28/03/2024 - Edição 540

Mundo

Cubanos se dividem entre as conquistas do socialismo e a ditadura comunista

Publicado em 16/07/2021 12:00 -

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“Há um mal-estar muito grande que não pode ser colocado em um esquema esquerda-direita. É um povo descobrindo sua capacidade de não ser mera massa de apoio a uma oligarquia retrógrada e cínica que usa as palavras ‘revolução’ e ‘anti-imperialismo’ para legitimar um despotismo sórdido que pouco se diferencia de qualquer tirania. É um povo cansado das desigualdades e dos privilégios ‘revolucionários’ e ‘socialistas’. Cuba além de ser um museu da esquerda mundial, é uma sociedade com Estado, policiais, repressores, privilegiados e marginalizados, e com uma oligarquia militar burocrática tão gananciosa como qualquer outra. O fato de termos tido um déspota esclarecido e humanista não o isenta do seu despotismo, nem de seus herdeiros. Uma parte significativa deste povo disse basta, que não dá mais. O levantamento do bloqueio ianque deve ocorrer e, também, o fim do monopólio da oligarquia castrista. Será complicado e seguramente ‘impossível’, mas é a perspectiva mais honesta que vejo. Nosso companheiro Leonardo Romero está desaparecido atualmente, é um inimigo do Estado cubano por ter escrito publicamente em um cartaz ‘Socialismo sim, repressão não!’. E é nesse desaparecimento que está à verdadeira face desse governo”

O texto acima, de autoria de um dissidente anarquista cubano – e publicado nesta semana pela Agência de Notícias Anarquista (ANA) – é um recorte à esquerda do que ocorre em Cuba desde o último dia 10: as maiores manifestações críticas ao Governo desde o "maleconazo" de 1994.

Os primeiros protestos ocorreram no último dia 10, na cidade de Palma Soriano, localizada em Santiago de Cuba. Pessoas começaram a marchar nas ruas carregando tachos e panelas, protestando através de um cacerolazo (“panelaço”) por conta dos apagões, que se tornam cada vez mais frequentes, da falta de alimentos e da crise na saúde pública que já vem borbulhando há algum tempo.

Os protestos parecem ser o resultado de um cansaço acumulado da população contra o governo. Esta frustração aumentou nos últimos meses após uma das maiores crises econômicas pelas quais a ilha passou desde o chamado "período especial" (a crise no início dos anos 1990 após o colapso da União Soviética), com meses de escassez de alimentos, remédios e produtos de necessidades básicas, além de apagões de energia e aumento da inflação.

As manifestações acontecem também no pior momento da pandemia no país, com relatos de hospitais superlotados e depoimentos de vários cubanos que asseguram que seus familiares morreram em casa sem receber atendimento médico e medicamentos.

Em meio aos protestos, cidadãos cubanos foram capazes não apenas de se informarem, mas ao mundo, enquanto estavam tendo seu acesso a comida e medicina negados, aguardavam em longas filas por mercadorias básicas e muito caras e se submetiam a períodos de isolamento causados pela ineficácia do estado para lidar com a crise.

No dia 11 de julho, pela manhã, a onda de rebelião se espalhou pela ilha, fazendo deste levante popular o mais relevante em décadas.

Dissidentes cubanos de esquerda apontam para o enfraquecimento do que consideram um regime de capitalismo de Estado controlado pelo Partido Comunista Cubano e seus próceres. Para eles, duas hipóteses podem emergir de uma futura queda do regime:

1) As classes populares cubanas se reconheceriam como atores sociais com auto-determinação e capazes de tomar o poder. Esta realidade foi raramente experimentada pelas gerações em Cuba nos últimos 60 anos.

2) A substituição do regime atual por uma administração política colonial e neoliberal com um verniz de retórica “democrática” onde, paradoxalmente, as classes cubanas exploradas talvez ganhem mais espaço para se organizar ao desenvolver uma consciência de classe muito necessária que permitiria o surgimento de tendências revolucionárias autênticas e práticas que as alimentem.

