28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Nove grandes erros que os militares brasileiros nunca reconheceram

Publicado em 19/08/2021 12:00 -

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O desfile de veículos blindados em Brasília no mesmo dia da votação da PEC do voto impresso não foi apenas uma demonstração patética de (falta?) de força, mas também uma evidente ameaça às instituições democráticas pelas Forças Armadas do Brasil – algo que jamais poderia acontecer em um regime democrático onde os militares são controlados pelo poder civil.

Na mesma linha, as mais recentes manifestações políticas do ministro da Defesa, general Braga Netto, acompanhado pelos comandantes das três Forças Armadas brasileiras, em tom ameaçador ao senador Omar Aziz e condicionando as eleições de 2022 ao voto impresso são também vergonhosas e lamentáveis. São também exemplos do que o próprio senador Aziz disse: há sim uma banda podre entre nossos militares que, incapaz de autocrítica, força autoritariamente as ideologias das FFAA à sociedade em claro desrespeito à Constituição e ao controle civil.

Todos os países – em especial os de tamanho continental, como o Brasil – precisam de forças armadas. Exército, Marinha e Força Aérea são instituições fundamentais para o funcionamento de todos os estados modernos. O próprio nascimento do “Estado-Nação” na Europa, segundo o cientista político Charles Tilly, tem a ver com o jogo equilibrado de organizações políticas que conseguiram juntar a concentração de capital e centralização da coerção nas mãos de uma única organização política hierárquica. Desde então, principalmente após a Revolução Francesa no século 19, as forças armadas passaram, cada vez mais, a serem instituições de estado, e não de governos.

Em regimes autoritários, como era a realidade da maioria dos países do mundo até o fim da Guerra Fria, as forças armadas eram e são importantes instrumentos de poder doméstico. No entanto, em estados democráticos, há algumas dificuldades em lidar com o poder dos militares. Como assegurar que os cidadãos em armas não as utilizem contra seus próprios concidadãos? Como garantir que os cidadãos em armas respeitem os valores constitucionais e estejam a serviço da sociedade, mas distantes dos braços, corações e ideologias dos governantes da ocasião?

No campo das relações civis-militares, a ciência política busca resposta a essas perguntas, dentro do que o cientista político Samuel Huntington chamou de “dilema dos guardiões”. Ainda que não haja uma resposta simples e rápida, alguns quesitos são unanimidade entre os acadêmicos: 1) o controle dos militares pelos civis e 2) o respeito à ordem constitucional.

As Forças Armadas brasileiras são, desde a independência do Brasil, instituições que se organizam e atuam politicamente, confundindo o elemento primário de suas funções de estado com funções de governo. Torna-se especialmente difícil para nossas Forças a compreensão de como atuar em um regime democrático, algo que esperava-se resolvido na Nova República, mas que degringolou rapidamente desde o governo de Dilma Rousseff.

Por mais que tenham funções fundamentais para o país, com elogiosas atuações em muitos campos (como a defesa de fronteiras, do espaço aéreo, do mar continental, atuação em desastres e emergências e em operações de paz), a impunidade e os erros institucionais e políticos de nossas forças e de parte significativa de nossos militares deixam um legado de erros históricos.

É preciso que a sociedade brasileira entenda que não é normal, e que não deve ser normal, que militares e suas instituições atuem impunemente contra seus próprios cidadãos ou contra a ordem constitucional. Militares não se tornam acríticos ou isentos de qualquer erro simplesmente por sua formação.

Está na hora de os integrantes das nossas Forças Armadas entenderem que são parte da sociedade brasileira, não seus donos, tutores ou guias. Precisamos muito de militares, mas militares dispostos a serem vistos como seres humanos, passíveis de erros e sujeitos a punições como quaisquer outros.

