29/03/2024 - Edição 540

Especial

O último suspiro do bolsonarismo

Publicado em 23/07/2021 12:00 -

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O ministro da Defesa, Walter Braga Netto, mandou dizer ao presidente da Câmara, Arthur Lira, que não haverá eleições no ano que vem se não houver voto “auditável”, com comprovante impresso, conforme revelou reportagem do jornal O Estado de SP. Quando fez a advertência, Braga Netto estava acompanhado dos chefes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

Não é a primeira vez que o governo de Jair Bolsonaro faz esse tipo de ameaça golpista. O próprio presidente, no dia 8 passado, mesmo dia em que Braga Netto passou seu perigoso recado, declarou: “Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”. Para Jair Bolsonaro, a eleição só será “limpa” se for com o tal voto impresso, que o Congresso tende a rejeitar.

Como se sabe, a defesa do voto “auditável” é pretexto de Bolsonaro para anunciar, com meses de antecipação, que não aceitará o resultado das eleições do próximo ano caso seja derrotado. Ao se envolver nessa ameaça, o ministro Braga Netto, general da reserva, arrasta os militares perigosamente para o centro da crise – e, mais do que nunca, o que se espera é que os comandantes das Forças Armadas, que não são políticos nem devem ter compromisso com este ou aquele governo, devem se esforçar para deixar claro seu respeito pela democracia, diferenciando-se da extrema-direita bolsonarista.

No entanto, esses mesmos comandantes, dois dias antes da ameaça de Braga Netto, deixaram subentendida a possibilidade de uma ruptura institucional, em uma nota do Ministério da Defesa em repúdio ao presidente da CPI da Pandemia, senador Omar Aziz, depois que este disse haver um “lado podre nas Forças Armadas envolvido na falcatrua dentro do governo”. Na nota, os comandantes e o ministro da Defesa dizem que as Forças Armadas “não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”.

O fato é que os militares da ativa e da reserva hoje no governo pleiteiam o melhor dos dois mundos: querem o bônus do poder sem o ônus do escrutínio democrático. E, com ambições diversas, se deixam usar por Bolsonaro para chantagear os brasileiros, o que é, isso sim, fator de risco à democracia e à liberdade que os militares dizem defender.

Na nota em que pretendeu negar as informações publicadas pelo Estadão a respeito de suas ameaças, o ministro Braga Netto reiterou a defesa do tal voto impresso. “Acredito que todo cidadão deseja a maior transparência e legitimidade no processo de escolha de seus representantes”, disse Braga Netto na mensagem, sem explicar, no entanto, o que o Ministério da Defesa tem a ver com o sistema de votação.

O fato, incontornável, é que Bolsonaro investe na crise do voto “auditável”, enredando os militares, para tentar esconder a extrema fragilidade de seu governo. Não parece ser por acaso que o atrito protagonizado pelo ministro da Defesa, tendo os comandantes das Forças Armadas como coadjuvantes, tenha ocorrido na semana em que Bolsonaro deu a Casa Civil, centro nervoso do governo, ao líder mais relevante do Centrão, o senador Ciro Nogueira (PP-PI). Com isso, o Centrão, que já colonizava o governo, passa efetivamente a comandá-lo.

Ao Centrão, que agora dispõe de dedos e anéis, não interessa a crônica baderna bolsonarista, razão pela qual o presidente da Câmara, Arthur Lira, depois de receber o recado ameaçador do ministro Braga Netto, disse a Bolsonaro que continua disposto a apoiá-lo, mas avisou que não dará aval a nenhuma aventura golpista.

No entanto, a natureza de Bolsonaro sempre fala mais alto, e o presidente voltou a dizer que não aceitará o resultado da eleição se for mantido o atual sistema de votação, sugerindo que a Justiça Eleitoral opera fraudes em segredo. “Não posso admitir que meia dúzia de pessoas tenha a chave criptográfica de tudo e, de forma secreta, conte votos numa sala secreta lá no Tribunal Superior Eleitoral”, declarou o presidente à Rádio Banda B, de Curitiba.

Ao reiterar suas ameaças, Bolsonaro apenas confirma seu definhamento político, algo que nenhum arreganho travestido de advertência militar é capaz de reverter.

O general que se tornou um ‘soldado’ do bolsonarismo

As credenciais que levaram o general Walter Braga Netto ao governo de Jair Bolsonaro eram a de um militar experiente que executou a árdua missão de ser o interventor da Segurança Pública no Rio, em 2018, por designação de Michel Temer. Pelas mãos de oficiais que já haviam embarcado no projeto de Bolsonaro, chegou à Casa Civil em fevereiro de 2020. Desde que assumiu a pasta e, posteriormente, o Ministério da Defesa, passou a ser visto como um militar que aderiu ao bolsonarismo e se transformou em um “soldado” do presidente na marcha a favor do tensionamento com as demais instituições e da politização das Forças Armadas.

Considerado pelos pares um enérgico "cumpridor de ordens" e totalmente fiel ao presidente, Braga Netto virou uma eminência parda no governo. Antes dos últimos atritos, setores do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Congresso e alas moderadas da caserna vinham manifestando incômodo com o que classificavam como patrocínio de Braga Netto à radicalização.

Os relatos colhidos pela reportagem com pessoas que interagem ou interagiram com o general apontam que o ministro é autoritário, avesso a discussões e alguém que não reconhece que errou ao aceitar a tarefa de misturar Forças Armadas com a política.

No primeiro escalão de um governo em que todos ganham pontos quando alimentam narrativas contra adversários na internet, ele vai na contramão. Não é adepto das redes sociais, mas se articula no “mundo real” conforme Bolsonaro lhe orienta. O contexto da ida de Braga Netto para a Defesa deixou claro o propósito da escolha feita pelo presidente.

