26/04/2024 - Edição 540

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Cuba nega ‘repressão contra o povo’ e critica sanções americanas

Publicado em 23/07/2021 12:00 -

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Cuba classificou de "caluniosas" as sanções anunciadas ontem por Washington contra seu ministro da Defesa e negou que tenha havido na ilha "um ato de repressão contra o povo" durante os protestos do último dia 11.

Os Estados Unidos impuseram ontem sanções ao ministro cubano Álvaro López Miera e a uma unidade antimotins pela repressão às manifestações populares recentes na ilha. Mas o chanceler cubano, Bruno Rodríguez, afirmou que não houve em Cuba "um ato de repressão contra o povo, como não houve nenhuma explosão social".

"As sanções são irrelevantes, porque me consta que esse ministro não possui contas em bancos americanos e nunca me disse que estava interessado em fazer turismo em Miami, mas são relevantes a partir da implicação política agressiva", declarou o chanceler em entrevista coletiva.

Milhares de cubanos saíram às ruas de mais de 40 cidades de Cuba em 11 e 12 de julho aos gritos de "Estamos com fome!", "Liberdade!" e "Abaixo a ditadura!", em meio à pior crise econômica do país em décadas e ao maior aumento de infecções e mortes por covid-19 desde o início da pandemia.

As manifestações foram consideradas "pacíficas" pela CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) da OEA, que, ao condenar "a repressão estatal e o uso da força", relatou pelo menos uma morte e 151 pessoas presas ou com paradeiro desconhecido. A alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, pediu a libertação urgente de todos os detidos.

O chanceler não quis informar o número de detidos durante as manifestações, mas afirmou que a maioria foi libertada e que não há nenhum menor de idade preso. Também assinalou que, em todos os casos, foi respeitado o devido processo, com a assistência de advogados.

"Foram divulgadas listas de desaparecidos, declaro aqui que elas são absolutamente falsas e nego que haja um caso sequer", enfatizou Rodríguez, ante as múltiplas denúncias publicadas nas redes sociais, de detidos e pessoas não localizadas. O presidente americano, Joe Biden, ou funcionários do seu governo "não têm absolutamente nenhuma autoridade moral para pedir que sejam libertadas pessoas presas em Cuba.

Pouco antes, Rodríguez havia publicado no Twitter que os Estados Unidos "deveriam aplicar a si próprios a Lei Global Magnitsky, pelos atos de repressão cotidianos e brutalidade policial, que custaram 1.021 vidas em 2020". A Lei Magnitsky permite que os Estados Unidos sancionem estrangeiros suspeitos de violações graves dos direitos humanos ou corrupção em larga escala, e foi citada pelo Tesouro americano para justificar as sanções.

Além de López Miera, o Tesouro anunciou hoje que bloqueou os interesses e propriedades da Brigada Especial Nacional do Ministério do Interior de Cuba. Segundo a instituição, as sanções correspondem a supostos abusos dos direitos humanos ocorridos durante as manifestações recentes na ilha.

Sobre a preparação de uma flotilha de cubanos residentes nos Estados Unidos, que poderia chegar a águas cubanas a partir da Flórida, Rodríguez alertou Washington para agir "com seriedade, para evitar incidentes que não convêm a ninguém".

Fim do embargo dos EUA contra Cuba

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou uma carta aberta que pede ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, o fim das sanções econômicas contra Cuba. O documento foi publicado no jornal The New York Times e reúne mais de 400 assinaturas de ex-chefes de estado, intelectuais e ativistas.

A carta Let Cuba Live (Deixe Cuba Viver, em tradução) faz um apelo para que Biden rejeite as "políticas cruéis" que foram colocadas em práticas durante a gestão de Donald Trump. "É hora de dar um novo rumo adiante nas relações entre os Estados Unidos e Cuba".

O documento lembra que Cuba enfrenta um cenário de escassez de alimentos e medicamentos e diz que Trump endureceu o bloqueio econômico durante a pandemia, piorando a situação da ilha.

