16/04/2024 - Edição 540

Judiciário

Usando tornozeleira eletrônica, jovem não tinha onde morar e Estado a deixou quatro meses sem poder encontrar a família

Publicado em 10/08/2021 12:00 -

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Desde abril deste ano, Natália de Oliveira, 20 anos, esteve à procura um lugar seguro para viver. Ela foi presa preventivamente em agosto de 2020 na penitenciária de Rio Brilhante, no estado do Mato Grosso do Sul, acusada de tráfico de drogas. Em 29 de abril deste ano, a jovem passou a cumprir prisão domiciliar usando uma tornozeleira eletrônica como medida alternativa à prisão preventiva, autorizada pelo juiz do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) Raul Ignatius Nogueira em outubro de 2020. A medida, no entanto, dificultou a vida de Natália, uma vez que o estado do Mato Grosso do Sul não permite que ela responda ao processo próxima da família, em São Paulo, seu estado de origem. Apenas na noite do último dia 4 o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) permitiu que ela retire a tornozeleira do Mato Grosso do Sul para trocar por uma de São Paulo

Natália esteve à procura um local para ficar desde que saiu da prisão, mas acabou encontrando frio, fome e dificuldades nos locais em que conseguiu um teto, como contou à Ponte. “Sai da cadeia só com a roupa do corpo, passei frio aqui, consegui algumas doações, mesmo assim passei muito frio”.

Ao sair da penitenciária, Natália foi viver com uma parente de sua mãe que não conhecia em Campo Grande, capital do estado de MS. “Fiquei dois meses com essa prima, mas ela teve um problema de saúde e iria precisar ir pra Brasília, então fiquei sem endereço”, relata. Em seguida a essa passagem ela foi viver na casa de uma colega que conheceu na prisão na cidade de Amambai, que fica há 351 km de distância da capital. 

Natália, que tem problemas psicológicos e toma remédios controlados desde que entrou na cadeia, se deparou com diversas brigas dentro dessa casa e agora procura novamente um local para morar, uma vez que é reiteradamente cobrada para sair da residência. “É muito constrangedor, só fico dentro do quarto, não saio para nada, não quero dar trabalho pra ninguém, tenho crises de ansiedade aqui e é horrível, toda vez só vem a vontade de arrancar isso do meu pé e ir embora para ficar com a minha família”, desabafa.

Hoje ela sonha em voltar para São Paulo e retomar a vida conseguindo um emprego. “Sempre trabalhei como babá, eu gosto muito de criança, mas o que aparecer no momento eu aceito, meu maior sonho é ir para são Paulo, vai fazer um ano dia 21 de agosto, que não vejo minha família, que saí de casa e não voltei mais, isso é o que mais me faz sofrer todo dia. Parece que o juiz não me deixa ir embora, mesmo eu não tendo condenação nem sentença”, lamenta.

Assim como Natália, o sonho da auxiliar de limpeza, Vânnia Silva, 54 anos, é reencontrar a filha. “Ela passa necessidade de alimentação, objetos de higiene, me sinto muito angustiada, muito triste e às vezes tento espairecer um pouco, mas é difícil lidar com essa situação. O psicológico da gente não aguenta tanta coisa. Eu tenho vontade de largar o trabalho aqui e ir atrás dela, acionar o Ministério Público, chamar a TV. Não tenho como ajudar financeiramente pois o meu salário mal dá pra pagar meu aluguel. Então peço ajuda para as pessoas que conheço e um vai pedindo pra outro e conseguimos enviar um Sedex com produtos de higiene”, diz a mãe desesperada. 

Diante da distância da filha, Vânnia se sentiu injustiçada. “Vejo o sistema de justiça como um lixo que age de forma melhor com os que têm dinheiro. Minha filha é ré primária e está em um lugar sozinha, sem família. Se é para ficar usando a tornozeleira que fique quanto tempo for, mas aqui comigo que sou a mãe dela e não em um lugar sem ninguém de favor.”

Diante das dificuldades, a Pastoral Carcerária do estado de MS prestou apoio a Natália desde sua saída da capital Campo Grande, como explica Rosilda Ribeiro Rodrigues Salomão, coordenadora nacional para a questão da mulher encarcerada da pastoral. “A região que ela está é uma das mais frias do estado, todos os dias eu converso com ela, buscando saber se está tudo bem e suprindo as necessidades básicas dela junto com a igreja local. Eles levavam alimentação, cesta básica, mas infelizmente as dificuldades são muito grandes, o local onde ela está não tem fogão, ela precisa ir para o mato, buscar lenha para acender o fogo para poder fazer alguma coisa pra comer”, conta.

