19/04/2024 - Edição 540

Brasil

O que é o marco temporal e como ele atinge os indígenas do Brasil

Publicado em 03/09/2021 12:00 -

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"São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens." O texto é do artigo 231 da Constituição do Brasil, e não determina nenhuma data.

Mas um conflito entre indígenas e agricultores em Roraima, quando chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), em 2009, acabou desencadeando na tese do marco temporal. Isto porque, para resolver a questão sobre a quem pertenceria de direito a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, os ministros argumentaram em favor do povo indígena — alegando que eles lá estavam quando foi promulgada a Constituição, em 5 de outubro de 1988.

Se naquele caso a tese era favorável aos povos originários, o precedente ficou aberto para a argumentação em contrário: ou seja, que indígenas não pudessem reivindicar como suas as terras que não estivessem ocupando em 1988.

"É uma ironia dos juristas, um deboche muito grande, essa teoria do marco temporal. Alguns povos não estavam em suas terras em 1988 porque a forma histórica de colonização do Brasil deixou muitas marcas, com indígenas sendo expulsos de seus territórios”, argumenta o pedagogo Alberto Terena, coordenador da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

Indígenas Xokleng: caso simbólico

No epicentro dessa discussão, a Advocacia Geral da União (AGU) entendeu, em 2017, que seria pertinente a tese do marco temporal. Como resultado, há cerca de 30 processos de demarcação de terra emperrados no Ministério Público Federal, à espera de uma definição do STF. Entre eles, um caso concreto bastante simbólico: o dos indígenas Xokleng, da Terra Indígena Ibirama La-Klãnõ, em Santa Catarina.

Historicamente perseguidos pelos colonizadores, os remanescentes da etnia acabaram afastados de suas terras originais na primeira metade do século 20. Em 1996, contudo, conseguiram a demarcação de 15 mil hectares — que depois se expandiria, em 2003, para 37 mil hectares.

Com o argumento do marco temporal, a área é reivindicada pela Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (antiga Fundação de Amparo Tecnológico ao Meio Ambiente – Fatma). O caso foi parar no STF — com o entendimento de que a decisão final deve servir para balizar todos as disputas do tipo.

Em paralelo, tramita na Câmara o projeto de lei 490, de 2007, que pretende tornar mais difícil a demarcação de terras indígenas — inclusive utilizando o argumento do marco temporal. 

"Objetivamente, o projeto significa um enorme retrocesso para o reconhecimento do direito dos povos nativos à terra e à manutenção de sua cultura”, avalia o sociólogo Rogério Baptistini Mendes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Qual seria o impacto para os indígenas?

Pesquisadora na Universidade de Brasília, a antropóloga Luísa Molina afirma, por sua vez, que a tese do marco temporal "reduz o acesso ao direito originário da terra" por parte dos povos indígenas.

"Uma terra indígena não é substituível por outra área, porque é um lugar sagrado, que tem história, onde se cultiva um modo de ser de cada povo”, explica Molina. "Ela é fundamental para a existência de um povo como coletivo diferenciado. É o que faz dele um povo. Se essa terra se perder, as condições da produção da diferença são atacadas e inviabilizadas."

A pesquisadora ressalta que, no caso, "cultura e vida estão na terra, no modo de viver na terra". E é esse o ponto que estaria em risco.

"De certa forma e incorrendo no exagero, é possível inferir a tentativa de aniquilação desses povos, pois a nova lei permite o avanço sobre terras demarcadas com a instalação de postos militares, expansão de malha viária e exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico, por exemplo”, afirma, por sua vez, Terena. "E, considerando o exemplo da história, particularmente neste período de governo Bolsonaro, não somente os nativos estão ameaçados, mas também o ambiente que ocupam e preservam.”

Terena argumenta que, se aprovada, a tese do marco temporal trará insegurança para os territórios ocupados pelos povos nativos — atualmente são 434 terras ocupadas tradicionalmente e demarcadas no país. "O nosso direito originário sobre a terra é constitucional. Negar isso vai trazer grande conflito, porque nosso povo nunca vai deixar de lutar pelo território”, diz ele.

A antropóloga Molina também vê riscos de disputas. "Coloca gasolina no incêndio, porque a realidade brasileira é de guerra fundiária”, comenta. "Essa tese intensifica muito esses conflitos, na medida em que viram arma de contestação.”

