24/04/2024 - Edição 540

Especial

A democracia vilipendiada

Publicado em 02/07/2021 12:00 -

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Desde a antológica "golden shower" no carnaval de 2019, o roteiro é o mesmo: acuado por denúncias ou notícias ruins, o presidente da República emite declarações bizarras com o objetivo de excitar os 14% de bolsonaristas-raiz e indignar o naco civilizado da população nas redes sociais.

Desta vez, na quinta (1º), ao defender novamente o voto impresso, prometeu não entregar o cargo se perder com “eleições fraudadas”. Sabemos, contudo, que ele prepara terreno para considerar fraudadas toda eleição que não ganhar. E a prova da fraude que irá apresentar é o seu próprio mimimi.

A cortina de fumaça desta vez serve para esconder o fato que o seu governo, que ele sempre vendeu como honestíssimo em detrimento a outras administrações, está na lama por conta das denúncias de superfaturamento e cobrança de propina na compra de vacinas. Ou seja, cascalho obtido com o dinheiro que poderia salvar vidas.

"Eu entrego a faixa presidencial a qualquer um que ganhar de mim na urna de forma limpa. Na fraude, não. Para o Brasil, agora: tiraram o Lula da cadeia. Os crimes são inacreditáveis. Tornaram um ladrão elegível. No meu entender, para ser presidente na fraude, porque, no voto, ele não ganha, não ganha de ninguém. Então, não vou admitir um sistema fraudável de eleições", afirmou em sua live semanal. Ou seja, se Lula ganhar dele, é fraude.

Em março de 2020, sem apresentar evidências, Jair Bolsonaro afirmou que havia sido eleito no primeiro turno de 2018, mas foi roubado. "Pelas provas que tenho em minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu fui eleito no primeiro turno mas, no meu entender, teve fraude", disse Bolsonaro.

Nunca apresentou prova, e nem vai apresentar, porque não há. Pior, diante da cobrança para mostrar os indícios de fraude, passou a dizer que é o Tribunal Superior Eleitoral que deve provar que não há fraude. O que é tosco, porque a Justiça Eleitoral já realiza testes abertos com simulações de ataques a cada eleição e nada é identificado.

Jair está tenso. Ao que tudo indica, ele pode ter prevaricado por ter se omitido diante das evidências de que a negociação para a compra da vacina indiana Covaxin demonstravam cambalacho.

Após ser informado do problema pelo deputado Luiz Miranda (DEM-DF) e o irmão dele, um servidor do Ministério da Saúde que descobriu a sacanagem, ele teria dito que isso era coisa de Ricardo Barros (PP-PR), seu líder na Câmara dos Deputados. E que acionaria o diretor-geral da Polícia Federal para investigar.

Coisa que não fez. Até porque, convenhamos, não é que Bolsonaro tenha um centrão trabalhando para ele. O centrão é que tem um presidente de mascote. Enquanto Jair garantir emendas, cargos (inclusive aqueles que facilitam trambiques) e ajudar na aprovação de leis e portarias, mantém sua cadeira no Planalto.

Na CPI da Covid, na quinta (1º), o cabo da PM de Minas Gerais e representante comercial Luiz Dominguetti, que denunciou pedido de propina por um servidor do Ministério da Saúde ao negociar doses de AstraZeneca, mostrou um áudio com a voz de Miranda dizendo que se tratava de negociação de imunizantes envolvendo o irmão dele, o tal servidor.

Ao que tudo indica, o áudio se trata, na verdade, de uma negociação de luvas para mercados nos Estados Unidos no ano passado. Ainda não se sabe o que levou Dominguetti a divulgar essa bobagem, mas ela foi suficiente para as redes bolsonaristas ficarem em polvorosa na tentativa de desqualificar o depoimento do deputado Luiz Miranda. Ou seja, mais nuvem de fumaça, involuntaria ou armada.

Usar uma ameaça de golpe de Estado para esconder da população que a corrupção em seu governo pode ser ainda pior que a de outros que se lambuzaram na governabilidade do toma-lá-dá-cá (pior porque permitiu a sacanagem que custaram vidas) não é novidade também. No ano passado, Bolsonaro incentivou seus seguidores a defenderem o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal ao ser cobrado de inação diante da pandemia.

Hordas gritando "AI-5! AI-5! AI-5!" ou segurando tochas em frente ao STF foram um toque de requinte medieval.

