16/04/2024 - Edição 540

Brasil

Terra ameaçada

Publicado em 09/07/2021 12:00 -

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Manifestações dos povos indígenas marcaram o mês de junho. O acampamento Levante pela Terra, em Brasília, reuniu mais de 850 indígenas de 45 etnias, e foi acompanhado por outras mobilizações pelo país. Eles protestam contra o Projeto de Lei (PL) 490/2007 e contra a tese do Marco Temporal, que será discutida no Supremo Tribunal Federal (STF). O julgamento, adiado de 30 de junho para 28 de agosto, vai ser determinante no futuro das demarcações de terras no Brasil. “Esses projetos genocidas e ecocidas se utilizam da pandemia de covid-19 como cortina de fumaça, fazendo aumentar a violência contra povos indígenas e os conflitos em nossos territórios, inclusive entre parentes”, manifestou a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em 30/6.

Na mesma data, no site da entidade, Sonia Guajajara, coordenadora-executiva, lembrou que o mês de agosto é marcado pelo reconhecimento internacional dos povos indígenas e afirmou que a luta por direitos segue até a nova data marcada para a votação no STF: “Estamos aqui hoje mais uma vez fazendo esse chamado para o ‘agosto indígena’. Voltaremos em agosto para Brasília para lutar contra todos esses retrocessos, contra todas essas medidas anti-indígenas que tramitam no âmbito dos três poderes da União”, declarou.

PL 490 e a ameaça às terras indígenas

O Projeto de Lei 490/2007 altera a legislação da demarcação de terras indígenas. De autoria do deputado Homero Pereira (PR/MT) — produtor rural, falecido em 2013, quando já era filiado ao PSD —, o projeto parte do argumento de que a demarcação das Terras Indígenas não deve ser decisão administrativa da Fundação Nacional do Índio (Funai), e propõe que as terras sejam demarcadas por meio de leis, discutidas no Congresso Nacional. De lá para cá, foram apensados mais 20 projetos ao texto inicial, cujo ponto mais polêmico é a tese do Marco Temporal. O texto ainda flexibiliza o contato com povos isolados, proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas e permite a exploração de terras indígenas por garimpeiros, como registrou o Correio Braziliense (23/6).

Tramitação no Congresso

Em 2008, o PL 490 foi aprovado pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara, mas em 2009 foi rejeitado pela Comissão de Direitos Humanos e Cidadania (CDHM), que entendeu que as propostas não representavam nenhum avanço na salvaguarda dos direitos indígenas. “Pelo contrário, se transformadas em lei, propiciarão a postergação do processo de demarcação das terras indígenas”, concluiu o relatório da CDHM. Após um dia de manifestações que terminou com ação truculenta da polícia e muitos feridos (22/6), a votação do PL na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) foi cancelada e adiada para o dia seguinte, quando o projeto foi aprovado. O texto segue agora para votação no plenário da Câmara — e depois no Senado, caso aprovado — embora um julgamento marcado para agosto no Supremo Tribunal Federal (STF) possa colocar em xeque a validade do PL.

O que está em votação no STF?

O Supremo Tribunal Federal adiou para 28 de agosto o julgamento mais importante para os povos indígenas no Brasil em três décadas. O que está em pauta é a reintegração de posse de uma área da Terra Indígena (TI) Ibirama-La Klãnõ (SC), dos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, em Santa Catarina, mas a decisão pode definir o futuro das demarcações no país. É que em 2019 o processo foi alçado à condição de “repercussão geral”, o que significa que o seu resultado vai fixar a jurisprudência sobre o assunto, servindo de diretriz para o governo e o Judiciário em relação a todos os procedimentos demarcatórios, explica a notícia publicada (2/7) no site do Instituto Socioambiental (ISA).

No site da Apib, as lideranças destacaram (30/6) que “a decisão tomada neste julgamento servirá de diretriz para a gestão federal e todas as instâncias da Justiça, também de referência a todos os processos, procedimentos administrativos e projetos legislativos no que diz respeito aos procedimentos demarcatórios”.

É grande a expectativa pelo julgamento, que estava previsto para acontecer em 30 de junho, não somente porque o atual governo detém os piores índices de oficialização de terras indígenas desde a redemocratização — em dois anos e meio, nenhuma Terra Indígena foi declarada ou homologada — mas porque uma decisão favorável aos povos indígenas no STF abre precedente para que o PL seja revogado, disse à Radis Ana Lucia Pontes, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde dos Povos Indígenas da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Ela explicou que são processos separados, mas como a decisão do STF vai avaliar a validade da tese do marco temporal, a decisão poderá impactar na condução do PL, que também tem como base a mesma tese.

O que é o marco temporal

A tese defendida por ruralistas e demais setores interessados em explorar as Terras Indígenas é baseada na interpretação de que só teriam direito à terra os povos que já tivessem a sua posse em 5 de outubro de 1988, quando foi promulga a Constituição, ou até esta data estivessem em disputa judicial ou em conflito material comprovado pela área. Atualmente, a lei prevê que para demarcar uma área é necessária a abertura de um processo administrativo na Funai. Uma equipe multidisciplinar deve redigir, então, um relatório de identificação e delimitação, mas a comprovação de posse em data específica, no entanto, não é necessária.

As críticas ao PL

A tese do Marco Temporal é considerada injusta porque desconsidera as expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. “Além disso, ignora o fato de que, até 1988, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos”, registrou análise publicada (30/6) no site da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Além de injusta, a proposta é inconstitucional, apontam os críticos, já que prevê a possibilidade de retirar áreas do usufruto dos indígenas quando existir, por exemplo, interesses de garimpagem ou “relevante interesse público da união”. Ou, ainda, no caso de a união considerar que os indígenas que ocupam o território “perderam seus traços culturais”. “Essas hipóteses não são permitidas pela Constituição”, sinalizou Paula Batista, advogada do Instituto Socioambiental (ISA), em declaração ao Correio Braziliense (23/6).

Em entrevista coletiva (15/6), a deputada federal Joenia Wapichana (Rede/RR), coordenadora da Frente Parlamentar Indígena, alertou que, além do PL ser uma ameaça a direitos adquiridos, ele ainda tem mais de 20 projetos de lei apensados que podem passar sem ser devidamente analisados. Outra crítica que se faz é que o PL representa um risco para os povos que vivem em isolamento voluntário, já que prevê a possibilidade de contatos forçados, caso exista “interesse público” — o que segundo especialistas também contraria a Constituição, já que o texto de 1988 garante aos indígenas seus “usos, costumes e tradições”.

Repercussão pública

Artistas, juristas, acadêmicos e personalidades brasileiras assinaram carta entregue ao STF contra o Marco Temporal. Foram mais de 100 mil assinaturas. A mobilização ganhou as redes sociais digitais, onde as pessoas apoiaram a causa e compartilharam vídeos e mensagens em diversos idiomas, acompanhados por hashtags como #EmergenciaIndigena ou #MarcoTemporalNao. Entre as personalidades que associaram sua imagem à campanha estão a cartunista Laerte, o DJ Alok, a atriz Alessandra Negrini e a modelo Gisele Bündchen. A carta pública pode ser acessada em https://bit.ly/CartaAbert


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