O ex-presidente colocou em prática 243 medidas coercitivas, como a proibição de remessas e fim de voos comerciais diretos entre os EUA e Cuba. As medidas "intencionalmente estrangularam a vida na ilha e criaram mais sofrimento", afirma a carta.

Consideramos inescrupuloso, especialmente durante uma pandemia, bloquear intencionalmente as remessas e o uso de instituições financeiras globais por parte de Cuba, visto que o acesso a dólares é necessário para a importação de alimentos e medicamentos". – Trecho da carta Let Cuba Live

O documento ainda relembra uma declaração de Joe Biden, em 12 de julho, dizendo que seu governo apoia o povo cubano. "Não há razão para manter a política da Guerra Fria que exigia que os EUA tratassem Cuba como um inimigo existencial em vez de um vizinho".

Além de revogar as medidas de Trump, a carta pede que Biden inicie o processo para fim do embargo e normalização total das relações entre os Estados Unidos e Cuba.

Também assinam a carta os artistas brasileiros Chico Buarque e Wagner Moura, além de nomes internacionais como Jane Fonda, Mark Ruffalo e o vencedor do prêmio Nobel da Paz, Adolfo Pérez Esquivel. O documento também recebe endosso dos movimentos Black Lives Matter, dos Estados Unidos, e do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

Outro lado: julgamentos sumários

Os julgamentos sumaríssimos contra indivíduos detidos em decorrência dos protestos de 11 de julho em Cuba já começaram, e há fila. Dezenas de manifestantes foram postos à disposição dos tribunais municipais nos últimos dias, acusados de delitos (desordem pública, incitação ao crime, desacato) punidos com até um ano de prisão. Em um dos primeiros processos coletivos, realizado no fórum Dez de Outubro, dois jovens foram sentenciados a 10 meses da prisão, e uma dezena a penas de um ano de reclusão, enquanto familiares de alguns deles denunciaram que, pela celeridade do procedimento, não tiveram tempo nem de constituir advogado, muito menos de preparar sua defesa. Um número cada vez maior de vozes ―inclusive de figuras revolucionárias, como o compositor Silvio Rodríguez― pede moderação por parte das autoridades e a libertação de cubanos que não tiverem participado de atos violentos.

As autoridades não divulgaram uma cifra oficial de detidos. A opacidade oficial nesse tema é absoluta, embora diversas fontes relatem ter havido uma grande onda de detenções ―há quem fale em até 500―durante as jornadas de protesto em 11 e 12 de julho. Algumas pessoas foram liberadas sem acusações, e outras são mantidas em prisão domiciliar à espera do julgamento. Também há uma quantidade indeterminável de manifestantes que seguem detidos e provavelmente serão levados diretamente aos juízes nos próximos dias.

As autoridades prometem respeitar “todas as garantias processuais”, apesar de se tratar de procedimentos sumários, que tornam a defesa muito complicada, pois poucos dias transcorrem entre a detenção e a sentença. Além disso, anunciaram que os julgamentos dos implicados em atos violentos e saques de lojas serão mais demorados, mas que eventuais culpados receberão penas mais severas ―até 20 anos de prisão, segundo o Código Penal cubano.

Os julgamentos por desordem pública são anunciados num aluvião, e as autoridades precisam decidir agora se aplicarão pulso firme sem restrições, com sentenças que sirvam de exemplo, ou afrouxarão com aqueles que simplesmente tenham participado pacificamente das manifestações ou que tenham sido detidos apenas por gravar os protestos com seus celulares. Tudo indica que estes últimos são muitos, como o caso do cinegrafista Anyelo Troya, um dos autores do videoclipe da canção Patria y vida, condenado na quarta-feira a um ano de prisão. O que está acontecendo abriu um debate nas redes sociais ―pouco a pouco a internet foi se restabelecendo nos celulares―, e pelo Facebook o conhecido ator Luis Alberto García punha o dedo na ferida: “Saibam que cada cubana ou cubano que eles condenarem a passar um tempo na prisão, sem que tenha cometido atos vandálicos e somente tenha manifestado pública e pacificamente suas insatisfações e crenças, será seu inimigo acérrimo pelo resto da vida. E com elas e eles também seus pais, filhos, irmãos, avós, tios, primos, amigos e até conhecidos”. O ator exortou às autoridades que revejam “esses julgamentos que estão sendo feitos às pressas. E as condenações que neles estão sendo sentenciadas. Cuba não precisa de mais grades nem de mais fel”.