"Nossa terra é nossa mãe. Ela vai além do espaço geográfico. Ali está nossa história, nosso modo de vida, nosso sonho para as novas gerações. Ela significa a manutenção de tradições”, ressalta Terena. "A sociedade, conforme vem pregando esse governo, está tentando tirar nossa organização social.”

Para o sociólogo Mendes, a possibilidade de aprovação dessa tese — e do projeto em tramitação no Congresso — significa que os povos indígenas podem sofrer "ameaças ainda maiores do que as que enfrentam nestes dias de fiscalização precária e incentivo à invasão de suas terras”.

O sociólogo recorre aos registros da Câmara para comprovar a indisposição do atual presidente do país com a questão. Em 1998, o então deputado federal Jair Bolsonaro reclamou que o Brasil vivia "o governo da entregação”. E alardeou: "Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e, hoje em dia, não tem esse problema em seu país — se bem que não prego que façam a mesma coisa com o índio brasileiro; recomendo apenas o que foi idealizado há alguns anos, que seja demarcar reservas indígenas em tamanho compatível com a população."

STF volta a suspender o julgamento

O Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou na última quinta, dia 2, mais uma sessão do julgamento sem que o caso tivesse um desfecho.

Nesta última sessão, a corte ouviu advogados representantes de associações rurais favoráveis ao estabelecimento de um marco temporal para as demarcações de terras indígenas.

Segundo defensores desse conceito, só podem reivindicar a demarcação de terras indígenas as comunidades que as ocupavam na data da promulgação da Constituição: 5 de outubro de 1988.

Também se pronunciou na sessão o procurador-geral da República, Augusto Aras, que disse ser contrário ao estabelecimento do marco.

"A nossa Constituição Federal reconheceu direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam os índios", afirmou o procurador. Segundo ele, "demarcar consiste em atestar a ocupação dos índios como circunstância anterior à demarcação".

Na quarta (1º), haviam sido ouvidos representantes de comunidades indígenas e de instituições que os apoiam – todos também contrários ao marco temporal.

Essas organizações, assim como as entidades ruralistas, participam do julgamento como amici curiae (expressão em latim que significa "amigos da corte" e designa grupos que apresentam argumentos para tentar influenciar os votos dos ministros).

O julgamento será retomado na quarta-feira (8), quando os ministros devem começar a a votar. O resultado tem repercussões para vários povos indígenas que pleiteiam a demarcação de territórios.

Comitê da ONU notifica Brasil por atrocidades contra indígenas e negros

Numa medida que aprofunda de forma importante a pressão internacional sobre o Brasil, o Comitê da ONU contra a Discriminação Racial notificou o governo por conta da situação da pandemia da covid-19 sobre a população indígena e a violência sobre negros.

O estado foi alvo de um mecanismo de alerta de atrocidades, usado pela entidade internacional para chamar a atenção em relação a uma crise iminente e riscos para uma população. A notificação ocorre no momento em que o Marco Temporal é ainda alvo de um debate no país, tanto no Supremo Tribunal Federal como no Congresso.

O ato do Comitê ainda ocorre no momento em que o presidente Jair Bolsonaro é alvo de denúncias por parte de entidades nacionais e estrangeiras no Tribunal Penal Internacional, em Haia, por genocídio.

O procedimento de alerta de atrocidades não é apenas uma carta de relatores da ONU denunciando ou pedindo explicações por parte do governo. Trata-se de um processo vinculante, ligado à Convenção da ONU contra todas as formas de Discriminação Racial e ratificada pelo Brasil em 8 de dezembro de 1969.

Em termos legais, o cumprimento da recomendação por parte do Brasil é obrigatório, ainda que não exista forma de punir de forma imediata o governo que a desrespeite.

Desde 1994, tal procedimento já foi usado para lançar alertas em situações de iminência de conflitos, em contextos que incluam discurso de ódio, padrões persistentes de racismo estrutural, incitação ao ódio racial e intolerância, dentre outros indicadores.

Caso o Comitê não receba notícias satisfatórias, pode acionar instâncias mais graves, como o Escritório da ONU de Prevenção de Genocídio, em Nova Iorque, ensejando, por exemplo, as consequências do regime da Responsabilidade de Proteger ou responsabilização criminal ante a Corte Penal Internacional em Haia.