Precisamos, acima de tudo, de Forças Armadas comprometidas com a ordem democrática que a sociedade brasileira construiu a duras penas, contra os próprios excessos cometidos pela caserna. Falta às nossas instituições militares compreender que subordinação ao poder civil não significa uma inferiorização do cidadão em armas, mas sim que estes recebem a missão única e exclusiva de defesa última, pelo uso legítimo da força, dos valores democráticos partilhados por uma sociedade através de uma Constituição – o que o filósofo Jürgen Habermas chamou de “patriotismo constitucional”.

Precisamos ainda de Forças Armadas capazes não apenas de reconhecer seus erros institucionais e os erros de seus integrantes, mas também capazes de se desculpar por seus erros.

Elenco a seguir algumas das mais graves situações nas quais as Forças Armadas brasileiras erraram, ao longo de sua história recente, mas jamais entenderam seus erros ou pediram desculpas à sociedade por eles:

1) As ameaças às instituições democráticas e aos poderes do Estado. Incluo aqui: a carta ao senador Omar Aziz; a ameaça à realização das eleições de 2022 se não pelo voto impresso; a participação na conspiração política que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff; os tuítes de Villas Bôas e do alto-comando do Exército ameaçando o STF às vésperas do julgamento do caso Lula em 2018; o voo do ministro da Defesa, com o presidente da República, em uma manifestação que pedia o fechamento do Congresso e do STF; a defesa pelo Clube Militar da supressão da democracia, da perseguição a cidadãos brasileiros, e da apologia a torturadores e à ditadura; e o patético desfile de veículos blindados em Brasília na tentativa de constranger o Congresso Nacional no dia da votação da PEC do voto impresso;

2) A incompreensão do seu lugar em um estado democrático de direito. Refiro-me neste ponto à ideia de que são eles que devem escolher qual tipo de regime político o país deve ter; à autorização dada pelo comandante do Exército para que militares da ativa atuassem em cargos do primeiro escalão no atual governo – incluindo ministérios; à visão deturpada de que detêm um autointitulado poder moderador da política nacional – como a falácia do general Heleno ao dizer que o artigo 142 da Constituição abriria espaço para um golpe militar; às celebrações do 31 de março de 1964 como uma “revolução” (sic) positiva para a ordem política e a história do país; à compreensão equivocada de que a ocupação e a repressão domésticas são missões militares; e à fácil abertura para a entrada da política nos quartéis;

3) O protecionismo corporativista e a impunidade da Justiça Militar. Neste ponto, podemos listar: a falta de punição ao general Eduardo Pazuello por sua transgressão disciplinar ao participar de um comício político; a absolvição em 1988 de Jair Bolsonaro da acusação de planejar um atentado terrorista contra a própria instituição do Exército; as punições brandas ao general Hamilton Mourão em atos de insubordinação contra dois presidentes da República; as punições seletivas a militares progressistas e absolvições de militares conservadores, reafirmando o caráter ideológico nos quartéis; a tentativa de julgar civis que criticarem as Forças na Justiça Militar; e os 80 tiros de fuzil contra um cidadão inocente e desarmado;

4) A incompetência e má gestão nas missões assumidas em temas alheios às suas formações. Incluo aqui: a gestão desastrosa do general Pazuello e demais militares no Ministério da Saúde; a participação de militares nas denúncias de corrupção junto à Saúde para a compra superfaturada da vacina indiana Covaxin; o negacionismo científico na gestão da maior pandemia do último século; a recusa a comprar vacinas que poderiam ter salvo a vida de milhares de brasileiros; a ocupação maciça em cargos da gestão pública por militares da ativa e da reserva em campos alheios à Defesa; o negacionismo no Ministério de Minas e Energia da crise energética que se avizinha;

5) Os 21 anos de ditadura e os crimes cometidos por militares em nome do estado. Incluo neste erro: as perseguições, mortes torturas e desaparecimentos feitos em nome do estado; a herança da hiperinflação, sucateamento da máquina pública e explosão de desigualdade social; os casos de corrupção jamais investigados ou punidos; a destruição de documentos históricos do período; a herança legal da ditadura que ainda é usada para monitorar, ameaçar e censurar opositores do governo do qual optaram por fazer parte; e a manutenção das homenagens a torturadores, reconhecidos pela Justiça;