“No entanto, estamos cientes de que tudo isso pode ocorrer em um ambiente em que muitas mudanças sociais positivas, implantadas pela Revolução Cubana, seriam eliminadas ou desgastadas. Lembremos que estas classes populares que heroicamente lutaram contra um regime opressivo seriam aquelas que sofreriam as piores consequências de tudo isso”, afirma um dissidente.

Por que parte dos cubanos continua a apoiar governo?

Depois dos protestos desta semana, exigindo alimentos, remédios e vacinas, mas também "liberdade" e "fim da ditadura", o governo de Miguel Díaz-Canel apontou o embargo americano como a raiz dos males que atingem a ilha.

"Convocamos todos os revolucionários do país, todos os comunistas, a tomarem as ruas e irem aos lugares onde vão acontecer essas provocações, hoje, de agora em diante e em todos estes dias", disse o presidente em uma mensagem considerada incomum. Ela foi transmitida por todas as redes de rádio e televisão do país.

Após a convocação do mandatário, centenas de cubanos foram às ruas em atos a favor do governo em Havana e em algumas províncias.

Os vídeos mostram dezenas de apoiadores do governo segurando faixas de Fidel Castro, bandeiras cubanas e do Movimento 26 de Julho (grupo fundado por Fidel Castro, em 1954, em oposição ao então ditador Fulgêncio Batista). Eles também gritaram palavras de ordem a favor do presidente Miguel Díaz-Canel e contra os Estados Unidos.

As vozes que defendem o governo cubano também se expressaram nas redes sociais.

"Em Cuba, as ruas pertencem aos revolucionários. Também é hora de dominar as redes", escreveu Yaira Jiménez Roig, funcionária do Ministério das Relações Exteriores de Cuba, no Facebook.

"Díaz-Canel chama e seus apoiadores respondem sem hesitar. É a gente de Fidel que intimida os manifestantes…", escreveu uma usuária identificada como Heidy Villuendas no Facebook. A publicação tinha também algumas fotos dos manifestantes em Havana.

Um usuário identificado como Alejandro Ruiz, de Havana, disse à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, que em Cuba "só ocorreram motins, distúrbios causados por um grupo de mercenários e criminosos, alguns dos quais agiram com violência".

O governo cubano geralmente acusa seus oponentes de serem mercenários ou agentes a serviço dos Estados Unidos. "Nas revoltas éramos cubanos comuns defendendo nosso trabalho. Nosso povo é heroico, pronto para morrer em defesa de uma obra de justiça social", acrescentou Ruiz.

Antonio Crespo, de San Antonio de los Baños, foi outro dos que marcharam em apoio ao governo, segundo o Granma, jornal oficial do Partido Comunista de Cuba.

"Aqueles de nós que chegamos até aqui somos vigilantes fiéis da revolução, somos fortes porque fomos criados por ela. E agora, com a presença de Díaz-Canel, nos sentimos firmes, seguros, porque a revolução está com o povo, que é o verdadeiro dono das ruas. Em Cuba não vamos permitir que ninguém leve o que conquistamos", disse Crespo à publicação.

Roberto Reyes Herrera, outro dos apoiadores do governo citados pelo Granma, manifestou sua gratidão pelas "oportunidades que a revolução lhe deu e que poucos não querem reconhecer".

Yaima Pérez, da cidade de Bayamo, acrescentou: "Não estou sozinha cuidando do meu trabalho, estou cuidando do futuro dos meus filhos, da sua tranquilidade e da sua felicidade porque quero que continuem vivendo e crescendo em um país soberano."