Em junho de 2021, a Assessora do Secretário Geral da ONU sobre Prevenção de Genocídio, Wairimu Nderitu, já havia dado o alerta sobre a situação dos povos indígenas no Brasil.

O processo atual começou quando as entidades CIMI, a Franciscans International, a Faculdade de Direito da Unisinos e a Clínica de Direito da Cardozo Law School enviaram uma petição para o órgão da ONU. O Comitê, assim, decidiu abrir um procedimento para responsibilizar internacionalmente o Estado e as autoridades brasileiras responsáveis pelas atrocidades em curso contra os povos indígenas.

Em nota, o grupo de entidades informou que o Comitê "demostrou sua grave preocupação sobre o fato de o governo estar difundindo informações contra as medidas de saúde publica para conter a pandemia ("fake news"), resultando no enfraquecimento da adesão da população às recomendações baseadas em evidência científica".

"O Comitê ainda pede explicações pelo fato de que somente os indígenas vivendo em territórios demarcados têm se beneficiado das políticas de saúde indígena, deixando outros residindo em áreas urbanas ou terras em processo de demarcação sem a devida proteção", apontam.

"A notificação também se estende aos casos de ineficiência das políticas de saúde e negligência de hospitais onde habitam significantes populações indígenas, expondo a situação de falta de suprimento de oxigênio, o que exacerbou a taxa de mortalidade entre povos indígenas", dizem.

O Comitê ainda tomou conhecimento de que o governo não elaborou recomendações a nível nacional específicas aos sepultamentos e rituais indígenas, levando ao desrespeito das culturais tradicionais indígenas, e até mesmo sepultamento sem a autorização das famílias.

"Também foi negada a identidade indígena dos falecidos nos registros de óbitos, o que contribuiu para uma subnotificação das mortes indígenas", completa o documento.

Violência contra população afro-brasileira

A situação indígena não é a única que chama a atenção da ONU. Na mesma notificação, a entidade citou as operações policiais no Rio de Janeiro.

"A primeira situação relatada refere-se a uma operação realizada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro em 6 de maio de 2021 em Jacarezinho, que resultou na morte de 28 afro-brasileiros e deixou muitos feridos. A segunda situação diz respeito a uma jovem afro-brasileira grávida, que teria sido morta a tiros em 8 de junho de 2021, durante uma ação da Polícia Militar no Complexo de Lins Vasconcelos", apontou a carta da ONU.

As informações recebidas questionam a independência das investigações destes incidentes violentos, uma vez que supostamente está sob a responsabilidade da Polícia Civil do Rio de Janeiro.

"De acordo com as informações recebidas, os incidentes acima mencionados representam apenas dois exemplos recentes de violência sistêmica e discriminação racial contra afro-brasileiros por agentes do Estado, especialmente por membros de instituições policiais. Também é alegado que a falha do Governo do Brasil em responsabilizar as forças policiais por atos violentos e racistas contra afro-brasileiros, resultou na repetição de atos similares e perpetua o racismo estrutural prevalecente na aplicação da lei brasileira", alerta.

O Comitê da ONU agora quer informações do estado brasileiro sobre as investigações sobre a violência policial e o que tem sido feito para garantir que sejam conduzidas de forma independente, completa e imparcial.

A carta ainda pede esclarecimentos sobre "as medidas adotadas para prevenir a violência policial contra afro-brasileiros, bem como para indagar sobre a dimensão estrutural da violência policial e da discriminação racial contra afro-brasileiros".

Leia a notificação completa da ONU, de 25 de agosto de 2021, ao estado brasileiro:

Escrever para informar que, no decorrer de sua 104ª sessão, o Comitê considerou informações adicionais recebidas sob seu procedimento de alerta precoce e ação urgente, relacionadas à situação dos povos indígenas e afro-brasileiros, no contexto da COVID-19 no Brasil. A este respeito, o Comitê se refere a sua carta anterior de 7 de agosto de 2020 relacionada com o mesmo assunto.

Segundo as informações recebidas, a situação da COVID-19 no Brasil teve um impacto dramático sobre os povos indígenas, particularmente no Estado do Amazonas. As informações afirmam que as autoridades governamentais difundiram mensagens contra as medidas de saúde pública para conter a pandemia, resultando no enfraquecimento da adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas.