Rosilda revela também que foi necessário enviar roupas para que Natália não passasse frio e dinheiro para que ela pudesse se alimentar após passar três dias sem comer. “Mandamos para ela roupa de frio, cobertor, tudo que ela não tinha nessa casa, mas assim mesmo é pouco. Teve um dia que mandamos um valor para ela comprar comida, fazia três dias que ela não comia. Não sei como um ser humano pode viver assim, é muita privação, é muita solidão, é uma mulher que merece muita ajuda. Ela tem tudo para vencer, se nós conseguirmos ajudá-la a não voltar para o sistema carcerário. Se ela continuar sofrendo tudo isso ela não vai resistir e pode reincidir, tudo o que nós não queremos”, finaliza.

No dia 2 de junho, Daniel de Oliveira Falleiros Calemes, Defensor Público do estado do MS, solicitou a transferência de Natália para SP alegando que, ao chegar na casa em Amambai, Natália “percebeu a absoluta ausência de condições mínimas para se instalar e viver dignamente”. “Apenas para dar um exemplo, a comida tem que ser feita em um latão com restos de madeira, não há lugar adequado para dormir. Além disso, a acusada está vivendo da ajuda de terceiros, porquanto não possui emprego ou renda para se alimentar”, aponta o documento.

Já no dia 6 do mesmo mês, Estéfano Rocha Rodrigues da Silva, promotor de Justiça do Ministério Público do estado de MS se manifestou favorável à mudança. Ainda assim Ricardo Teixeira de Brito, diretor da Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (Agepen) do estado de MS apontou nos autos do processo que é “vedado o uso da tornozeleira fora dos limites do Estado de Mato Grosso do Sul, conforme art.5º, do Provimento do TJMS nº 151/2017”.

O provimento também define que é responsabilidade da administração da Agepen “adequar e manter programas e equipes multiprofissionais de acompanhamento e apoio à pessoa monitorada” e “orientar a pessoa monitorada no cumprimento de suas obrigações e auxiliá-la na reintegração social, se for o caso”, o que não ocorreu com Natália, conforme os relatos recebidos pela reportagem. 

Na visão de Viviane Balbuglio, advogada e integrante da Frente Estadual Pelo Desencarceramento de São Paulo, embora Natália esteja em uma situação que seja, segundo a lei, melhor do que presa em uma unidade prisional, ela continua presa com a tornozeleira eletrônica e sob prisão provisória. “Ou seja, está respondendo por uma acusação criminal e vivendo sob um futuro bastante incerto. Seria importante que as instâncias da Justiça e governamentais envolvidas no caso dialogassem para que se tenha uma compressão das necessidades dela e da família, para que assim seja viável para ela responder as acusações e organizar a sua vida simultaneamente”, explica. 

A advogada esclarece que outras medidas poderiam ser tomadas no caso de Natália. “Se a lei do estado do Mato Grosso do Sul proíbe que pessoas com tornozeleira eletrônica saiam do estado usando o aparelho, será que outras medidas não seriam mais adequadas para o caso? Além disso, é bastante estigmatizante usar uma tornozeleira eletrônica, é mais difícil ainda de acessar o mercado de trabalho, principalmente sem uma rede de apoio próxima, o que é a situação vivida por ela e por muitas outras mulheres em todo o país.”

Outro ponto destacado por Viviane é a necessidade de uma rede de apoio para que a medida cautelar seja cumprida. “É um direito de toda pessoa em prisão provisória que ela responda o processo fora do cárcere, mas é necessário que ela tenha o mínimo de condições como rede de apoio, casa, renda e saúde para que ela possa cumprir com as obrigações e demandas da Justiça e de outras instâncias que estejam envolvidas no processamento do caso”. 

Em especial se essa saída se dá condicionada ao uso de uma tornozeleira eletrônica, aponta Viviane, “que exige tomada para ser carregada, tem um perímetro de monitoramento e pode gerar um estigma que é contraproducente frente às incertezas e angústias vividas pelas pessoas em seu dia a dia”.


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