Por sua vez, um estudante identificado como Yurisdán Paneque, da cidade de Camagüey, afirmou: "Hoje vim aqui (ao protesto pró-governo) como um jovem que está conseguindo um diploma universitário gratuitamente, bem como para defender todas as conquistas da revolução por mais de 60 anos de lutas pelo nosso direito à paz e à determinação de nosso próprio destino socialista", disse Paneque, segundo o portal da Agência Cubana de Notícias.

Segundo o jornal oficial Juventud Rebelde, também ocorreram manifestações em locais como Cienfuegos, Caibarién, Guantánamo e Artemisa.

Além dos atos pró-governo, dezenas de usuários se manifestaram nas redes sociais contra o embargo e as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos contra Cuba, processo conhecido como "bloqueio".

O governo cubano atribui a atual situação econômica ao embargo norte-americano.

Numerosos usuários do Facebook e Twitter compartilharam a hashtag #EliminaElBloqueo e muitos outros colocaram um filtro em sua foto de perfil que diz "Matanzas não está sozinha", aludindo à difícil situação que enfrenta a província cubana em face da pandemia covid-19 – o governo prometeu a resolver a situação.

ONU pede libertação imediata de manifestantes em Cuba

A Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, lançou um apelo nesta sexta-feira (16) para que o governo de Cuba liberte de forma imediata "todos aqueles que foram detidos por exercerem os seus direitos à liberdade de reunião pacífica, ou à liberdade de opinião e expressão".

"Estou muito preocupada com o suposto uso excessivo de força contra manifestantes em Cuba e com a detenção de um grande número de pessoas, incluindo vários jornalistas", disse Bachelet. "

"É particularmente preocupante que estes incluam indivíduos mantidos incomunicáveis e pessoas cujo paradeiro é desconhecido. Todas as pessoas detidas por exercerem os seus direitos devem ser prontamente libertadas", declarou.

Bachelet ainda lamentou a morte de um manifestante no contexto de protestos em Havana e pediu que haja uma investigação "independente, transparente e eficaz, e que os responsáveis sejam responsabilizados".

De acordo com a ONU, os protestos em Cuba têm lugar no contexto de uma situação econômica difícil. "Os manifestantes exigiram o fim de medidas econômicas que restringiram o acesso das pessoas a bens básicos, incluindo alimentos, medicamentos e vacinas contra a covid-19", explicou.

"Peço ao governo que aborde as queixas dos manifestantes através do diálogo, e que respeite e proteja plenamente os direitos de todos os indivíduos à reunião pacífica e à liberdade de opinião e expressão", disse Bachelet.

Ela também apelou à restauração total do acesso à Internet e aos meios de comunicação social.

A Alta Comissária reiterou o seu pedido pelo fim do embargo americano contra a ilha, dado o seu impacto negativo sobre os direitos humanos, incluindo o direito à saúde.

O que diz o Governo?

Uma das reclamações dos cubanos são os constantes apagões elétricos no estado de Artemisa e em outras regiões do país. O governo justifica que, desde 2019, com a aplicação de novas sanções unilaterais pela Casa Branca, Cuba tem sérias dificuldades para importar combustível e abastecer as usinas termoelétricas nacionais.

De acordo com o ministro de Economia, são necessárias 207 mil toneladas de diesel para abastecer as termoelétricas e gerar energia para toda a ilha. A demanda mensal gira em torno de 60 e 70 mil toneladas de diesel, o que equivale a cerca de US$ 60 milhões. Além disso, somente em 2021 foram necessários US$ 350 milhões a mais para comprar combustível, devido ao aumento da demanda durante a pandemia e às dificuldades de importação.

"Muitos dos problemas que estão acumulados hoje não são pela pandemia, mas pelas restrições financeiras", disse o ministro de Economia, Alejandro Gil Fernández.

Cuba vive neste momento uma nova onda de contágios da covid-19, acumulando um total de 238.491 casos e 1.537 mortes, segundo o Ministério de Saúde Pública. Matanzas, Santiago e Havana, zonas turísticas e mais populosas do país, concentram 59% dos contágios.