A informação alega ainda que a política de saúde indígena beneficia apenas os povos indígenas que vivem em terras indígenas oficiais ("Terra Indígena"), deixando desprotegidos aqueles que residem em áreas urbanas e rurais. As informações também alegam que a gestão ineficiente da saúde pública e a negligência dos hospitais nas regiões habitadas pelos povos indígenas, inclusive no que diz respeito à falta de estoque de oxigênio e de fluxo de emergência adequado de suprimento de oxigênio, exacerbou as mortes de COVID-19 entre os povos indígenas.

De acordo com as informações recebidas, o Governo do Brasil não emitiu uma recomendação em nível nacional que trate especificamente do respeito aos ritos funerários e enterros dos povos indígenas, levando ao desrespeito às tradições culturais dos povos indígenas e aos enterros sem autorização das famílias indígenas. Segundo consta, alguns cartórios de registro civil recusaram-se a reconhecer a identidade indígena do falecido, o que supostamente aprofundou a subnotificação das mortes indígenas.

O Comitê também recebeu informações alegando que a polícia realizou duas operações violentas nas favelas do Rio de Janeiro, em violação a uma decisão do Supremo Tribunal Federal de junho de 2020, que proíbe temporariamente as operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro enquanto durar a pandemia da COVID-19. Alegadamente, a polícia ignorou a proibição, pois o número de operações policiais aumentou em outubro de 2020 e no primeiro semestre de 2021.

A primeira situação relatada refere-se a uma operação realizada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro em 6 de maio de 2021 em Jacarezinho, que resultou na morte de 28 afro-brasileiros e deixou muitos feridos. A segunda situação diz respeito a uma jovem afro-brasileira grávida, que teria sido morta a tiros em 8 de junho de 2021, durante uma ação da Polícia Militar no Complexo de Lins Vasconcelos.

As informações recebidas questionam a independência das investigações destes incidentes violentos, uma vez que supostamente está sob a responsabilidade da Polícia Civil do Rio de Janeiro. Além disso, de acordo com as informações recebidas, em maio de 2021 a Secretaria da Polícia Civil do Rio de Janeiro impôs uma medida de sigilo de cinco anos sobre todos os documentos relacionados às operações policiais desde junho de 2020, que cobrem as operações ocorridas em Jacarezinho e no Complexo de Lins Vasconcelos.

De acordo com as informações recebidas, os incidentes acima mencionados representam apenas dois exemplos recentes de violência sistêmica e discriminação racial contra afro-brasileiros por agentes do Estado, especialmente por membros de instituições policiais. Também é alegado que a falha do Governo do Brasil em responsabilizar as forças policiais por atos violentos e racistas contra afro-brasileiros, resultou na repetição de atos similares e perpetua o racismo estrutural prevalecente na aplicação da lei brasileira.

De acordo com o artigo 9 (1) da Convenção e o artigo 65 de seu Regulamento Interno, o Comitê gostaria de solicitar ao Estado parte que, até 15 de outubro de 2021, forneça uma resposta às alegações acima descritas. Em particular, o Comitê solicita ao Estado Parte que forneça informações sobre:

(a) As medidas adotadas para assegurar que os povos indígenas tenham acesso sem discriminação a serviços de saúde, tratamento e vacinas de qualidade e culturalmente adequados contra a COVID-19, inclusive para aqueles indivíduos indígenas que vivem fora das terras indígenas oficiais ("Terra Indígena");

(b) As ações tomadas para incluir e consultar os povos indígenas no processo de tomada de decisão sobre as medidas para prevenir e combater a pandemia da COVID-19 e seus efeitos em suas comunidades;

(c) As medidas adotadas para registrar com precisão os falecimentos da COVID-19, incluindo os dos povos indígenas, e para assegurar que os enterros dos povos indígenas possam ocorrer de acordo com sua cultura e tradições, e em consulta com eles;

(d) As investigações iniciadas sobre os incidentes de violência policial contra afro-brasileiros acima mencionados, as medidas adotadas para garantir que sejam conduzidas de forma independente, completa e imparcial, e os resultados dessas investigações;

(e) As medidas adotadas para prevenir a violência policial contra afro-brasileiros, bem como para indagar sobre a dimensão estrutural da violência policial e da discriminação racial contra afro-brasileiros, e informar o Comitê sobre os resultados;

(f) As medidas tomadas para garantir o pleno cumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal de proibir operações policiais em comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia da COVID-19.

Yanduan Li
Presidente do Comitê


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