e o impacto que o desmatamento da Amazônia provoca.”

Por isso, é preciso falar sobre agropecuária. Além de ser um dos principais fatores para derrubada de árvores, o setor que cresceu 5,1% no primeiro trimestre de 2021 e tem participação significativa no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro é também um dos maiores responsáveis pelo uso — e desperdício — de recursos hídricos no país. Uma estimativa do Fundo das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO, na sigla em inglês) divulgada pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) estima que a agropecuária use 70% da água no Brasil — e quase metade disso é jogado fora. Segundo o Atlas Irrigação, documento produzido entre 2018 e 2020 pela ANA junto a universidades e empresas do meio agrícola, 49,8% das demandas de captação hídrica no país em 2019 foram para irrigação de culturas.

A má gestão desses recursos nessas esferas recai diretamente sobre os ecossistemas do país, que perdeu 15,7% da sua superfície de água desde 1991, segundo levantamento do MapBiomas divulgado em agosto. No primeiro ano da década de 1990, a superfície de água no Brasil ocupava 19,7 milhões de hectares; em 2020, essa área diminuiu para 16,6 milhões. O Pantanal foi o bioma que mais sofreu redução em sua superfície de água: 68% entre 1985 e 2020. Em seguida vêm Caatinga (-17,5%), Amazônia (-10,4%), Mata Atlântica (-1,4%), Cerrado (-1,3%) e Pampa (-0,5%).

O estado com a maior perda absoluta e proporcional de superfície de água na série histórica analisada pelo MapBiomas foi o Mato Grosso do Sul, com redução de 57%. Em 1985, o território sul-matogrossense tinha mais de 1,3 milhão de hectares cobertos por água — já no ano passado, eram apenas 589 mil hectares. A perda ocorreu principalmente no Pantanal, mas toda a bacia do Paraguai foi afetada. Em segundo lugar está o Mato Grosso, com uma perda de quase 530 mil hectares, seguido por Minas Gerais, com um saldo negativo de 118 mil hectares.

Diversos fatores podem explicar esse cenário nas últimas décadas. A dinâmica de uso da terra baseada na conversão da floresta para pecuária e agricultura interfere no aumento da temperatura local e, muitas vezes, altera cabeceiras de rios e de nascentes, podendo levar ao assoreamento, segundo o MapBiomas.

A construção de hidrelétricas também tem afetado a biodiversidade e a dinâmica natural dos corpos d’água. “A região do Pantanal é um desses exemplos, com a construção de hidrelétricas justamente nos rios que formam o bioma. Como se não bastasse, a tendência é de que a dependência hídrica seja menor no futuro, assim como o potencial dessas construções”, analisa Cassio Bernardino, coordenador de projetos da organização WWF-Brasil, um dos parceiros institucionais do MapBiomas na realização do estudo.

Outro ponto crucial a se levar em conta são as mudanças climáticas. Divulgado no último dia 9 de agosto, o mais recente relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC) indica que os humanos provavelmente são responsáveis por um aumento de 1,07°C nas médias de temperatura do planeta, e possivelmente haverá um crescimento de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais até 2040. “É inequívoco que a influência humana aqueceu a atmosfera, os oceanos e a Terra”, crava o IPCC.

O documento chama atenção para o impacto da emergência climática no ciclo da água, com alteração nos padrões de chuvas e mais episódios de inundações. Seguindo nessa toada, os volumes de precipitação poderão aumentar nas altas latitudes do planeta, enquanto nas regiões subtropicais (caso do Brasil) haverá uma diminuição, contribuindo para maiores períodos de seca. Pelo visto, já está acontecendo. E por isso é preciso agir rápido para mitigar não apenas a atual crise, mas impedir que esse seja um destino inevitável.

Desafios pela frente

Apesar da abundância em recursos hídricos, a distribuição deles entre a população está longe de ser igualitária. Cerca de 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável e 100 milhões não contam com serviço de coleta de esgoto, segundo o Instituto Trata Brasil. Os desafios para superar essa realidade são igualmente numerosos, como aponta José Almir Cirilo, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no artigo Crise hídrica: desafios e superação, publicado em setembro de 2015 na Revista USP.

“Geralmente, a principal atitude para equacionar o desabastecimento tem sido aumentar a ativação das potencialidades hídricas, construindo reservatórios formados por barragens, aumento da exploração dos aquíferos, transferência de água de bacias hidrográficas mais distantes e menos exploradas”, relata Cirilo.

Acontece que, embora necessárias, essas ações também têm seus limites. Entre as medidas sugeridas pelo docente da UFPE em seu estudo estão melhoria da eficiência dos sistemas, por meio do combate aos desperdícios no transporte, na distribuição e no uso da água; utilização de água bruta para fins que não requeiram água tratada (como rega de jardins e descargas sanitárias) e promoção do reuso sempre que possível, inclusive pela indústria.

Investir em fontes de energia renovável, por sua vez, é uma aposta certeira para minimizar os impactos no planeta e nos recursos hídricos. Com 7.491 quilômetros de extensão, a costa brasileira tem potencial de sobra para abrigar novos polos de energia renováveis — principalmente eólica e solar. No caso dos ventos, o Nordeste esbanja 68% de potencial de aproveitamento. As regiões Sul e Sudeste também estão no radar, segundo a Empresa de Pesqui- sa Energética (EPE), vinculada ao Ministério de Minas e Energia.

E, aos poucos, esses outros modelos vão ganhando espaço na matriz energética do país. Em fevereiro, a energia eólica atingiu a marca de 18 gigawatts (GW) de capacidade instalada, conforme revelou a Associação Brasileira da Energia Eólica. Há dez anos, essa capacidade era menor do que 1 GW. Elaborado pela EPE e a pasta de Minas e Energia, o Plano Decenal de Expansão de Energia, que considera o horizonte 2021-2030, prevê que até o fim da década a capacidade das usinas eólicas cresça 88%. O cenário também é positivo para as matrizes de energia solar, que devem passar dos atuais 3 GW de capacidade instalada para 8 GW em 2030, um incremento de 167%.

Embora as hidrelétricas ainda sejam protagonistas e a emergência climática não dê sinais de trégua, reavaliar o manejo e consumo hídricos é necessário antes que seja tarde demais. “É urgente pensarmos em alternativas ecológicas, éticas e sustentáveis para o uso da água no Brasil, a partir da necessidade de geração de energia elétrica e, também, de abastecimento”, adverte André Felipe Simões, da USP. Caso contrário, não é apenas a natureza que tem a perder — nós temos muito mais.


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