Além disso, a ilha já registrou casos das variantes Alfa e Delta, 50% e 60% respectivamente, mais contagiosas que a primeira cepa do vírus, o que influenciou o aumento de casos. Segundo o Ministério de Saúde Pública (Minsap), em 2021, a média mensal foi de 30 mil infectados. No entanto, somente 2,16% da população cubana foi contaminada pelo vírus, segundo o Ministério.

Cuba foi o primeiro país da América Latina a desenvolver uma vacina própria contra o vírus sars-cov2. Entre 46 candidatos, a biomedicina cubana desenvolveu cinco imunizantes próprios, sendo que as fórmulas Abdala e Soberana 02 têm mais de 92% de eficácia com a aplicação de três doses. Até o momento, cerca de 4 milhões de cubanos foram vacinados nessa primeira etapa da campanha de imunização, chamada "intervenção sanitária”.

Como forma de contenção, foram enviados 205 médicos e 330 enfermeiras de outros estados a Matanzas, estado mais afetado. Também foram habilitados dois hotéis como hospitais de campanha, que serão geridos por um grupo de profissionais da Brigada Henry Reeve, que esteve no exterior combatendo a pandemia em outros países.

"O prognóstico não é favorável, mas podemos ajudar a eficiência das nossas vacinas diminuindo a circulação no território e cumprindo o distanciamento social. A situação é complexa e é necessário que nosso povo tenha consciência para atuar", declarou o ministro José Angel Portal Miranda.

O governo cubano destaca os bons resultados do país diante da falta de recursos para atender a emergência sanitária. Entre 2020 e 2021, foram destinados US$ 184 milhões para combater a pandemia, segundo o ministério de economia.

O custo diário de um paciente em isolamento nos hotéis sanitários é de 990 pesos cubanos (cerca de R$ 214), já um paciente em tratamento intensivo gera um gasto diário de 13.045 pesos cubanos (cerca de R$ 2.820). Todos os infectados com covid-19 são atendidos pelo sistema público de saúde da ilha, portanto todos os custos são assumidos pelo Estado.

Além disso, Cuba questiona a condenação internacional de uma crise sanitária no país, quando a taxa de letalidade na ilha é de 137 mortos a cada um milhão de habitantes, cifra inferior à grande maioria das nações da região.

No caso do Brasil, a letalidade é de 2,5 mil mortos a cada um milhão de habitantes, na Argentina é de 2.179 por um milhão de habitantes, enquanto o Peru lidera o ranking mundial com 3.509 óbitos a cada grupo de um milhão de peruanos.

Crise econômica e Tarefa Ordenamento

Desde janeiro de 2021, Cuba coloca em prática a Tarefa Ordenamento, uma reforma econômica que, entre outras medidas, unificou as duas moedas nacionais (peso cubano conversível – CUC – e peso cubano nacional – CUP), aumentou os salários em 450% e liberou a circulação do dólar estadunidense no país.

Paralelamente, também em janeiro, o governo dos Estados Unidos recrudesceu ainda mais o bloqueio econômico, aplicado desde 1962, incluindo o Banco Financeiro Internacional S.A. de Cuba na lista de empresas sancionadas.

De acordo com o ministro de Economia Alejandro Gil, o BFI seria a entidade bancária responsável por arrecadar os dólares do Estado e revendê-los no mercado internacional para reinvestir no país. Também é através do BFI que Cuba recebe doações internacionais. Atualmente cerca de US$ 1,5 milhão em ajuda internacional estão bloqueados na entidade bancária.

"Os objetivos [da Tarefa Ordenamento] foram parcialmente alcançados, porque o bloqueio nos restringiu a capacidade de utilizar esses dólares arrecadados para reinvestir no país", declarou Gil.

Em quase seis décadas, os EUA aplicaram 243 medidas coercitivas unilaterais contra Cuba, que geraram um prejuízo acumulado de US$ 147,8 bilhões.