O fim de março foi marcado por demissões coletivas de militares. Junto com o então ministro Fernando Azevedo e Silva, os três comandantes das Forças renunciaram. O motivo seria a recusa da cúpula militar em alinhar as tropas ao presidente. “Preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”, dizia a nota de Azevedo e Silva.

Nestes quatro meses desde a sucessão, Braga Netto contabiliza ao menos quatro situações em que anuiu a interesses do bolsonarismo. A primeira foi minimizar a não punição ao general da ativa Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, por participação em evento político com Bolsonaro no Rio.

O regramento disciplinar do Exército proíbe expressamente a conduta, mas nada aconteceu por intervenção do presidente. Depois da impunidade, em junho, Braga Netto disse que as Forças estão “coesas e disciplinadas”.

Em julho, ele liderou a dura reação ao presidente da CPI da Covid, senador Omar Aziz (PSD-AM), que, sem generalizar, mencionou um “lado podre” das Forças Armadas. A comissão é uma das principais fontes de problemas para o governo e para os militares que o compõem porque investiga a resposta à pandemia.

A nota, com tom de ameaça, teria sido publicada sem que os três comandantes fossem consultados. “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”, dizia o texto assinado por Braga Netto.

Em seguida, o comandante da Aeronáutica, Carlos Almeida Baptista Junior, foi ainda mais duro, em entrevista ao jornal O Globo. Entre outras coisas, disse que “homem armado não ameaça”. As reações da sociedade civil e do Congresso foram fortes, mas Braga Netto não sinalizou reprimendas.

Para membros da CPI da Covid, parte do ímpeto de Braga Netto é explicado pelo interesse corporativista de proteger membros das Forças Armadas que estão sendo investigados pela comissão. Denúncias de corrupção afetam fardados que foram cedidos ao Ministério da Saúde e a competência de militares que geriram o combate à pandemia é alvo de críticas.

O próprio general deverá ser convocado pelos senadores após o recesso parlamentar. Como chefe da Casa Civil, ele coordenava o Comitê de Crise da pandemia e a governança desse núcleo é questionada pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

Braga Netto também foi criticado pelos resultados que apresentou como interventor da Segurança do Rio. A missão não gerou resultados concretos para a redução da violência e da corrupção policial. Foi durante o período em que ele controlou as forças de segurança do Estado que a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados em um crime premeditado a cerca de 1 quilômetro da base da intervenção.

Representantes dos Poderes reagem a ameaça à eleição de 2022

Representantes dos três Poderes reagiram a ameaça feita pelo ministro da Defesa. Questionado, o vice-presidente Hamilton Mourão contestou Bolsonaro. "É lógico que vai ter eleição. Quem é que vai proibir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos república de banana."

Lira, por sua vez, negou ter sido ameaçado por Braga Netto. "A despeito do que sai ou não na imprensa, o fato é: o brasileiro quer vacina, quer trabalho e vai julgar seus representantes em outubro do ano que vem através do voto popular, secreto e soberano", tuitou o presidente da Câmara.

O vice-presidente da Câmara, Marcelo Ramos (PL-AM), afirmou no Twitter que "numa democracia não são os militares que dizem se tem e como tem eleição", mas a Constituição Federal. "A manifestação do presidente [da Câmara, Arthur Lira] de que teremos eleições com voto popular, secreto e soberano deixa claro que no Parlamento não há eco pra nada fora da ordem democrática", escreveu.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), também assegurou que as eleições de 2022 serão realizadas. "Seja qual for o modelo, a realização de eleições periódicas, inclusive em 2022, não está em discussão. Isso é inegociável", afirmou.

O presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, também divulgou que conversou com Braga Netto e Lira e que "ambos desmentiram, enfaticamente, qualquer episódio de ameaça às eleições”.

"Temos uma Constituição em vigor, instituições funcionando, imprensa livre e sociedade consciente e mobilizada em favor da democracia", escreveu nas redes sociais. Barroso tem se posicionado contra o voto impresso e já reafirmou que jamais foi registrado caso de fraude desde a implementação das urnas eletrônicas, em 1996, que o sistema de urnas eletrônicas é íntegro e permitiu a alternância no poder.

O ministro Edson Fachin, vice-presidente do TSE, também se manifestou. Segundo noticiou o Estado de S.Paulo, Fachin afirmou que o sistema eleitoral brasileiro "encontra-se desafiado pela retórica falaciosa, perversa, do populismo autoritário" e que não é de se espantar que um "líder populista" deseje "criar suas próprias regras para disputar as eleições".

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), tuitou: "Os representantes das Forças Armadas devem respeitar os meios institucionais do debate sobre a urna eletrônica. Política é feita com argumentos, contraposição de ideias e, sobretudo, respeito à Constituição. Na nossa democracia, não há espaço para coações autoritárias armadas."

No Congresso, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI da Pandemia, pediu a exoneração de Braga Netto. "A democracia brasileira é alvo de uma gravíssima ameaça, agora revelada. Ameaça armada, tentativa de amedrontar pelo terror. Braga Netto se revela: foi colocado onde está exatamente para isso, para ameaçar as instituições democráticas", disse.

O deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da oposição na Câmara, afirmou que vai propor que a Casa convoque Braga Neto para esclarecer os fatos. "É extremamente grave a denúncia de que o Ministro da Defesa teria ameaçado o Congresso Nacional. Não cabe ao Ministro da Defesa querer impor ao Parlamento o que deve aprovar nem estabelecer condições para que as eleições aconteçam", escreveu no Twitter.


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