28/03/2024 - Edição 540

Eles em Nós

46 anos separam estas duas fotos, mas elas parecem idênticas

Publicado em 19/08/2021 12:00 - Idelber Avelar

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46 anos separam estas duas fotos, mas elas parecem idênticas. A primeira é de ontem (15/08), com a embaixada americana sendo evacuada no desespero enquanto o Talibã tomava Cabul. A segunda é de 1975, com a embaixada americana sendo evacuada no desespero enquanto o VietCong tomava Saigon.

O efeito político é parecido: o império americano humilhado e sendo chutado para fora depois de mais uma ocupação fracassada.

É comovente ver a imprensa americana entrevistando os artífices da catástrofe com as perguntas de sempre: por que deu errado? Por que os US$83 bilhões gastos em equipamento militar não garantiram que o exército afegão derrotasse ou pelo menos contivesse o Talibã? Por que os soldados afegãos não lutaram?

As perguntas que importam, claro, não são essas. E é por isso que quem deveria estar sendo entrevistado são os que, em 2001, avisaram que o resultado da ocupação seria exatamente esse: centenas de bilhões em gastos, milhares de mortes americanas (com essas eles se importam), centenas de milhares de mortes afegãs (com essas eles não se importam), destruição do país e ainda mais revolta e ressentimento, que é o terreno em que se gesta o terrorismo.

Para encontrar o problema, você pode voltar 20 anos, mas se quiser pode voltar 40, quando os EUA também intervieram no Afeganistão, só que naquela feita do lado oposto, fomentando e financiando a guerrilha mujahideen que se transformaria no Talibã.

Em 1981, o inimigo a ser detido era o comunismo. Em 2001, o fundamentalismo islâmico. Em ambos os casos, a mesma concepção de que uma outra sociedade, com sua própria história milenar, é uma espécie de tabula rasa sobre a qual você pode impor, à base de bombas, a sua concepção do que é democracia.

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Tem culpa pra todo mundo aqui, mas o desastre vai ser posto na conta de Biden. A jogada de Trump funcionou: em fevereiro de 2020, ele fez um acordo com o Talibã, o mesmo com quem Bush, 20 anos antes, dizia que era inaceitável negociar. Segundo o acordo, o Talibã cessaria os ataques contra norte-americanos em troca de uma gradual redução das tropas, com data para saída final em maio de 2021, depois prorrogada por Biden.

O Talibã cumpriu o acordo e as baixas americanas nesse período foram mínimas. A guerra do Afeganistão, nos EUA, já era muito impopular, porque assim são as guerras de ocupação nos EUA: começam muito populares e terminam como batatas quentes das quais os políticos precisam se livrar.

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Quanto à pergunta dos generais estupefatos ("por que o exército afegão, tão caro, se rendeu sem luta?"), ela simplesmente ignora a dinâmica do lugar que invadiram. O Afeganistão está em guerra desde sempre, a guerra é o estado percebido como natural, e para sobreviver em um contexto assim, o combatente faz os acordos que tiver que fazer.

Quem vai dar a vida para manter um governo que é visto pela população como uma marionete do império? Se o império foi embora, você tira o uniforme, aceita a anistia, e vai cuidar da sua vida. Só alguém que não entende esse dinâmica pode se surpreender com os ex oficiais do exército afegão dando as boas-vindas aos Talibãs que chegavam ao palácio presidencial que esses oficiais teriam supostamente que defender.

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Quem quiser ver nisso algo a comemorar, que comemore, mas que não se esqueça: são dessas catástrofes humanitárias que aparecem, na Europa, os Orbáns que inspiram os Bolsonaros.

DESMEMÓRIA

Sei que muitas coisas que dizemos que só acontecem no Brasil acontecem em todo lugar. Conhecemos a famosa frase de Tim Maia e sabemos que, apesar da genialidade de Tim, ela está errada: em todo lugar há traficante que cheira, há puta que goza, há pobre de direita etc.

Mas ESTA é uma declaração que, no contexto latino-americano, só é possível no Brasil, o país da desmemória. É impensável na Argentina, é impensável no Uruguai, é impensável no Chile.

Como assim, Braga Netto? "Muitos não estariam"? Muitos não estão, seu filho da puta. Marighella não está, Herzog não está, um pedaço da minha família não está, mais de 2.000 waimiri-atroari não estão, o filho de Zuzu Angel não está. Mas no Brasil a denegação, a mentira sobre o passado, é o registro do que nos governa.

Sempre lembrando: Este não é um milico qualquer. É o atual Ministro da Defesa da República Federativa do Brasil.

MORTO VIVO

Sergio Reis é um nome que estou acostumado a ouvir desde a infância porque, sacumé, sou de Uberaba.

Comigo acontece com frequência algo que, imagino, deve acontecer com vocês de vez em quando também. Morre alguém e a primeira reação que você tem é: "uai, mas esse cabra já não estava morto?"

Que eu me lembre, o Sergio Reis é o primeiro caso de alguém que aparece vivo e eu penso: "uai, mas ele já não tinha morrido há muito tempo?"

HISTÓRIA DE FUTEBOL

Hesitei entre contar esta história em um grupo fechado nosso, de futebol, e contá-la aqui no aberto. Vai aqui mesmo, porque é do interesse de todo mundo, mesmo de quem não gosta de futebol.

O tema é a fabricação de memórias falsas.

Como ando meio cansado da política, depois de escrever um livro bem gordo sobre o assunto, fui fazer o experimento no futebol. Faz alguns meses que entrei em tudo quanto é grupo de futebol do passado.

É espantoso como as pessoas fabricam memórias falsas. Gente de 40 anos de idade que nunca morou em BH “se lembra” de que João Leite era um “goleiraço”, gente que jura que a Argentina de 1974 (aquela que conseguiu passar 90 minutos sem ver a bola contra a Holanda) era um “timaço” etc. Basta publicar a foto de algum jogador do passado para que nasça um novo craque.

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A coisa começou a me irritar a tal ponto que concebi um experimento. Procurei um amigo meu que tem cara de atleta, não tem uma imagem conhecida na internet e pedi permissão para usar fotos dele no experimento. Ele topou ser meu cúmplice.

Fotoshopamos esse amigo com um uniforme do Fluminense em um time que ninguém conhece. Era o Fluminense de 1988. Inventamos um nome bem absurdo para o craque: JORJÃO FOGUETE.

E tasquei o post lá, falando do grande craque que foi Jorjão Foguete. Em umas poucas horas, dezenas e dezenas de pessoas “se lembravam” de ver gols antológicos de Jorjão Foguete no Maracanã, enquanto eu e meu amigo rachávamos os bicos de rir.

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24 horas depois, fiz outro post, dizendo que o grupo tinha caído em uma pegadinha, que Jorjão Foguete jamais existiu, que o Fluminense de 1988 era uma merda de time que não conseguiu nem chegar à final do Campeonato Carioca, e que todas essas informações eram facilmente confirmáveis pelo Google.

Fui expulso do grupo por ser “desonesto”, o que evidentemente não tem importância nenhuma.

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E vocês se espantam com a mamadeira de piroca bolsonarista? A mamadeira de piroca é a matéria do nosso cotidiano, até mesmo quando as pessoas falam de seu próprio passado. Agora imagine a quantidade de gente que está na cadeia porque alguém “se lembra” de alguma coisa.

Certo estava o filósofo Neymar: as pessoas sentem saudades do que elas não viveram.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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