Somente em 2020, durante a pandemia, o país registrou perdas de US$ 3,5 bilhões por conta da imposição do embargo, que em junho foi condenado pela 29ª vez pela Assembleia Geral das Nações Unidas.

Já em 2021, o país arrecadou US$ 400 milhões a menos que no primeiro semestre de 2020 por conta do bloqueio. A autorização da cobrança em dólares em uma rede de lojas nacional era um dos mecanismos previstos pelo governo para aumentar a arrecadação nacional. Porém, além de não atingir as metas de arrecadação estabelecidas, a reforma econômica também teve impactos negativos maiores do que o esperado pelo governo cubano.

Com a suspensão do subsídio às empresas importadoras de alimentos e produtos, de maneira imediata, os custos da indústria subiram 12 vezes, provocando uma inflação de 2.300%.

O primeiro semestre do ano era o período para que os cubanos trocassem todos os seus CUC a CUP e se adaptassem à nova realidade com moedas estrangeiras circulando livremente no país. No entanto, ao invés de aumentar o consumo, o efeito foi inverso, aprofundando a perda de capacidade de compra dos cubanos.

O câmbio oficial foi estabelecido em 24 CUP = US$1, mas surgem relatos sobre a dificuldade de acessar os dólares do Estado, enquanto o câmbio paralelo já é cinco vezes superior ao determinado pelo Banco Central cubano.

Quanto o embargo americano realmente afeta a Ilha?

O embargo dos Estados Unidos contra Cuba é uma das medidas mais condenadas pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), onde todos os anos, desde 1992, é aprovada uma resolução contra a imposição americana.

A resolução de condenação tem tido apoio quase unânime, e em 2016 chegou a ter 191 votos a favor e nenhum contra, entre os 193 membros. O próprio governo dos EUA se absteve de defender seu embargo.

As razões para condenar a medida variam bastante, e em muitos casos não representam um gesto de apoio ao governo cubano, mas sim, no caso de muitos países europeus, indicam uma contestação ao fato de que os EUA limitam a possibilidade de empresas de outros países a fazer negócios com a ilha ou de que esse embargo serve como um perigoso precedente de medidas unilaterais coercitivas.

Mas o que exatamente é o embargo dos EUA a Cuba e qual é seu verdadeiro impacto?

Muitas normas, um objetivo

O embargo econômico americano contra Cuba se baseia em um amplo emaranhado jurídico construído ao longo de décadas que inclui seis leis diferentes e diversas regulações que proíbem ou limitam relações comerciais com a ilha.

As primeiras sanções econômicas foram adotadas em 1960 pelo governo do então presidente Dwight Eisenhower em resposta à decisão do governo cubano de estatizar os bens de empresas americanas na ilha, aumentar a taxação de produtos dos EUA e estabelecer relações comerciais com a União Soviética.

Eisenhower reduziu drasticamente a importação de açúcar de Cuba, pôs em marcha um embargo comercial parcial e acabou rompendo as relações diplomáticas com Havana.

Com o fracasso da invasão da Baía dos Porcos e da declaração de Cuba como um Estado socialista por Fidel Castro em 1961, o presidente americano John F. Kennedy estabeleceu no ano seguinte um embargo total ao comércio com Cuba, com exceção de alimentos e remédios.

Essas medidas iniciais foram adotadas com base na Lei de Comércio com o Inimigo, que havia sido aprovada em 1917 durante a Primeira Guerra Mundial, e na Lei de Assistência Exterior, promulgada em 1961, que permite manter o embargo contra Cuba e proíbe que fundos de ajuda internacional dos EUA sejam destinados ao país caribenho.

Em 1979, a Lei para Administração de Exportações permitiu estabelecer restrições alfandegárias por motivos de segurança nacional.