O pior não é só o oportunismo golpista de Bolsonaro. A falta de criatividade do presidente da República e seus assessores em criar novas distrações, além de corroer instituições por dentro, transformou a República em um disco arranhado, que quer enervar quem o escuta, repetindo golpe, golpe, golpe…

Alexandre de Moraes e Barroso, as pedras no sapato de Bolsonaro

Se pudesse, o presidente Jair Bolsonaro miraria e atiraria bem na cabecinha dos ministros do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. Ele os tem como seus principais inimigos dentro da justiça.

Alexandre, porque segundo Bolsonaro, não toma uma só decisão a seu favor, ou a favor do governo; Barroso porque torpedeia talvez a mais cara bandeira de sua campanha a presidente – a reintrodução do voto em célula. Os dois não arredam pé de suas posições.

Bolsonaro, ontem, em sua live semanal das quintas-feiras no Facebook, voltou a bater nos dois ministros, embora sem citá-los nominalmente. Sobre a resistência de Barroso ao voto impresso, Bolsonaro avançou o sinal e ameaçou: “Eu entrego a faixa presidencial para qualquer um que ganhar de mim na urna de forma limpa. Na fraude, não”.

Quem decide se numa eleição houve fraude é a justiça, não o candidato que alega que houve. Em 25 anos de votação eletrônica, nunca foi constatada fraude no Brasil. Bolsonaro diz ter provas de que não se elegeu em 2018 no primeiro turno por causa de fraude.

Cobrado pela Justiça, jamais exibiu provas. Dizer que só entregará a faixa presidencial ao seu sucessor caso se convença que não houve fraude na eleição do ano que vem, significa o quê? Que tentará dar um golpe, como Donald Trump tentou em vão?

Sempre que se vê numa enrascada, como está agora com a denúncia de compra de vacina a preço superfaturado, Bolsonaro cria factoides para mudar de assunto. Na mesma live, referindo-se a mais recente decisão de Alexandre, ele disse:

“Veio inquérito especial para os meus dois filhos hoje. O mais velho [Flávio] e o zero dois [Carlos] sobre fake news. Mas não tem problema, não. Se jogarem fora das quatro linhas da Constituição, entramos num vale tudo no Brasil”.

O ministro abriu inquérito para apurar a existência de uma “organização criminosa” de ataques contra a democracia. Há indícios, segundo a Polícia Federal, de que o clã Bolsonaro esteja envolvido – inclusive Eduardo, o Zero Três.

Bolsonaro disse mais: “Então, esse negócio de prender esposa, irmãos, filhos é das ditaduras. Não acha o cara em casa e prende a esposa e prende os filhos. Então, se a ideia for essa, se avançarem, entro no campo minado chamado vale tudo”.

Não deixa de ser um avanço o presidente da República, defensor da tortura e do regime militar de 64, reconhecer que numa ditadura, não se podendo prender o chefe de família, prende-se a própria família. Fora isso, o mais que ele fala é sempre um atraso.

Intelectuais alemães alertam: democracia brasileira pode não resistir

Em 2018, cerca de uma semana antes do segundo turno das eleições presidenciais, um grupo de mais de 40 intelectuais alemães lançou uma carta aberta sobre os riscos à democracia e aos direitos humanos no Brasil.

Quase três anos após o manifesto, signatários do documento avaliam que aquele temor acabou se confirmando sob o governo Jair Bolsonaro e dizem que as instituições democráticas, corroídas por dentro, estão sob pressão crescente, podendo não resistir.

A carta de 2018 não citava abertamente o então candidato Bolsonaro, mas fazia referências claras a declarações dadas por ele e seus apoiadores em relação à propagação de desinformação e difamações, aos ataques aos direitos de minorias, e à incitação da violência.

"Aprendemos, dolorosamente, com a história europeia e, em especial, com a história alemã, que a apologia da tortura e da violência e o desrespeito a concidadãos e minorias jamais serão solução para crises econômicas e políticas", destacava a carta.

Ao final do texto, os intelectuais pediam que o Judiciário brasileiro e as forças democráticas lutassem pelos direitos humanos e a democracia, e defendiam a punição daqueles que violam esses princípios com palavras ou atos.

Bolsonaro acabou eleito, e seu atual mandato está entrando na fase final. Nestes quase três anos, foram frequentes a realização de atos contra instituições democráticas, como o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional, e gestos de apoio a pedidos de intervenção militar. O presidente e alguns de seus ministros participaram ativamente destes eventos, além de alimentar com ataques verbais o ódio contra a democracia e minorias.

O país também tem visto o desmonte de órgãos ambientais e de proteção a minorias e tentativas de interferência política em instituições de fiscalização, como a Polícia Federal, além de vivenciar ataques constantes à imprensa, praticados principalmente pelo presidente.