Apesar das posições de barricada, e da polarização existente entre os que defendem o “direito da revolução de se defender” e pedem pulso firme, e os que consideram os julgamentos parte da repressão para calar as manifestações de descontentamento e denunciam abusos policiais a rodo, um pequeno raio de luz se abriu graças à iniciativa do dramaturgo Yunior García, um dos líderes do protesto diante do ministério de Cultura em 27 de novembro do ano passado, que foi detido nas manifestações de 11 de julho.

García escreveu uma carta aberta a Silvio Rodríguez propondo um diálogo para anunciar as posições e reivindicações da geração mais jovem que ele representa. Rodríguez o recebeu imediatamente. “Fomos capazes de confrontar nossas diferenças no mais absoluto respeito e preferimos nos concentrar em nossas coincidências. Tampouco perdemos tempo em discutir os temas que nenhum de nós pode resolver na prática. Focamos em como contribuir, agora mesmo, para o bem da sociedade cubana, em seu conjunto”, disse o dramaturgo depois da reunião.

“O encontro de hoje não foi um embate para encontrar um ganhador. Tratava-se de Cuba. E acredito que saímos de lá com a certeza de que são necessárias mudanças reais, impulsionados por vias não violentas, sem ingerências e onde nenhum cubano se sinta excluído”, assinalou. Rodríguez, por sua vez, que nos últimos dias se centrou em denunciar a manipulação das redes sociais e o papel dos EUA em procurar agravar a situação em Cuba, em linha com a posição oficial, considerou o encontro com Yunior como “bom” e “fraterno”. “Para mim, o mais doloroso foi escutar que eles, como geração, já não se sentiam parte do processo cubano, e sim outra coisa. Explicaram-me seus argumentos, suas frustrações”, afirmou o cantor e compositor. E acrescentou: “É preciso haver mais pontes, mais diálogo, menos preconceitos; menos vontade de bater e mais desejo de resolver a montanha de assuntos econômicos e políticos pendentes; menos costume de ouvir quem fala a mesma coisa, com as mesmas palavras, década após década, como se as gerações não viessem também com suas próprias palavras e entusiasmos”.

Rodríguez disse que o dramaturgo lhe solicitou “que ligasse para alguém” e pedisse “anistia para todos os presos”. “Não sei quantos detentos haverá agora, dizem eles que centenas”, afirmou Rodríguez, que não se furtou a pedir a soltura “dos que não foram violentos”.

García, que neste momento está sob prisão domiciliar, insiste em que em Cuba precisa abrir espaços inclusivos para sair da grave crise que o país atravessa, algo com que Silvio Rodríguez está de acordo. “Coincidimos em um projeto (em seu momento se tornará público) que poderia servir para o começo de um debate verdadeiramente plural, inclusivo, cívico, respeitoso e amplo, que encontre os consensos entre a diversidade que hoje nos caracteriza como cubanos”, disse García, e muitos nas redes sociais aplaudiram ambos.

Os julgamentos continuarão nos próximos dias, e é preciso observar que linha sancionadora o Ministério Público acabará adotando, mas, em meio a esta situação, os EUA anunciaram a adoção de sanções aos “implicados em atos repressivos”, ou seja, mais ruído no sistema. “Em vez de afrouxar as tensões, flexibilizar o embargo e favorecer uma saída, Washington incrementa a pressão, ao que aqui responderão entrincheirando-se uma vez mais”, opina um jovem cubano muito crítico ao Governo, mas que considera muito difícil haver uma solução enquanto perdurar a “miopia” da Casa Branca.


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