Após a queda da União Soviética, o Congresso dos EUA aprovou, em 1992, a Lei para a Democracia em Cuba, conhecida como Lei Torricelli, que proibia subsidiárias de empresas americanas em outros países de negociar com Cuba, assim como a viagem de cidadãos dos EUA ao país. Ali tentava-se também limitar a cooperação internacional de outros países com a ilha.

A Lei para a Liberdade e Solidariedade Democrática Cubanas (conhecida como Lei Helms-Burton), de 1996, reforçou o embargo, incluindo restrições a empresas de outros países de negociarem com a ilha.

Essa norma trouxe consigo uma outra mudança importante ao estabelecer as condições necessárias para que o embargo de Cuba fosse suspenso.

Ali ficou estabelecido que, em consulta com o Congresso, o presidente americano poderia suspender algumas medidas quando um governo de transição fosse instalado em Cuba ou poderia eliminar todo o regime de sanções quando a ilha tivesse um governo eleito democraticamente, considerado como o objetivo último das sanções dos EUA contra a ilha.

Nesse processo, porém, caberá ao Congresso a última palavra, a quem cabe aprovar ou não o fim do embargo.

Essa lei também dificultou o acesso da ilha a financiamentos externos ao estabelecer que os EUA usarão sua influência e seu voto em organizações financeiras internacionais para se opor à adesão de Cuba a essas instituições.

Em 2000, a Lei de Sanções Comerciais e Aumento do Comércio representou um certo relaxamento do embargo ao permitir a exportação para Cuba de alimentos, produtos agrícolas e medicamentos.

Além dessas leis, há diversas normas e diversos regulamentos adicionais que conferem ao Poder Executivo dos EUA certa margem de discricionariedade na aplicação do embargo, o que explica como foi possível que durante o governo de Barack Obama houvesse uma grande flexibilização das relações econômicas com Cuba, especialmente em relação a viagens e envio de remessas, e que sob a Presidência de Donald Trump elas acabaram endurecidas mais uma vez.

Historicamente, o governo cubano se refere às sanções econômicas dos EUA como um bloqueio e insiste que a normalização total das relações bilaterais só será possível quando essas medidas forem totalmente suspensas.

Embora as primeiras sanções impostas por Washington tenham respondido à nacionalização dos ativos de empresas americanas em Cuba em 1960, ao longo dos anos, elas se tornaram um meio de pressionar a ilha, negando-lhe acesso ao comércio com a maior economia mundial, bem como às facilidades inerentes ao uso do sistema financeiro dos EUA, cobrando respeito os direitos humanos e o estabelecimento de um governo eleito democraticamente.

A proibição é a norma

Quais atividades econômicas então são afetadas pelo embargo americano a Cuba?

“A regra geral é que tudo o que não seja explicitamente autorizado por uma licença especial ou geral é absolutamente proibido se tiver a ver com Cuba, em termos econômicos e comerciais”, explica Pedro Freyre, professor de Direito e advogado do escritório de advocacia Akerman, em Miami.

“Agora, falando do embargo especificamente: alguém disse que há 'mais buracos do que queijo' porque existe toda uma gama de exceções e licenças gerais que autorizam transações com Cuba”, acrescenta Freyre, que assessora empresas americanas e internacionais a ajudá-las a fazer suas operações na ilha sem violarem o embargo.

O especialista lembra que é permitido o envio de ajuda humanitária, assim como a exportação de alimentos, embora neste caso seja obrigatório que o pagamento seja feito no ato, ou seja, que não seja financiado. Ele salienta que a venda de medicamentos também é autorizada, embora não de forma automática, já que existem alguns pré-requisitos.

Freyre esclarece que as proibições existentes para outras atividades comerciais atingem cidadãos, empresas e entidades dos EUA ou que sejam controladas por americanos.

Em relação às medidas americanas que restringem a possibilidade de empresas de outros países fazerem negócios com Cuba, Freyre explica que países da União Europeia e de outros continentes, como o Canadá, desenvolveram com sucesso um arcabouço legal que impede a aplicação extraterritorial das leis americanas.