Já a propagação de mentiras se tornou política oficial durante pandemia, com o governo promovendo medicamentos sem eficácia comprovada contra o coronavírus e desdenhando de medidas sanitárias reconhecidas e aplicadas internacionalmente.

"Não é um golpe claro, mas uma infiltração"

Diante deste cenário, acadêmicos alemães afirmam que a preocupação expressada na carta de 2018, de certa maneira, acabou se concretizando. Para a socióloga Maria Backhouse, da Universidade de Jena, essa confirmação, porém, ocorreu de forma diferente do que ela imaginava na época.

"Tinha o receio de que Bolsonaro instalaria uma ditadura, mas isso não ocorreu porque ele está tendo sucesso em sabotar a democracia por dentro", afirma a especialista em sociologia ambiental e desigualdade global.

Segundo ela, o presidente vem corroendo a democracia com os próprios meios deste sistema ao nomear determinados nomes para cargos estratégicos ou cortar recursos de universidades ou instituições de defesa do meio ambiente e minorias.

"A estratégia de Bolsonaro pode ser observada em vários países, não é um golpe claro, mas sim uma infiltração", ressalta Backhouse. 

Exemplos desse método de corrosão e seu impacto ocorreram em países como a Turquia de Recep Tayyip Erdogan – que ocupou o Judiciário e Forças Armadas com aliados e conseguiu assumir o controle destas instituições – ou a Hungria de Viktor Orbán – que conseguiu aprovar leis que, na prática, impossibilitam a vitória da oposição em eleições.

A economista Barbara Fritz, da Universidade Livre de Berlim, diz que o modo de agir de Bolsonaro já era previsível antes das eleições. "Desde início era previsto que o governo Bolsonaro seria antidemocrático e promoveria uma luta permanente entre Judiciário e Legislativo, que tentam proteger as instituições democráticas. A ameaça à democracia continua existindo", destaca.

O sociólogo Hauke Brunkhorst, da Universidade de Flensburg, tem uma visão semelhante e afirma que a carta aberta continua atual. "Ainda seria um golpe de sorte caso a democracia no Brasil sobreviva nessas circunstâncias", avalia.

Cenário sombrio em caso de reeleição

Para Brunkhorst, especialista em sociologia constitucional e teoria política, o tipo "populista caótico fascista", como Bolsonaro ou o ex-presidente americano Donald Trump, dificilmente consegue resistir a um mandato. Mas se ele conseguir manipular o sistema eleitoral, a imprensa e outras instituições democráticas a seu favor, afirma o intelectual, como ocorreu na Hungria e na Polônia, Bolsonaro pode permanecer no poder "legalmente" por vários anos.

Devido a essas tentativas de corroer o sistema democrático por dentro, os intelectuais preveem um cenário mais sombrio no caso de um segundo mandato de Bolsonaro. Brunkhorst pontua que nenhuma democracia sobrevive à reeleição de "tais figuras, que não perseguem nada além de interesses próprios, privados e narcisistas".

Backhouse ressalta que as instituições democráticas já estão sofrendo uma enorme pressão, mas elas não implodiram ainda. "Há muita resistência, apesar de todas as catástrofes, mas temo que num segundo mandato Bolsonaro seja mais autoritário e atue com muito mais força para destruí-las", avalia.

Risco de golpe?

Fritz também enxerga o futuro cenário brasileiro de forma semelhante. Para a economista, as chances eleitorais de Bolsonaro, no entanto, dependem, além dos candidatos, dos rumos que a economia vai tomar neste e no próximo ano. "Há muitas incertezas neste momento, mas as condições de largada para a economia do Brasil são muito ruins, o que pode influenciar negativamente o voto em Bolsonaro".

Segundo Brunkhorst, o fim do risco à democracia só ficará claro nas próximas eleições e depende, não somente de uma troca de governo, como também da reação dos militares neste caso. O especialista, porém, avalia que o cenário não é tão favorável para as Forças Armadas.

"Um fator muito importante é que de repente a esquerda pode voltar a ganhar eleições nas Américas e trazer para a agenda projetos radicais, com os quais ninguém contava, como a mudança da Constituição no Chile, que deixa de lado o mercado e vai de encontro à democracia e novas formas de socialismo, ou o programa político dos EUA, que vai além do New Deal. Pela primeira vez, parece que os militares brasileiros não podem mais contar com o apoio americano no caso de um golpe", acrescenta o sociólogo.

