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Palavra do Editor

Justiceiros e injustiçados: nosso medo de cada dia

Publicado em 07/02/2014 12:00 -

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Em outubro passado, meses antes de um grupo de moradores do bairro do Flamengo (RJ) capturar um jovem marginal deixando-o amarrado com um cadeado de bicicleta a um poste do Aterro do Flamengo, um amigo meu foi vítima de um furto na Barra da Tijuca.

Ele passeava com a esposa pela orla, por volta das 19h, quando foi cercado por cinco crianças. De crianças, no entanto, o bando tinha apenas a idade. Meu amigo foi derrubado ao chão e, na tentativa de proteger a esposa, levou vários chutes no rosto e um talho de caco de vidro na testa.

Os jovens delinquentes levaram um cordão de ouro – arrancado do pescoço de sua esposa – um celular e a carteira com cartões de crédito, algum dinheiro e documentos. Tudo recuperável. A única coisa que os cinco jovens levaram e que meu amigo e a esposa ainda não recuperaram foi a fé no ser humano e a sensação de cidadania.

A única coisa que os cinco jovens levaram e que meu amigo e a esposa ainda não recuperaram foi a fé no ser humano e a sensação de cidadania.

No final de semana seguinte, o casal identificou um dos meliantes na mesma altura do calçadão, espreitando novas vítimas em plena luz do dia. Chamaram um policial militar que aconselhou-os a “deixar prá lá”. Mesmo que o garoto fosse detido, seria solto quase que imediatamente…

Desde este dia, meu amigo e a esposa deixaram de andar na orla à noite, passaram a ser mais uma dupla de prisioneiros em seu apartamento de classe média remediada. O coração ficou meio que empedernido diante da sorte dos desvalidos.

“Eu era daqueles caras que defendia a pivetada, culpava o sistema. Continuo achando que estes jovens deformados são produto de uma sociedade que não lhes dá oportunidade. No entanto, enquanto isso não se resolve, quem protege a nós, cidadãos comuns? Por alguns centímetros eu poderia ter levado um talho no pescoço, na vista. Poderia estar morto”, desabafa.

Meu amigo e a esposa deixaram de andar na orla à noite, passaram a ser mais uma dupla de prisioneiros em seu apartamento de classe média remediada.

O caso acima é apenas um entre milhares de outros que ocorrem diariamente nos grandes centros e, também, pelo interior do país, em lugares onde o abismo social que divide os brasileiros torna-se mais visível a cada dia.

Se nos horrorizamos diante da imagem do adolescente negro, nu, preso pelo pescoço ao poste por uma trava de bicicleta – cena que remete a certas gravuras que retratam a época da escravidão – temos, também, que nos horrorizar diante do cidadão comum, órfão do poder público, acostumando-se ao medo diário imposto pelo banditismo.

O cidadão comum não está contente com o abismo social, ele não bate palmas diante da pobreza, da miséria, como querem muitos filósofos de internet que apostam na demonização de uma classe média vilipendiada diariamente em sua dignidade. O cidadão comum está apenas apavorado. E, apavorado, reage como pode.

Mas, por mais que estejamos temerosos, não podemos ceder a tentação da “justiça pelas próprias mãos”. Por mais que ela se justifique em certa medida diante da ausência do Estado em sua função básica de proteger o cidadão, o olho por olho jamais será uma saída aceitável. A partir dele, apenas a barbárie prosperará.

Se nos horrorizamos diante do adolescente preso pelo pescoço ao poste por uma trava de bicicleta, também devemos nos horrorizar diante do cidadão esmagado pelo banditismo.

No entanto, apenas condenar a mobilização popular contra o banditismo não resolve o problema. Ficar no discurso paternalista que enaltece a criminalidade, isenta o infrator de suas responsabilidades e reforça a sensação de culpa de quem rala a semana inteira para se dar ao luxo de dar um passeio noturno com a esposa pelo calçadão é hipocrisia e irresponsabilidade.

É preciso encontrar soluções que enfraqueçam a tentação das ações punitivas à margem da lei e do Estado. Alguém duvida que a inclusão social é a saída de longo prazo para esta encruzilhada? O problema, no entanto, é premente. É preciso dar soluções imediatas para certos aspectos desta guerra urbana maquiada por eventos esportivos e ufanismo.

Enquanto debatemos o sexo dos anjos, o poder político e econômico continua nos tocando como gado. A todos nós: o menino alijado de tudo, o casal remediado e aterrorizado, os filósofos de internet e o cidadão comum, a cada dia menos ciente de sua cidadania.


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