"A aplicação do bloqueio para além do território americano é colateral. Os EUA não têm jurisdição primária sobre uma empresa não americana. Se você tiver uma empresa inglesa ou francesa operando fora dos EUA, os EUA não têm jurisdição de qualquer tipo sobre essa empresa. Agora, se essa empresa começar a operar nos EUA, usar o sistema bancário ou recursos americanos, aí sim há jurisdição incidindo sobre essa empresa”, afirma.

A questão da aplicação extraterritorial do embargo entrou em vigor nos últimos anos, depois que o governo Donald Trump permitiu a aplicação de um trecho da Lei Helms-Burton que havia sido suspenso. Este estabelece que as empresas que foram confiscadas pelo governo cubano podem processar empresas estrangeiras que operam na ilha em tribunais dos EUA.

“Suponhamos que os ex-proprietários de uma empresa de tabaco que foi confiscada entrem com um processo e ganhem uma ação em um tribunal americano contra uma empresa francesa que agora controla aquele ativo. Mas essa empresa francesa não tem ativos nos EUA, ela tem tudo na Europa. Então, os americanos têm que ir a um tribunal francês e dizer 'ei, garanta efeito e validade a essa ação que ganhei nos EUA e vamos tomar as propriedades dessa empresa francesa'. Mas a regulamentação da União Europeia proíbe terminantemente essa aceitação por tribunais franceses e, além disso, dá à empresa francesa o direito de apresentar reconvenção (ação contra os autores do pedido) contra os americanos”, explica.

Freyre ressalta que as empresas estrangeiras que desejam fazer negócios com Cuba devem evitar o uso do sistema financeiro americano. “Cuba pode teoricamente comprar todo o combustível que quiser diretamente, por exemplo, da Rússia. Os EUA não interferem nisso, mas essa transação não pode ser em dólares nem pode usar o sistema bancário americano.”

As responsabilidades do embargo

E qual tem sido o impacto do embargo sobre Cuba?

“Os danos acumulados durante quase seis décadas de aplicação dessa medida totalizam US$ 144 bilhões (cerca de R$ 734 bilhões)”, afirmou o governo cubano no documento “Cuba vs. Bloqueio” que apresentou sobre o embargo à Assembleia Geral da ONU em 2020.

As autoridades de Cuba quase sempre atribuem a culpa pelas dificuldades econômicas enfrentadas pela população cubana aos efeitos das sanções americanas, lembrando que elas dificultam o comércio e a obtenção de investimentos e financiamentos.

Os críticos do governo cubano, porém, apontam que a ilha mantém relações comerciais com dezenas de países ao redor do mundo e que recebe sim expressivos investimentos estrangeiros, em setores que têm possibilidade gerar lucro, como o turismo.

Erika Guevara-Rosas, diretora da Anistia Internacional para as Américas, afirma que embora o embargo dos EUA tenha tido um impacto econômico e social na ilha, o argumento de culpar estas sanções pelos problemas cubanos está "ultrapassado".

“Eles [o governo cubano] geraram uma narrativa como se fosse um bloqueio total e um embargo econômico e financeiro, com todas as implicações que isso tem na vida das pessoas”, diz Guevara-Rosas à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).

Ela lembra que ainda que a ilha mantenha relações estreitas de cooperação e comércio com países europeus, de fato os EUA são o principal exportador de alimentos e medicamentos para Cuba.

A lista dos principais parceiros comerciais da ilha é variada e inclui países como Venezuela, China, Espanha, Canadá, Rússia, México, Holanda, Itália, França, Alemanha e os próprios Estados Unidos, segundo dados de 2019 do Instituto Nacional de Estatísticas e Informações de Cuba.

Guevara-Rosas destaca, por exemplo, que 80% da carne e do frango da ilha vêm dos EUA.