Assim como Brunkhorst, Backhouse estima que a ameaça também depende da reação de militares a uma eventual derrota do presidente nas urnas, o que, na visão dela, pode resultar numa escalada de violência no país devido à eventual recusa de Bolsonaro em reconhecer o resultado eleitoral.

Nova lei antiterror de bolsonaristas ameaça silenciar oposição, alerta ONU

Por decisão do seu presidente, Arthur Lira (PP-AL), a Câmara dos Deputados instalou nesta semana uma comissão especial que elegeu o presidente e acelerou os trabalhos para tentar aprovar um projeto de lei que foi apresentado em 2016 pelo então Jair Bolsonaro e estava parado desde 2019 na Casa.

O projeto nº 1595/2019 altera duas leis sobre antiterrorismo, de 2001 e 1999, e amplia a chamada Lei Antiterrorismo, de nº 13.260, de 2016. O projeto foi condenado em pareceres do Ministério Público Federal e de diversas organizações não governamentais de direitos humanos. Segundo as ONGs, a iniciativa faz parte de uma "extensa lista de projetos" na Câmara que, se aprovados, "trarão enormes retrocessos e prejuízos ao espaço democrático em nosso país". Em carta, elas pediram que Arthur Lira abandonasse a ideia de criar a comissão especial sobre a matéria, mas o presidente da Câmara a manteve.

Numa carta confidencial enviada ao governo brasileiro, sete relatores da ONU alertam que o projeto ameaça silenciar críticos e oposição, criminalizar movimentos sociais e greves, além de restringir liberdades fundamentais.

No documento de 15 de junho, os relatores pedem que as autoridades reconsiderem os projetos e cobram explicações. Para eles, se tais projetos forem aprovados, o Brasil estará violando o direito internacional e suas obrigações assumidas.

Procurado pela coluna, o Itamaraty indicou que a carta "contém comentários sobre as consequências jurídicas de dois projetos de lei (272/2016 e 1595/2019), ora em tramitação no Congresso Nacional, em matéria de combate ao terrorismo". "Após consultas internas, o Itamaraty encaminhou à ONU, em 18 de junho, informações recebidas do Ministério da Justiça e Segurança Pública em resposta à mencionada comunicação", explicou o governo.

Em sua resposta, o governo insiste que consultas foram realizadas sobre as leis e que e que as "alegações feitas na carta (dos relatores) são de natureza prematura". "O progresso dos projetos de lei demonstra a ampla e prolongada discussão sobre assuntos relacionados com o terrorismo contemporâneo", diz. Segundo o governo, os projetos respeitam a Constituição e exigências internacionais.

Os textos, ainda segundo a resposta do governo, também seguem a tendência internacional de reconhecer a "mensagem do terror" como um elemento do crime.

Para completar, as autoridades negam que direitos básicos estejam sendo violados e que, de fato, as propostas "preservam os direitos da maioria dos cidadãos".

O projeto de lei, que estava parado desde 2019, voltou a ganhar a atenção da ala aliada do presidente Jair Bolsonaro nos últimos meses. Ele altera a legislação antiterrorismo no país e, para seus críticos, uma eventual aprovação limitaria também o direito ao protesto.

O texto muda três leis sobre antiterrorismo já existentes. O projeto amplia atos tipificados como terrorismo, permite a infiltração de agentes públicos em movimentos e dá autorização para operações sigilosas.

No documento, os relatores expressam sua "séria preocupação" e apontam que a expansão proposta da definição do terrorismo pode limitar o exercício das liberdades fundamentais, incluindo as de opinião, expressão e associação. A lei também pode remover a proteção aos atores da sociedade civil e aos defensores dos direitos humanos.

A carta é assinada por Fionnuala Ní Aoláin (relatoria sobre a proteção de direitos humanos e combate ao terrorismo), Miriam Estrada-Castillo (presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre detenção arbitrária), David R. Boyd (relator sobre direito ao meio ambiente limpo), Irene Khan (relatora sobre liberdade de expressão), Clement Nyaletsossi Voule (relator sobre direito à liberdade de associação), Mary Lawlor (relatora sobre situação de ativistas) e Joseph Cannataci (relator sobre direito à privacidade).

"Expressamos nossa séria preocupação com o processo de expansão da lista de atos considerados terroristas, e com o aumento das penas para termos amplos ou mal definidos como "recompensa ou elogio" e "incitar", disseram os relatores.

"As mudanças legislativas propostas pelo Projeto de Lei 1595/2019 expandem significativamente o conceito de terrorismo no direito interno. Essa mudança pode levar a uma maior criminalização dos defensores dos direitos humanos, movimentos e organizações sociais, assim como a restrições às liberdades fundamentais", apontam.