6) As deturpações da História e da ciência com objetivos corporativistas e de aumento de ganhos pessoais. Listo aqui: as tentativas de reescrever a História, em especial no que diz respeito às atuações das Forças na política; as paranoias, repetidas sem lastro há décadas (como a suposta ameaça comunista de João Goulart em 1964), que guiam ações contra os entendimentos históricos e científicos; a blindagem de seus currículos e instituições de ensino dos valores democráticos estabelecidos pela Constituição de 1988; a militarização de políticas de segurança pública e as operações de Garantia da Lei e da Ordem; o engodo aos cientistas e programas de pós-graduação que investiram em parcerias para capacitação e criação dos programas de pós-graduação militares; a deturpação de editais de pesquisa para o acúmulo de bolsas a pesquisadores ligados a instituições militares; a ocupação de associações científicas, com a “missão” de constranger pesquisas e pesquisadores críticos à atuação das Forças Armadas; o desmanche das instituições de educação superior e agências de desenvolvimento à pesquisa que ajudaram a criar, como Capes e CNPq; a manutenção da Escola Superior de Guerra, a ESG, e sua fábrica de ideologias que permeiam a formação e a capacitação dos militares;

7) A existência do “Partido Militar”, que orienta e subsidia atuações políticas: Neste ponto, podemos incluir o fato de deixarem de ser instituições de estado ao abraçarem a candidatura, a campanha e o governo de Jair Bolsonaro; de não aceitarem e boicotarem os esforços da Comissão Nacional da Verdade; a ocupação por militares do cargo de Ministro da Defesa; a pressão política que aliou a reforma do plano de carreiras e a preservação do regime previdenciário militar excepcional durante a reforma da Previdência; aqueles militares da ativa ou da reserva que, expurgados do governo, passaram a criticar a participação castrense na política lançando as suas próprias candidaturas a cargos eletivos;

8) A manutenção de instituições, princípios e normas incompatíveis com os valores inclusivos e democráticos do século 21. As Forças se mantêm, ainda hoje, como instituições intrinsecamente machistas, misóginas, racistas e homofóbicas, glorificam como heróis de ditadores, torturadores e assassinos de seus próprios concidadãos e são incapazes de olhar criticamente para o seu passado a fim de rever eventos históricos, como a Guerra do Paraguai ou os golpes de estado que praticaram. Também se recusam a conferir transparência a eventos históricos; mantêm pensões a filhas de militares, uma concepção de desenvolvimentismo predatório, incompatível com a sustentabilidade e a preservação ambiental e desrespeitam povos indígenas e quilombolas sob o argumento de preservação da unidade nacional; 

9) A má gestão de recursos orçamentários e a falta de transparência de processos. Entram aqui: os gastos exorbitantes em alimentos de luxo, em um contexto geral de corte de gastos; o alto percentual (cerca de 80%) do orçamento gasto em pessoal; o uso da Força Aérea Brasileira para tráfico internacional de drogas; o desenvolvimento de programas estratégicos sem a devida abertura, transparência e supervisão pela sociedade brasileira.

Cabe aos nossos militares compreenderem que são permeados de ideologia, o que os torna tão criticáveis quanto quaisquer outros indivíduos ou instituições. É preciso que compreendam que jamais será possível equiparar as violências cometidas por agentes armados do estado, treinados e equipados para guerras, contra a sua própria população com as cometidas por aqueles que resistiram e resistem a um governo antidemocrático e repressor.

Ou a sociedade se mobiliza para exigir de nossas Forças Armadas e seus integrantes desculpas honestas e um retorno aos quartéis e às suas missões constitucionais, ou então teremos eternamente uma democracia frágil, tutelada, na qual a sociedade se militariza ao invés dos militares se democratizarem. Repito: não é normal que cidadãos em armas possam impunemente ameaçar indivíduos no exercício de seus cargos e a própria ordem democrática do país. Triste de um povo e suas instituições que seguem repetindo seus erros.


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