John Kavulich, presidente do Conselho de Comércio e Economia EUA-Cuba, disse à BBC Monitoring que este ano as exportações de alimentos dos EUA para a ilha aumentaram 60% em relação a 2020, e que até agora neste ano somam quase US$ 140 milhões (cerca de R$ 715 milhões), principalmente com a venda de frango.

Kavulich estima que cerca de 8% dos alimentos importados por Cuba vêm dos EUA.

Assim, ao investigarem a fundo as raízes das dificuldades da ilha, alguns analistas como Pedro Freyre olham para além do embargo. “O problema fundamental da economia cubana é que seu sistema é muito ineficiente”, diz ele.

E acrescenta: “o planejamento é centralizado e a propriedade, a titularidade de todos os bens fundamentais de produção, é do Estado. As grandes empresas são do Estado. O setor privado é relativamente pequeno e tem se expandido com muita dificuldade, mas são muito pequenos, são negócios individuais".

Freyre diz que que quem viaja para Cuba pode perceber o estado avançado de deterioração da infraestrutura local, o que atribui às dificuldades do sistema político-econômico para criar valor e capital.

"E aí então, em meio a toda essa deterioração, você avista um hotel novo de primeira linha. Esse hotel é uma joint-venture de uma agência governamental, geralmente com uma empresa russa, chinesa ou qualquer outra e é como um oásis de capitalização no meio de um oceano de ruínas", acrescenta.

Freyre afirma que, neste contexto, o embargo impõe um ônus adicional a Cuba e dificulta ainda mais as coisas, mas, em sua avaliação, a raiz de tudo está na ineficiência do sistema.

“Uma Cuba capitalista sob sanções não teria nem remotamente o nível de problemas que tem agora. Teria problemas, mas não o nível de problemas que tem agora.”

Uma carta

Há em Cuba dissidentes de esquerda que apoiam o socialismo mas condenam a ditadura comunista. Uma carta, publicada nesta semana por um anarquista cubano na Agência de Notícias Anarquista (ANA) talvez seja o melhor resumo da insatisfação que corroi parte do apoio popular ao governo cubano.

‘A revolução nos ensinou a ler e escrever, e depois nos disse o que podíamos escrever e o que estava proibido ler, criando desta forma o pior tipo de analfabeto que existe, o que acredita que sabe tudo e não necessita escutar ninguém.

A revolução converteu os quartéis em escolas e o país em um quartel.

A revolução levou a eletricidade aos lugares mais afastados e depois trouxe os apagões a todos os lugares.

A revolução terminou com bordéis de bairro e converteu o país em um bordel.

A revolução nos deu um sistema de saúde gratuito, para que possamos ter atendimento às doenças que ela nos causa com seu estresse constante, péssima higiene e má alimentação… Se protesta, abrirão a  sua cabeça, mas os pontos também serão grátis.

A revolução nos assegura um trabalho digno com um salário que nos garante uma vida indigna.

A revolução eliminou a exploração da pessoa pela pessoa e estabeleceu a exploração das pessoas pelo estado.

A revolução eliminou a burguesia e estabeleceu a monarquia.

A revolução mudou as pessoas mortas nas ruas pelas pessoas mortas no mar e nas prisões.

A revolução dividiu os pães e desapareceu com os peixes.

A revolução nos ensinou que a liberdade não se mendiga enquanto nos vestia de mendigos.

A revolução converteu delatores em heróis.

A revolução nos disse que a família não era importante, que quem saísse de Cuba jamais voltaria a ver o seu céu; não queremos você, não precisamos de você… hoje nos diz que o imperialismo quer separar a família cubana. Hoje pede a gritos e flexibiliza a entrada de turistas vindos do imperialismo!!!

A revolução proibiu Camilo Sesto, Os Beatles, Roberto Carlos, Julio Iglesias, etc… hoje nos diz que arte é arte e que a política é a política e não se devem misturar.’


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