Oposição ameaçada

De acordo com os relatores, o amplo escopo e imprecisão dos termos no projeto torna os indivíduos suscetíveis à violação de inúmeros direitos. No texto apoiado pelo bolsonarismo, seria incluída na definição de terrorismo o ato de "exercer pressão sobre o governo, autoridades públicas ou oficiais do governo para fazer ou parar de fazer algo, por razões políticas, ideológicas ou sociais".

Isso, segundo os relatores, expandiria a lista de atividades que são definidas como os fatores motivadores por trás do terrorismo. "Isto pode ter efeitos adversos na oposição política ou no discurso público robusto", alertam.

Protestos e greves criminalizados

Os relatores também indicam que o PL criminaliza pessoas e grupos que "parecem ter a intenção" de realizar ações que podem "intimidar ou coagir a população ou afetar a definição de políticas públicas". Isso ocorreria por meio de um ampla lista de ações como "intimidação, coação, destruição em massa, assassinatos, sequestros ou qualquer outra forma de violência".

"A indefinição dos conceitos poderia assim incluir manifestações públicas organizadas, tais como protestos e greves, assim como qualquer ação ou manifestação, inclusive individual e digital, que possa "afetar a definição de políticas públicas", alertam os relatores.

"Atos inerentes ao processo democrático, tais como protestos, manifestações e marchas poderiam ser enquadrados sob os termos destas disposições, e podem tornar o livre exercício das liberdades individuais muito desafiador", constatam.

Motivação política, ideológica e social

Um dos aspectos mais preocupantes, segundo os relatores, é a proposta de inclusão de um artigo na lei que prevê a definição do terrorismo também por "qualquer outro motivo político, ideológico ou social".

"A inclusão da motivação "política, ideológica ou social" como um elemento subjetivo específico de um crime infringe diretamente direitos fundamentais como a liberdade de expressão, reunião e associação", denuncia a carta.

Segundo os relatores, tal proposta viola as obrigações internacionais do Brasil. "Uma definição excessivamente ampla pode contribuir significativamente para a criminalização dos movimentos sociais e das manifestações em geral, pois estes frequentemente têm uma motivação "política, ideológica ou social", alertam.

"Qualquer conduta listada neste ato acarretará fortes penalidades se um ato puder ser ligado aos fatores motivadores acima. O efeito é confundido com atos políticos, ideológicos e sociais com terrorismo", constatam.

Sistema de vigilância e "boiada" na covid-19

Outro alerta da ONU se refere à perspectiva de que a lei crie um sistema de vigilância e monitoramento. "Essas disposições e novas agências conferem ao Executivo uma discrição significativa, aumentando o risco de que as ferramentas apoiadas tecnologicamente possam ser mal utilizadas ou mal aplicadas", alertam os relatores.

Para os representantes da ONU, um dos fatores que ainda chama a atenção é que o procedimento para a aprovação da lei esteja ocorrendo em plena pandemia.

A linguagem proposta permitiria ainda que crimes contra a propriedade sejam classificados como terrorismo caso qualquer motivo "político, ideológico ou social" fosse reivindicado como associado ao ato.

"Também nos preocupa que a legislação esteja sendo avançada durante a pandemia da COVID-19, o que não permite um exame público aprofundado e o engajamento com o texto", disseram.

Diante das violações, os relatores recomendam que os autores do projeto e o governo "reconsiderem certos aspectos desta legislação para garantir que ela esteja em conformidade com as obrigações internacionais do Brasil em matéria de direitos humanos".

Em 2019, o projeto de lei também foi alvo de críticas do MPF (Ministério Público Federal). Em nota técnica, a então procuradora da PFDC (Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão), Deborah Duprat, afirmou que "o fundamental, em todo esse processo, é que o exercício de legislar em tema com tamanho impacto na vida coletiva se faça acompanhar de estudos técnicos, avaliações e informes, sempre abertos à consulta pública".

Em outra nota técnica conjunta de 2019, a Conectas, o IBCCRIM, a Rede Justiça Criminal e o Artigo 19 pontuaram que, no projeto de Vitor Hugo, "não há qualquer elemento que diferencie o 'ato terrorista' de crimes comuns, pois os únicos requisitos para a sua configuração são resultados genéricos como 'perigo para a vida humana' e 'afetar a definição de políticas públicas', que sequer precisam se concretizar, uma vez que basta que o agente 'aparente ter a intenção' de causá-los".


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